Um teatro às escuras, de Pedro Tamen (Parte 1)

Por Pedro Belo Clara

Pedro Tamen. Foto:António Pedro Ferreira


É uma dúvida que paira no mais secreto imaginário de todos nós: o que acontece quando um teatro se encontra em plena escuridão? Dado o misticismo que naturalmente se associa ao lugar, palco de tantas personagens outrora aí insufladas de vida, não se contestará a génese do anseio que sustenta a questão.

Um teatro é um lugar de magia. Mesmo para os menos aficionados, uma simples visita a tais instalações será suficiente para instigar obscuros encantos, por mais infértil que seja a mente que percepciona. Talvez os espectros das ditas personagens ainda vagueiem pelos corredores desertos, os risos ou os sentidos aplausos de uma plateia agora ausente ainda ecoem pelas galerias despidas de humano calor. Ou talvez o secreto anseio que o Homem cultiva em ser outro que não aquele que é, seja o bastante para nele despertar as mais íntimas fantasias. Um teatro é o palco onde podemos ser alguém que só em sonhos pensámos ser.

São meras considerações, as linhas atrás expostas. Mas constituem a introdução mais adequada, assim nos parece, para o livro que hoje trazemos a discussão. Podemos até revelar que algumas das ideias antes lançadas terão nesta obra uma explicação “poeticamente convincente”. Ou, considerando a pior das hipóteses, a “explicação possível”.

Na verdade, podemos receber este trabalho como um criativo exemplo daquilo que eventualmente acontece num teatro quando este imerge na mais profunda escuridão. Contudo, o espaço físico da obra encerra uma metáfora muito mais complexa do que a sua simples aparência poderá propor. Veremos também, ao longo de cada página, que o mesmo não se encontra propriamente vazio. Ou seja: a vida que o irá povoar não surge do escuro que se instala. As luzes apagam-se misteriosamente, e nesse momento a acção acontece. Fantasmas que ganham vida no escuro?

Talvez constitua para si, caro leitor, um caso de espanto o género literário em que este livro foi moldado, pois contrariando diversas assumpções o mesmo revela-se, com todo o esplendor, um livro de poesia. E no que ao génio criativo que o alimenta diz respeito, confirma-se como uma agradabilíssima surpresa. A obra foi lançada em 2011 pela Dom Quixote, sucedendo a O Livro do Sapateiro, que a Pedro Tamen havia valido o Prémio Literário Casino da Póvoa – apenas uma das diversas distinções que este poeta e tradutor, nascido em Lisboa no ano de 1934, recebeu ao longo da sua distinta carreira.

Composto no estilo poético que Tamen desenvolve nos últimos trabalhos editados, a obra tece-se em quarenta poemas protagonizados por personagens distintas e sem grande caracterização. Cada poema, no fundo, é a fala de cada personagem, marcando o seu momento de intervenção. Compreender-se-á, portanto, como a poesia deste livro surge totalmente interdependente, com cariz sucessório e de linha crescente. Por outras palavras: a acção desenrolar-se-á poema a poema rumo ao desenlace final.

De certa forma, diga-se, o próprio livro parece conter uma brevíssima peça de teatro dentro si. Afinal, não deixa de contar uma história através da situação que propõe. Há, assim, uma narrativa dentro da poesia que apresenta. A inscrição da obra, retirada a Paul Claudel, leva-nos nessa direcção: «Escutem bem, não tussam e tentem compreender um pouco». Traduzida livremente do francês, a frase elegida parece preparar o leitor. Completando a ilustração, e apenas para confirmar a ideia que lançámos, confidenciamos que em Junho de 2013 o Teatro Municipal da cidade da Guarda levou à cena a obra que agora discutimos, prova da sua capaz adaptação às exigências dramatúrgicas.

Falámos atrás de personagens e, na verdade, o livro contempla o total de dez, embora só duas assumam um total protagonismo: Ele e Ela. Duas personagens que ao longo da escuridão reinante vão largando os seus suspiros e anseios em várias tentativas de se abraçarem um ao outro. Colada a esta imagem vem certamente uma outra, de maior popularidade: a eterna história dos amantes que se buscam pelos sinuosos caminhos da existência humana. A ideia surge de um modo muito natural à medida que a leitura avança, e sem grande objecção poderá ser aceite.



