"A invenção de Hugo Cabret" e a autonomia da arte
Por Rafael Kafka
É difícil dizer por que A invenção de Hugo Cabret é um grande
filme. São diversos fatores que me levam a gostar demais dessa obra de Scorsese
que possui um bom apelo para o público mais jovem. Em duas horas, o
roteiro do filme consegue ir da aventura mais fantástica até uma bela análise
das relações entre o discurso da História e o discurso da narrativa artística.
Hugo é um jovem que vive em uma
estação de trem. A sua ida para tal local se deve à precoce morte de seu pai
por conta de um acidente no museu onde este trabalhava. O garoto é levado,
então, para morar com o tio bêbado que cuida dos relógios da estação de trem.
Todavia, um belo dia o tio some e Hugo precisa manter os relógios funcionando
caso ainda queira se manter com alguma moradia, por mais precária que ela seja.
A sobrevivência de Hugo se dá
por uma série de pequenos furtos: de comida, para matar a fome, e de peças da
loja de um senhor de nome George, que um belo dia descobre o garoto e ameaça
entregá-lo ao inspetor da estação. Mesmo conseguindo fugir, Hugo perde um
caderno que mais tarde descobre-se ser uma série de esboços de uma espécie de
autômato que ele tentava consertar com seu pai quando ele veio a falecer.
Em uma tentativa de salvar o seu caderno, Hugo
passar a trabalhar com George ao mesmo tempo que faz amizade com Isabelle, uma
garota cheia de amor pelos livros que nunca foi ao cinema por conta dos
fantasmas do passado de seu tio. Os dois passam então a viver uma grande
aventura na tentativa de consertar o autômato pertencente ao pai de Hugo, que
na verdade possui uma relação muito profunda com o passado de George. É aqui
que Scorsese e sua equipe de produtores passa a criar uma obra que mescla em si
um hino de amor ao cinema e uma grande história sobre o encontro consigo mesmo.
Quando finalmente Hugo e
Isabelle conseguem consertar o autômato, descobrem que tio George é nada mais
nada menos do que George Meliés, um dos criadores do cinema. Ilusionista,
George se apaixonara pela nova arte que então surgia e produziu uma grande
quantidade de filmes nos quais também atuou ao lado de sua esposa. Todavia, por
conta do clima de desespero do pós-guerra de 1914 a 1918, o cinema passa a
causar pouco interesse nas pessoas. George, não suportando os rumos de sua
arte, destrói praticamente tudo o que fez e passa a viver uma vida pacata de
dono de lojas de brinquedos.
Em uma pesquisa em uma grande
biblioteca sobre cinema, a dupla de protagonistas se encontra por acaso com um
historiador do cinema que teve a honra de conhecer Meliés, mas acreditava que o
mesmo achava-se morto havia muito tempo. Os três então decidem-se a mostrar a
Meliés sua obra e a beleza da mesma para recuperar o brio deste que pode ser
considerado importante ícone da cultura moderna.
O roteiro do filme é
relativamente simples, mas com um visual e um conjunto de atuações muito belo.
Além disso, há importantes questões psicológica e existenciais abordadas pelo
filme. A principal é essa relação entre a arte e
a história. Mesmo Aristóteles tendo dito há mais de dois mil anos que o que
diferencia o artista do historiador é que este fala de como as coisas são e
aquele de como elas poderiam/deveriam ser, ainda há pessoas que cobram na
sua ingenuidade que a arte siga os estatutos de logicidade da realidade
concreta.
Isso se torna ainda mais
problemático na era da informação. Tal era, como caracteriza Walter Benjamin em
O narrador, é uma era em que a
narrativa perdeu seu caráter oral e pedagógico: o cronista, que antes ensinava
as coisas ao seu ouvinte por meio de narrativas vivas, foi substituído pelo
romancista, o qual fala de seu universo interior e se perde nos meandros de seu
ser, sem conseguir ensinar nada de concreto, apenas tendo ao seu lado o consolo
da arte enquanto provocação, usando esse interessante termo emprestado de
Ricoeur.
Esse estatuto de arte fechada em
si foi passada para outras produções modernas, como as telenovelas e os longa
metragens: em suas escritas simplórias, tais obras se tornam um complemento das
notícias dadas, fechadas em si mesma, as quais vendem a ideia de objetividade
de mundo que gera uma ilusão de simplicidade que ignora debates mais profundos
como se fossem pura tergiversação. Nesse sentido, as pessoas com sua visão
fechada em um consumismo cultural tolo exigem das obras de arte a mesma
simplicidade lógica do mundo real aos seus olhos. Mesmo que digamos que o
mocinho e a mocinha no final de tudo ferirão a lógica das coisas se ficarem
juntos, reclamaremos ainda mais se os dois morrerem ou terminarem separados,
pois em nossas mentes o amor é o que dá felicidade e essa realidade idealizada
se torna mais real do que a realidade em si.
