Franz Kafka e Milena Jesenská
"As pessoas praticamente
nunca me enganaram, mas as cartas sempre". A frase é de um conjunto de
cartas de Franz Kafka pouco citado na história das missivas de escritores. São correspondências que ele manteve
com Milena Jesenská. E quase todas estão tão carregadas de frases que são quase
aforismos que a tentação é pegar um punhado delas à própria sorte e não dizer
nenhuma palavra a mais. "O medo é verdadeiramente estranho, suas leis internas não
as conheço, só conheço sua mão em minha garganta, e isso é realmente o mais horrível
que já me aconteceu ou que jamais poderá ocorrer".
Mas, há uma
história que marca essa relação e que merece ser contada. O conjunto das cartas de
Franz a Milena (as respostas de Milena a Franz estão desaparecidas) foram
reunidas e publicadas originalmente em alemão ainda em 1952, pelas mãos de
Willy Haas que por conta própria decidiu ocultar algumas passagens; em 1986, outra
edição trouxe as missivas em sua versão integral e algumas cartas de Milena ao
amigo íntimo de Kafka, Max Brod. O fato da primeira edição omitir certas
passagens se deu porque naquele ano ainda muitas personagens estavam vivas e
poderiam se sentir ofendidas com o seu conteúdo. Noutras, havia piadas sobre os
judeus.
"Conhecemos uma
quantidade de exemplos característicos de judeus ocidentais; eu, pelo que sei,
sou o mais ocidental de todos; isso significa, expresso com exagero, que não me
foi dado um só segundo de paz, não recebi nada, tudo tenho que adquirir, não só
o presente e o futuro, mas também o passado".
Mas cartas
entre o autor de A metamorfose e
Milena são peças de uma história de amor mal resolvido (de ambas as partes) costurada entre Praga, Merano,
Karisbad e Viena entre abril de 1920 e o Natal de 1923. Quatro meses depois,
Kafka morreu.
"Se comparo
esse resultado com o modo em que tu estás arruinando tua saúde [...], às vezes
me parece que, ao invés de viver juntos, só iremos para cama, contentes e
satisfeitos, um junto ao outro para morrer. Mas o quer que aconteça quero que aconteça perto de ti".
Quem era
Milena? Existe mesmo uma biografia escrita sobre ela nos anos 1990, mas quase ninguém
se lembra desse nome. Que ninguém se confunda com as fotografias: Milena não era
Felice, a de expressão calma que sempre aparece nos retratos, a namoradinha a quem Kafka enviou 500
cartas de amor bem claustrofóbico e a quem abandonou por culpa de um vômito
cheio de sangue. Tampouco era Julie, a segunda namorada do escritor, aquela
prometida quase secreta cuja frustração propiciou depois a famosa Carta ao pai.
Milena,
vista de nosso tempo, era uma mulher muito mais atraente. Nasceu em 1896,
quando Kafka tinha 13 anos numa família burguesa, nacionalista tcheca, antissemita,
hostil aos alemães, contrária a Viena e ao Império. A mãe adoeceu e Milena se
dedicou em cuidar dela desde o início da adolescência até aos 16 anos, quando
morreu.
A perda da
mãe levou-a se tornar a pior inimiga de seu pai. Roubava-lhe cocaína (o pai era
dentista), tinha dificuldades, gastava dinheiro, aparecia grávida e abortava uma
vez atrás de outra... mandaram-na a um psiquiatra. Antes de concluir o
tratamento com Carl Gustav Jung, saiu da clínica, se casou com um crítico
literário, foi morar em Viena, passou alguns anos de fome e tormento e acabou
num livro de Kafka.
Milena e
Franz conheceram-se num café em Praga, no outono de 1919. Kafka não chegou a
memorizar bem sua fisionomia embora tenha ficado com a vaga impressão sobre o
volume de seu corpo e seu vestido. "Percebo que não recordo propriamente nenhum
detalhe preciso de seu rosto. Só como eu estava saindo por entre as mesas do
café, sua figura, seu vestido: isso ainda lembro".
