À esquerda de si mesmo
Por Manuel
Hidalgo
Arthur
Miller (1935-2005) se fez pelo paradigma do intelectual estadunidense de
esquerda. Seu êxito como criador, seu compromisso político e sua relação com
Marilyn Monroe o dotaram de uma grande projeção pública. Alto, esbelto,
atraente, de ampla fronte, com óculos de pensador e, frequentemente, cachimbo
entre os lábios, ele forjou uma imagem midiática que o tempo atenuou, mas não conseguiu
dissolver. Nova-iorquino, com infância entre Manhattan e Brooklyn, estudou
jornalismo na universidade de Michigan. Filho de imigrantes judeus e poloneses,
manteve certa militância no judaísmo laico, apoiando a criação do estado de
Israel e denunciando o antissemitismo, notoriamente em seu romance Foco (1945).
Todos eram meus filhos (1947) foi, entre
as várias criações, seu primeiro triunfo como dramaturgo na Broadway. De Ibsen
a O’Neill, a obra transparecia suas influências realistas e a herança do Group
Theatre, que Miller caracterizaria substancialmente como santo e senha de seu
teatro, com ingredientes trágicos e intervenções críticas acerca da sociedade
estadunidense. Depois vieram A morte de um caixeiro-viajante (1949,
seu primeiro Pulitzer), As bruxas de
Salém (1953) e Um panorama visto da
ponte (1955, seu segundo Pulitzer) que completam um jogo de quatro naipes
que colocou Miller para sempre num topo do teatro universal do século XX, posição
revalidada com aplaudidas montagens em todo o mundo e com adaptações cinematográficas
e televisivas.
À época de
Caça às Bruxas, o Comitê de Atividades Antiamericanas reparou no conteúdo esquerdista
de suas peças e em suas posições políticas assumidas em público. Chamado a
depor, Miller reconheceu o contato com o Partido Comunista no passado, se negou
dar nomes de outros colegas e foi obrigado a retratar-se do epígono de
comuna depois de ter o passaporte cancelado por alguns meses e de ser
culpado por desacato. A renúncia, talvez um teatro do dramaturgo para uma época
de teatralizações, foi em 1958 ante o Tribunal de Apelação.
Nesse tempo
já estava separado de Marilyn Monroe com quem se casou em junho de 1956, depois
de se divorciar da convivência de dezesseis anos com a católica Mary Grace
Slattery, antiga amiga do colégio e mãe de seus dois primeiros filhos, Jane e
Robert. Donald Spoto, biógrafo da estrela, assegura que a relação entre Miller
e Monroe, ainda que tenha conhecido momentos felizes, foi sempre difícil. E não
se deveu exclusivamente aos desequilíbrios e vícios da muito sensível e
inteligente atriz, mas pela arrogância e insegurança do escritor, que quando passava
por uma crise de criatividade chegou a depender financeiramente da
companheira; foi nesse período que Monroe sofreu vários abortos espontâneos e não
alcançou seu objetivo de ser mãe e, acrescentando às adversidades do casal, o seu
envolvimento fugaz com Yves Montand.
Fantasiando
em ser o gênio que faria da cômica e sex-symbol uma grande atriz dramática,
Miller escreveu para ela o tenebroso roteiro de Os desajustados (1961). Uma gravação tormentosa de John Huston que
se arrastou por quatro anos pôs fim aos restos do casamento. Durante as filmagens,
Miller envolveu-se com a fotógrafa austríaca Inge Morath, amiga de Robert Capa
e Henri Cartier-Bresson e destacada integrante da Agência Magnum, que
trabalhava no filme. Casaram-se no início de 1962, seis meses antes da morte de
Monroe; tiveram dois filhos, Rebecca e Daniel. Rebecca casou-se com Daniel
Day-Lewis e tornou-se uma importante escritora, roteirista e diretora de cinema;
fez ela, os passos do pai, portanto.
E Daniel?
Nascido com Síndrome de Down foi imediatamente internado num centro clínico às expensas
de Miller e, ao que parece, contra a posição de Morath. Nunca se soube nada
sobre ele. O escritor sequer o menciona nas suas memórias. Quando, nos últimos
anos de vida de Miller foi que o público só teve notícia da existência de Daniel quando pai e
filho se reencontram, mas a reputação do escritor sofreu um grande baque. Miller,
no intuito de reparar-se do erro incluiu o filho em mesmo grau de divisas de
seu patrimônio no testamento.
Desse caso,
a pergunta foi inevitável: como alguém que se comprometia publicamente com
tantas causas havia declinado suas responsabilidades mais pessoais? A pesada
sombra do egoísmo, a altivez, a vida dupla e a inconsequência passaram a fazer
parte na composição da figura de Miller. O escritor publicou suas memórias, Voltas ao tempo, em 1987. Embora ignorasse
então tudo sobre Daniel Miller, o episódio do Caça às Bruxas e o casamento com
Marilyn Monroe, foram, primordialmente, motivos suficientes para que o texto fosse examinado pela crítica detalhe a detalhe. O já mencionado Spoto escreveu uma crítica
duríssima em seu livro sobre a atriz, qualificando a autobiografia de Miller
desta maneira: “notadamente incompleta, seletiva com respeito aos dados de seu
casamento, está singularmente empenhada pela autodefesa; só pode ter sido escrita
por alguém afundado em seus próprios remorsos e em seu sentimento de culpa”.
Inge Morath
e Arthur Miller viajaram muito por diversos países durante os anos 1960 e 1970.
O escritor elaborou textos para os livros e exposições de fotografia dela. É um
lugar comum afirmar que a produção teatral dele não voltou a conhecer o vigor e
a transcendência alcançados com suas deslumbrantes obras dos anos 1950. Não é
de um todo verdade. A verdade que mudaram os tempos e as tendências. Em nessas ocasiões,
Miller já não encontrava a força e o brilho de suas antigas peças. Outras vezes, não
dava com uma produção de seu gosto.
Mas títulos
como Depois da queda (1964), O preço (1968), A descida do monte Morgan (1991) ou Broken Glass (Cristais
quebrados, tradução livre, 1994) confirmam, sem a sonoridade dos citados
acima, o alto relevo de uma trajetória sustentada durante aproximadamente setenta
anos. Prova disso é que os prêmios de reconhecimento nunca deixaram de vir.
Em 1997, foi
nomeado ao Oscar de Melhor Roteiro Adaptado por As bruxas de Salém, a segunda versão da peça para o cinema, com participação
de seu genro. Em outubro de 2002, ano da morte de Inge Morath, recebeu o Prêmio
Príncipe de Astúrias.
O criador do imortal Willy Loman morreu no pequeno
povoado de Roxbury, no estado de Connecticut, o mesmo lugar onde viveu seus
melhores e piores dias com Marilyn Monroe.
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