Das ficções e confissões radicais: "A gênese do Doutor Fausto"
Por Alfredo
Monte
Após a Companhia das Letras ter colocado em
circulação uma nova edição de Doutor Fausto, seria bem oportuno o
relançamento do livro que Thomas Mann publicou em 1949 sobre sua
obra-prima: A gênese do Doutor Fausto1.
Nele, o fato biográfico mais importante é
uma intervenção cirúrgica delicada que o grande escritor alemão (então vivendo
exilado nos EUA) sofre aos 70 anos. Após passar pela experiência, ele afirma: “O
romance: durante todas essas semanas ímpares e aventurosas, mantive-o
próximo ao coração, fazendo na mente um rol de correções necessárias e diversos
planos para o prosseguimento. Minha conduta de paciente exemplar, a ligeireza
da minha recuperação, espantosa na minha idade, todo esse desejo de
sobrevivência, essa verdadeira persistência em vencer a provação inesperada e
tardia, não havia por trás disso tudo um secreto ‘Para quê?’ Não foi tudo a
serviço da obra, não foi a partir do inconsciente que a tudo superei para
erguer-me e acabá-la?”.
Na passagem acima colocam-se as cartas na
mesa: Doutor Fausto (escrito a partir de 1943 e publicado em 1947) é
um ato de sobrevivência. Concluído José e seus irmãos, assombrado pela
Segunda Grande Guerra e pelo declínio físico, Mann tenta produzir (e várias
vezes reitera as dificuldades, pois o projeto é ambicioso em um nível
inimaginável) a súmula da sua vida e da sua obra (“um plano de vida que sempre
foi um plano de trabalho”): “1943 ainda era um ano novo quando escrevi as
últimas linhas do quarto romance de José… Para mim, esse quatro de janeiro
foi um dia memorável, embora não especialmente eufórico. A grande obra
narrativa que me acompanhara por todos esses anos de exílio, garantindo uma
unidade em minha vida, estava realizada, consumada, e eu, sem um fardo nas
costas, um alívio duvidoso para quem, há muitas décadas, desde o tempo de Os
Buddenbrooks, vivia sob um fardo sem o qual talvez não soubesse viver”.
Ele se voltou, então, para um tema que
namorara já em 1911: o pacto de um artista com o diabo, utilizando a velha
lenda de Fausto. Todavia, Doutor Fausto não a aproveitaria apenas
para discutir a posição do artista na sociedade burguesa, e sim a destruição da
arte, da Alemanha, da civilização europeia. O artista seria um músico: Mann
pediu ao grande filósofo da Escola de Frankfurt, Theodor W. Adorno, para
orientá-lo na parte musical do livro, além de se basear na teoria dodecafônica
de Schönberg. E, permeando tudo, “quanto da atmosfera de minha vida está
contido no Fausto. No fundo, uma confissão radical. É isso que tanto me
abala nesse livro, desde o princípio”.
Se o romance é uma confissão radical (e é
mesmo), não deixa de ser engraçado observar como Mann se esconde em A gênese do Doutor Fausto, quase modelando ficcionalmente a sua vida. Até as
dúvidas, angústias e perplexidades parecem fazer parte de um todo
“arrumadinho”, pois como o livro foi escrito e lançado, tornando-se logo uma
obra-chave da literatura moderna, “tudo acabou bem”, afinal. Aliás, ele tem plena
consciência disso: “Pode ser agradável conviver com alguém em cujo ombro
baila o duende da criação, alguém obcecado pelo trabalho, dia após dia e ano
após ano por ele envolvido e possuído? Duvido. Maior ainda é a dúvida no meu
caso particular. Como assim? Será que a consciência da própria desumanidade,
dessa existência baseada numa distração concentrada, e por isso não despida de
culpabilidade, é capaz de compensar as insuficiências de nosso rendimento,
granjeando-nos perdão, talvez até mesmo afeto?”.
A gênese do Doutor Fausto não é um
livro para se iniciar em Thomas Mann. Ele só servirá para quem já leu o romance
(e o fato de ser uma obra muito difícil e ter provocado grande impacto é que
suscitou uma “explicação” do autor, nos moldes da de Gide sobre Os
falsos moedeiros) e principalmente para quem é admirador de Mann, e admirador
do artista, que prefere não esmiuçar a pessoa biográfica, e sim como se
processou a alquimia de inúmeras fontes históricas, linguísticas, musicais e
intelectuais, “homogeneizadas” na linguagem do texto (“parece que, no âmbito do
romance, hoje só é levado em consideração aquilo que não é mais romance” é
talvez a frase mais famosa do livro).
Tem-se a confirmação de que Nietzsche foi o
ponto de partida para a criação de Adrian Leverkühn, discute-se o problema da paródia
e da citação-pastiche (inclusive esclarecendo várias, o que será muito precioso
numa releitura), discussão fundamental para a compreensão do papel da crise da
arte na estrutura do romance em si. O nada modesto (com toda a razão) Mann se
compara a James Joyce: “Em termos estilísticos, eu mesmo não conheço nada
além da paródia. Nesse ponto, sou semelhante a Joyce”. Citando o livro de Harry
Levin sobre o autor de Ulisses e pensando em si mesmo, quando o
cita: “A melhor escritura de nossos contemporâneos não é um ato de
criação, mas de evocação, singularmente saturado de reminiscências”.
Para quem gosta de análise psicanalítica,
há o neto, Frido, que inspirou um personagem essencial de Doutor Fausto:
Nepomuk (que morre de meningite), e pelo qual Mann demonstra um predileção pra
lá de suspeita: “mais uma vez fui cativado pelos encantadores olhos
azul-celeste do pequeno Frido, meu neto predileto”; “tocado, como sempre,
pelos belos olhos de Frido”; “Frido muito apegado a mim»; «pela primeira vez
Frido veio de cabelos curtos»; «reencontro com Frido, arrebatador… De manhã com
Frido. Ri às lágrimas com suas conversas e me distraí»; «reencontro com Frido, regozijo”; “o diário já descreve a criança tão meiga de modo enlevado, transfigurado, glorificado:
com a palavra elfo”.
A impressão, no entanto, é que todas essas
pequenas vinhetas são propositais, são uma deliberada maneira de brincar com
seus intérpretes futuros, muito mais do que confissões involuntárias de uma
homoafetividade que sabia que não podia esconder totalmente, hiper-consciente
como era. Não, leitor, para se seguir esse caminho é preciso antes explorar o
que Mann cala ao escrever sobre sua vida do que aquilo que ele deixa como
pista. Um exemplo: por que num livro em que ele está evocando os aspectos da
criação da sua “confissão radical” não abre espaço nenhuma vez para discutir o
suicídio da irmã que inspira um dos episódios mais importantes da trama?
A verdade, entretanto, é que A gênese do Doutor Fausto não é o tipo de livro para se ler todo de uma vez e sair
correndo a escrever sobre ele. Ele é daqueles que o aficionado por Mann pegará
várias e várias vezes e lerá tudo novamente ou trechos aqui e ali. É algo para
se ler “com o lápis na mão” como fazia o seu autor quando queria se aprofundar
numa obra. Quando se tem de falar dele, contrariando a “felicidade clandestina”
da prazerosa leitura íntima, vêm à mente palavras do próprio texto: “Amaldiçoei
o papel do escritor que, nessas circunstâncias, é forçado a se manifestar
imediata e formalmente, exigido a juntar palavras e formar frases”.
Notas:
1 Há uma
tradução, de Ricardo F. Henrique, lançada em 2001 pela Mandarim. Dela extraí as
citações do meu texto.
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