Um beijo de colombina, de Adriana Lisboa
Por
Pedro Fernandes
Adriana Lisboa. Foto: Julie Harris |
Não faz muito tempo que, diante de algumas
obras, sempre me pergunto o que faz escritor para agir como se pegasse o leitor
pelo braço e o mergulhasse numa correnteza de sentidos para só devolvê-lo a
superfície de vez em quando como se só quisesse permiti-lo respirar por um
instante os ares que ainda correm ao seu redor e logo voltar a levá-lo ao mesmo
ponto de imersão inicial.
No princípio de tudo a resposta para isso vinha
com um medo de, se deixar o texto ali em repouso era uma maneira de favorecê-lo
a fugir dessa correnteza de sentidos; por isso, quase caí de fome quando li pela
primeira vez, de uma sentada, como se diz, Filomena
Borges, de Aluísio Azevedo. Temia não chorar tudo o que tinha para chorar
enquanto sucumbia à forma de tratamento (a falta dele) de Filomena para com
Borges. Nesse romance, o leitor encontra a desconstrução da legítima metáfora de
que os opostos se atraem, afinal, Filomena é ambiciosa e interesseira, quer o
casamento apenas como uma forma de ascender socialmente, enquanto Borges,
embora seja rico, é sujeito sem ambições, bom moço, tranquilo, o que, em termos
de comportamento, não condiz com o espírito espevitado de Filomena.
A condição ingênua de leitor iniciante ficou
mais ou menos colocada de lado e, claro, por ser um mero medo de traição da
memória não responde, portanto, essa curiosidade de sentir-se preso à
narrativa. Também, depois de sair dessa fúria de sentidos, somos tomados quase
sempre por uma certa condição de limpeza ou de inquietação do espírito. Nunca
somos mais os mesmos de quando mergulhamos nessas águas. Daí, julgo que essa
seja uma questão igualmente antiga porque para isso não tem outro nome se não o
que Aristóteles chamou, na leitura da tragédia, por catarse.
Mas, e quando não nos vem nenhuma dessas
sensações? É somente um arroubo ou feitio da narração de enfeitiçar o leitor?
Ou mesmo, a pura e simples não-sensação é já um modo inconsciente de dizer para
nós mesmos: essa realidade me pertence e, logo, não sou a mais pobre das
criaturas? Isto é, uma condição de se achar irmanado com o outro pelo
reconhecimento de haver nele traços daquilo que acreditamos só existir em nós
mesmos?
Como não sei a resposta (apenas levanto
suposições), vou ficar, para não cansar mais o leitor com esses volteios, com
essa última impressão depois de ler Um
beijo de colombina, de Adriana Lisboa, romance que felizmente foi reeditado
no projeto de mudança da obra da escritora para a Alfaguara Brasil. Este é na
verdade o seu segundo livro do gênero, de uma obra que começou a ser publicada
a partir de 1999 com Os fios da memória,
finalista do Prêmio José Saramago, honraria que viria para as mãos da escritora
– também cultora de outras formas em prosa (contos, infantis) e em poesia – em
2003 com o romance Sinfonia em branco, publicado em 2001 e reeditado em 2013 no âmbito do mesmo projeto de
renovação de sua obra.
Há duas coisas nesse livro que gostaria de sublinhar
nestas notas – e talvez a partir delas consiga oferecer ao leitor uma ampliação
sobre minha inquietação acerca desse segredo de feiticeiro do escritor. A
primeira é a forma como a narrativa está construída. Narrado em primeira pessoa
por um homem que busca conviver com a perda de um amor (ou somente um sopro
avassalador de uma paixão dessas que aparece na vida da gente como gripe, pelo
ar, e é capaz de nos arrastar para a cova, caso não se coloque em ação certas
doses de razão). Sim, em linhas gerais, o que temos é uma escrita nascida da
perda, mas logo tornada uma tentativa de compreender ou organizar aquilo que
ficou embaralhado pela força desse sopro avassalador; a escrita como resposta
sobre si (porque ao perscrutar a convivência com Teresa, o amor em questão, a
personagem também se debruça sobre sua própria imagem e seu passado recente,
logo ele que se diz um homem, apesar de formado em Letras, incapaz de organizar
qualquer coisa em forma de romance). A narrativa nasce pelo motivo da escrita
como necessidade do escritor, logo, este é um (possível) romance sobre o
romance.
Percebam aqui, na desculpa do narrador e no
desnorteio que vive marcado pela perda, as razões de uma escritora, a própria
Adriana no exercício de perquirição sobre a ideia de construção de uma narrativa,
fator que ficará mais claro, quando o leitor descobrir que Teresa, a motivadora
da escrita dessa personagem de Um beijo
de colombina, era também escritora (já em fase de reconhecimento) e que
estava, depois de concluir um romance enviado à editora, no exercício de
composição de outro texto, o seu quarto livro. Ao longo da narrativa alojam-se
pequenos cartuchos que detonam (no bom sentido) com a revelação do próprio romance
que o leitor tem em mãos.