O poema de abertura, contudo, não passa de uma introdução. Trata-se da intervenção, se assim quisermos, do narrador, embora, como acontece com os demais, o dito não tenha essa indicação em epígrafe. Como convém, é com ele que se marca o acontecimento que dá origem à narrativa:

(...)
As luzes apagaram-se de repente
e de repente as personagens acederam à luz
e saltaram incandescentes para o palco.

Para um palco que ninguém viu então,
para um palco que nunca ninguém viu.

A primeira personagem a merecer palavra é Ele, o amante que no escuro assiste ao despertar da sua ânsia: o encontro com aquela que ama, mesmo que não saiba ainda ao certo quem possa ser.

Eu digo-te onde estou
e logo saberás quem sou.

Pudesse ser assim tão simples... No entanto, no início da jornada não cintilam todas as esperanças? A fé inicial é quase do tamanho da paixão que desenfreada cresce, pelo que as promessas não tardam a ser urdidas:

Na escuridão do mundo
iluminarei a solidão do espaço
e passo a passo os olhos hão-de ver
o que mais ninguém vê.

Longe, talvez até mais perto do que imagina, uma voz responde: «Quem sou eu então se não me vês?». Eis o começo do terceiro poema da obra, dando a vez a Ela de responder aos anseios de quem na escuridão a procura. Curiosa, desde já, a ideia que a personagem lança, contemplando a identidade do ser amado, que só se efectiva quando é percepcionado por aquele que o ama.
           
Que solidões dos anos que passaram
e dos futuros densos nos separam
neste escuro impensado?

Uma dentre as diversas questões que cada personagem, em sua vez e de modo em certas ocasiões repetido, embora não quanto à substância da pergunta, vai colocando ao longo da obra. É, como vemos, um trabalho de indagação este que temos em mãos, uma demanda por respostas encabeçada pelas próprias personagens, dada a implacabilidade do vazio reinante. Será caso para dizer: da mais profunda escuridão irrompem todas as questões, por forma a sobre o imenso pano de fundo derramar um pouco de luz.

O diálogo entre Ele e Ela é, como dissemos, central a toda a obra, não obstante a intervenção de outras personagens, também elas presentes no teatro em causa. Embora, recordemos, só os primeiros se verão catapultados para o palco do mesmo.

A primeira intervenção de uma personagem fora deste duo de destaque surge pela “voz do público” e traz para cena novas indagações, como se a súbita escuridão a todos fizesse duvidar das certezas tidas aquando do tempo em que a luz reinava: «Se não vejo, aonde leva / esta verdade que é treva? / (…) / Que trema / a luz que queira saber / se isto é viver ou morrer (...)».

Surge um anseio de luz e a revelação dá-se por si só: Ele enfim denuncia o vislumbre daquela que busca.

(…)
eis que te vejo e vejo que és pessoa,
e vejo que és mulher
(…)

E toda tu és chispas
que não iluminam apenas este mundo
mas o mundo de todos.

Quando o amante enfim se revela em corpo, que hora não cintila? Que noite não se vê dia? Porém, as ilusões são várias... E os enganos, como é óbvio, acumular-se-ão: «Eu não sou nada» – assim se acha Ela aquando do novo apelo de quem por ela busca – «Eu não sou nada – escuridão / qual o teatro em que ninguém me vê».

 A crise de identidade, neste momento, parece ser um “mal geral”. Pois logo se sucede, a este dizer, o do Contra-regra: «Não percebo o que faço, / faço o que não percebo. / Mas perceber não é / o eu ser o que sou». A sombra que sobre o teatro caiu a todos mergulhou num esquecimento profundo, mesmo tratando-se tudo aquilo de um «comboio fantasma» ou «fantasma comboio», como alguém do público dirá. Em plena escuridão as dúvidas adensam-se, e a necessidade de sondar a origem da luz e, por fim, permitir o seu rápido retorno, torna-se a cada poema mais urgente.