Milena
esteve mais atenta. Era já uma admiradora do escritor. Na primavera quis
traduzir algum texto seu do alemão para o tcheco. E assim veio-lhe a primeira carta.
E o que se
passava com Franz naquela época? Sanatórios, solidão... a típica imagem de um
verdadeiro escritor em 1920. Havia três anos que Kafka se tratava de uma
tuberculose. Desde há dois não escrevia nada mais que cartas. Sua relação com
Julie definhava num quando-me-curar-falaremos.
No inverno
andava por Merano, como se fosse seu SPA. Mas seus padecimentos, segundo se pode
ler nas correspondências com Milena, eram suportáveis e sua posição econômica nunca
deixou de ser considerável. Quando estava em Praga, ia ao escritório e não havia
grande coisa. Vivia com seus pais.
E então chegou
aquela carta de Viena assinada por uma quase desconhecida. Os primeiros envios são
de cortesias profissionais um pouco empolgadas – vão encabeçados por um "Querida senhora Milena" e o tratamento é por "tu". Vão contando suas insônias, seus
padecimentos. Ela passa fome em Viena, seu marido é um crápula. Ele fala de sua
enfermidade. Para maio, o incentivará que lhe escreva em tcheco, e ele contestará
em alemão para que possam se expressar com naturalidade. E, mais tarde, falarão
de amor:
"Não é mau,
embora só seja para que exista certo equilíbrio, que num pequeno recanto de meu
coração haja para você um pouco de enfado", escreve Kafka, paquerador, para expressar
por Milena algum pequeno interesse.
Chegou o
amor e chegaram todas as suas estações clássicas: o assombrado descobrimento
mútuo, a obsessão, a ousadia, a confissão. E, então, o primeiro desafio. Voltar
a ver-se? Sim, não, por que não. Kafka desejava, mas não tinha certeza. O terreno
platônico era doce e cômodo para ele. Ao encontrar-se com Milena teria que colocar
em prova seu ímpeto sexual, do qual não estava muito seguro e teria que tomar
algumas decisões desagradáveis. A relação com Julie, ao menos, não estava de um
todo acabada e a ideia de meter-se num jogo de adultérios e enganos lhe dava
certo temor.
Milena
também continuava casada. Seu casamento era uma fonte de situações infelizes
mas não estava morto. Kafka conhecia o marido, havia mil amigos em comum por
todos os lados. "Sim, tens razão, quero. Mas, F., a ti também te quero", escreveu
Milena a Franz, que depois reproduziu aquele parágrafo em específico numa de suas cartas.
Confessaram todos
os cuidados. No final houve um encontro, quatro dias numa ocasião entre 1920 e 1921
e foram, tais dias, um momento pletórico. Kafka alcançou ser um bom amante, um
homem otimista, loquaz e voraz, capaz de longos passeios e almoços com o
apetite de um remador.
A partir
daí, tudo declinou. Franz voltou a Praga e separou-se de Julie de uma maneira
quase cruel. Começou a ter expectativas concretas de sua amante. Milena, em
troca, não se separou de seu marido. Ao contrário, confessou-lhe tudo. Kafka se
ofereceu para ir buscá-la em Viena e levá-la consigo. Milena não quis. Chegou a
primeira reprovação. "Todo o mistério de vossa indestrutível união, esse
profuso e inesgotável mistério, tu o materializas sempre no cuidado de seus
sapatos".
Em janeiro,
o fio que unia os dois amantes estava um pouco gasto. Durante os dois anos
seguintes, trocaram poucas cartas nas quais voltaram a se tratar com menos formalidade, mas foram correspondências mais sobre temas relacionados à literatura. Depois, Kafka morreu e Milena
escreveu um belo obituário. Tinha 28 anos e ainda lhe faltavam 20 anos pela
frente.
E o que ela
fez depois disso? Entrou para o Partido Comunista, ficou coxa, engordou e teve
a atitude de abandonar sua militância quando teve notícia dos danos de Stálin na União Soviética.
Os alemães a mandaram para Ravensbrück. Ali, se comportou com grande nobreza. Seu
nome está inscrito entre os homens no Museu Yav Vaschem, em Jerusalém.
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