Por essa limitação de visão é
que a cena de Hitler sendo morto em Bastardos inglórios pode soar chocante para pessoas que se prendem ao real objetivo
como zona de conforto. Tarantino cria um filme cuja ideia deve ter passado na
mente de muita gente com pensamento mais à esquerda: e se um grupo de
guerrilheiros a la Che Guevara simplesmente pegasse em armas e se propusesse a
matar Hitler, impedindo que ele cometesse mais crimes e de certa forma pagasse,
com sua cara triturada de balas, pelo seu complexo de inferioridade que gerou
um massacre sem precedentes na história? Tarantino diz como a história deveria
ser ao seu modo de ver: ele o faz por ser artista, por ser um deus em seu
mundo.
Scorsese faz o mesmo em Hugo. Ele mostra a história de Jean
Meliés por um novo prisma: sai de cena o sujeito histórico e entra o ser humano
frustrado com a falta de lógica do mundo, como o romancista de Benjamin e de
Lukács. Um ser marcado pela fragmentariedade do mundo, sem ânimo para enfrentar
novamente a dura realidade da existência. Tal homem será salvo pelo desejo de
encontrar um sentido de outra pessoa: o jovem Hugo, que por sua vez contará com
Isabelle e seu desejo de aventura, muito ligado ao seu amor pela literatura,
para encontrar a solução do enigma que se não o levará a encontrar uma mensagem
de seu pai, como ele supunha, fará com que ele descubra o amor familiar em
outro seio.
O diretor no decorrer do filme
mostrará diversas vezes como arte e realidade se ligam. Duas cenas são bem
emblemáticas: o trem que está prestes a ameaçar o garoto em um sonho e depois
na vida real; e a fuga do guarda da estação que simula a fuga do filme visto
com Isabelle, clandestinamente, ali pela metade da primeira hora do longa. Além
disso, o próprio desejo de aventura da garota é um convite a se refletir sobre
a maior contribuição da arte e da literatura para a vida humana: a ambição.
Isabelle é alguém que se sente
limitada pela existência. Os livros não a levam a fugir dela, porém. Eles fazem
com que ela pense em viver a vida de forma mais intensa, em um constante
sentimento de aventura. Por isso diz a Hugo que nunca esteve em uma aventura e
gostaria de ajudá-lo para se sentir em uma. Aos poucos, contudo, o seu aparente
egoísmo se transforma em um sentimento muito nobre de altruísmo e ela e Hugo forma
uma interessante relação baseada em companheirismo e aprendizagem: ele se torna
um grande leitor e ela uma grande amante do cinema.
A invenção de Hugo Cabret é certamente um de meus filmes favoritos,
pois mostra bem essa autonomia que a arte tem perante a realidade objetiva da
existência. Ademais, ele mostra bem como que tudo o que procuramos na vida é
esse calor humano o qual nos faz sentirmos amados. Mas, acima de tudo, é um
belo filme sobre como arte em si nos leva a romper limites, a querer ver mais
das coisas, a amar o humano acima de tudo. É um filme que em sua singeleza
consegue se tornar diversos filmes, fazendo um belo hino de amor ao cinema e ao
seu poder de nos fazer sonhar, como tão bem frisa George Meliés após recuperar
todo o seu esplendor.
Ligações a esta post:
>>> Em 2012, quando lançado o filme no Brasil, comentamos aqui.
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Rafael Kafka é colunista no Letras in.verso e re.verso. Aqui, ele transita entre a crônica (nova coluna do blog) e a resenha crítica. Seu nome é na verdade o pseudônimo de Paulo Rafael Bezerra Cardoso, que escolheu um belo dia se dar um apelido que ganharia uma dimensão significativa em sua vida muito grande, devido à influência do mito literário dono de obras como A Metamorfose. Rafael é escritor desde os 17 anos (atualmente está na casa dos 24) e sempre escreveu poemas e contos, começando a explorar o universo das crônicas e resenhas em tom de crônicas desde 2011. O seu sonho é escrever um romance, porém ainda se sente cru demais para tanto. Trabalha em Belém, sua cidade natal, como professor de inglês e português, além de atuar como jornalista cultural e revisor de textos. É formado pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará em Letras com habilitação em Língua Portuguesa e começará em setembro a habilitação em Língua Inglesa pela Universidade Federal do Pará. Chama a si mesmo de um espírito vagabundo que ama trabalhar, paradoxo que se explica pela imensa paixão por aquilo que faz, mas também pelo grande amor pelas horas livres nas quais escreve, lê, joga, visita os amigos ou troca ideias sobre essa coisa chamada vida.
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