A consciencialização de quem na verdade são e do que fazem naquele lugar cresce de modo gradual à medida que a “narrativa” se desenrola, ainda que só os amantes pareçam compreender que a fonte da luz está dentro do seu próprio ser e que lhes bastará o ansiado encontro para se consumirem num nada. Em novo diálogo, os versos iniciais destes dois poemas, é dito:

(Ele):
Se mais te aproximares
toda tu serás luz.

(Ela):
Como se fará isso
se nem existir pareço?

As certezas vão se tornando mais sólidas: «Se não te vejo não existo» (Ele). Mesmo em quem outrora tanto duvidara: «Eu sou. De pé eu sou / igual a mim mesma e ao passado / por onde não passaste» (Ela). Dado esse passo, Ela irá lançar uma luz sobre a negra atmosfera que a todos assola, anunciando o princípio da sua compreensão; apesar de Ele ser a personagem que aparentou, até ao momento, possuir um discernimento distinto das demais, exibido de modo mais destemido e apurado.

Nesta escuridão não há mais que perguntas,
não há mais que passados revolvidos
cheios de felizes rabanadas
e uma criança a chorar.
           
No meio desta fase do diálogo mais comum surge Haydn, o autor da música, com um longo lamento («desafinado e tão baço / como a sorte destinou / às pausas que fui criando»), sem que não cesse, contudo, de se questionar: «Que venho aqui fazer, quando não vêem o meu nariz disforme?». Mas, em tom sóbrio e abnegado, até sabe de seu intento: «Venho ao que sempre fiz: deixar-me adivinhar».

A escuridão desnorteia as personagens mas, como vimos, também as leva a questionar. Não será esse um princípio revelador? Isto é, um convite ao reaparecimento da luz? Será que por tão frágil arte a mesma se poderá anunciar, enfim? Quem não esconde a sua perplexidade é o Encenador:

Tudo me ultrapassa
e ninguém me obedece.
(…)

Sem luz ninguém dirige

(...)

Há uma linha de pensamento que se clareia. Atentemos nas palavras da personagem antes citada e no sentido que as ergue: não se revela, ao atento olhar, uma intenção de renúncia? Todos os acontecimentos a ultrapassam e, pela primeira vez, a dita admite a sua incapacidade em exercer controlo. Na sua segunda intervenção, mais adiante, teremos o confirmar das ideias aqui lançadas. Vejamos: «Nem eu sei quem sou / (…) / vou desistir da profissão antiga / de dizer o destino».

De facto, «sem luz ninguém dirige». Em plena escuridão toda a trama perde o sentido. Que é ela, afinal? Uma simples farsa montada para entreter intervenientes e espectadores enquanto as luzes sobre ambos incidem? Quando cessam de iluminar, o que sobeja? Um nada opressor em que alguém é ninguém? É neste preciso instante que começamos a entender como o “teatro” pode servir de metáfora à existência humana, questão essa, diga-se, que no momento em que recordamos Shakespeare despoja-se do seu efeito inovador, não obstante a facilidade com que o sentido se molda ao que é escrito.

Ligações a esta post:
>>> Leia aqui a segunda parte do texto

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Pedro Belo Clara é colunista do Letras in.verso e re.verso. Por decisão do editor do blog, nos textos aqui publicados preservamos a grafia original portuguesa. Nascido em Lisboa, Pedro é formado em Gestão Empresarial e pós-graduado em Comunicação de Marketing. Atualmente centrado em sua atividade de formador e de escritor, participou, com seus trabalhos literários, em exposições de pintura e em diversas coletâneas de poesia lusófona, tendo sido igualmente preletor de sessões literárias. Colaborador e membro de portais artísticos, assim como colunista de revistas e blogues literários, tanto portugueses como brasileiros, é autor dos livros A jornada da loucura (2010), Nova era (2011), Palavras de luz (2012) e O velho sábio das montanhas (2013) – sendo os dois primeiros de poesia. Outros trabalhos poderão ser igualmente encontrados no blogue pessoal do autor – Recortes do Real (artigos e crônicas diversas).
       

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