Teresa aparece na vida dessa personagem numa
dessas festas jovens, mesmo sendo os dois não tão jovens assim, e logo passam a morar
juntos quando ela, diagnosticada com hepatite, lhe convida para passar um
período ao seu lado enquanto se recupera da doença. Entre viver numa casa num
bairro de periferia dividindo espaço com um violinista gay que lhe assedia, a
personagem vê na mudança uma possibilidade de ir ficando aos poucos até que,
passada a doença de Teresa, tenha para si uma nova casa. Teresa havia saído de
um relacionamento com outra Teresa e a aproximação dos dois, ligados por
interesses domesticáveis por um e por outro, só pode resultar nesse amor que
não deve ser confundido com uma forma romântica, mas integralmente ajustada aos
modelos convencionais do amor na contemporaneidade: primeiro mais corpo que
sentimento, consumido entre cumplicidades e doses sem nenhum pouco de medidas
de sexo. Algo precisa acontecer para recobrar quais sentimentos, de verdade,
embalam esse vício do corpo. E é aí que se interpõe a possível morte de Teresa, o
inesperado acontecimento que fará essa personagem revisitar que força os uniu
tão demasiadamente.
A segunda coisa que é válida assinalar é a
relação de intimidade entre a narrativa e a poesia de Manuel Bandeira (desde os nomes das personagens principais: Teresa e João, o narrador). Aqui, o
leitor compreenderá questões como, por que a obra recebe o título que recebe,
em que corrente se apoia a construção desse amor entre a escritora Teresa e
esse professor de Latim que depois da morte dela se dedica rudemente à escrita.
A poesia de Manuel Bandeira não é, portanto, um tema solto, atravessado ou
inserção justaposta ao romance. Não. Ela é a própria seiva da qual se alimenta a
narrativa de Um beijo de columbina; é
um extenso e intenso diálogo. Inclusive, sua poesia está citada direta ou
parafraseada no corpo de toda obra, como se uma escrita por sobre a escrita
verdadeira, digamos assim, do romance.
Essa integração entre a obra em desenvolvimento
e a obra já consagrada é o exercício que completa a primeira observação
anteriormente destacada, porque chuleia as duas vidas aparentemente encontradas
ao acaso. Aqui, apenas chamo a atenção para dois efeitos que considero faltas:
uma, a necessidade de, ao modo de um trabalho acadêmico, citar no final da obra,
os textos eleitos para a composição da narrativa. Não sei se por opção da
autora e certo zelo ou respeito para com a obra de Manuel Bandeira ou se por
exigências editorais, mas essa revelação é desnecessária e rouba todo brio de
especulação construída pelo leitor ao longo da narrativa. Cito, para afeito, a
composição de O ano da morte de Ricardo
Reis, de José Saramago. Por mais que a obra do heterônimo de Fernando
Pessoa esteja aí presente, o leitor sabe que está, isso não obriga ao escritor
revelar num apêndice ou num conjunto de notas quais os poemas elegidos para a
composição da narrativa, por exemplo.
A outra questão, é que notei em alguns momentos
uma certa maneira de forçar a todo custo a inserção da obra do poeta – caso que
acontece com a relação entre o poema “Vou-me embora para Pasárgada” e o
devaneio de João num possível retorno para o lugar ao lado da
ex-namorada. Fora isso, que pode ser justificado pela própria inexperiência do
narrador, afinal é nele que a escritora deposita todo empenho pela existência
da narrativa, Um beijo de colombina
inscreve-se, honestamente, como um romance dos mais importantes na novíssima
literatura brasileira, justamente, porque é, e o leitor que leu até aqui este
texto terá percebido, uma narrativa muito bem arquitetada. E Adriana Lisboa
prima por um estilo limpo, sem grandes volteios; simples e ao mesmo tempo
marcado por uma leveza e um encanto poético.
Além do diálogo construído com a obra de Manuel
Bandeira, a romancista bebe na fonte clássica da Commedia dell’Arte italiana do século XVI, ao tornar as personagens
envolvidas não numa comedia mas num drama (transpostas na forma contemporânea),
em metáforas, não em sátiras, sobre o indivíduo contemporâneo. Toda essa forma
de sentido, aliás, é uma vivência da própria literatura do poeta brasileiro,
quem, apaixonado pela condição carnavalesca assumida pelas personagens da Commedia, tratou de redigir Carnaval em 1919. Na obra, Bandeira se
vale dos motivos e das personagens do clássico italiano (Pierrot, Colombina,
Pierrette, Arlequim) para designar um conjunto diverso e instável de emoções.
No romance de Adriana Lisboa, esse conjunto responde
pela reflexão sobre as relações, o amor, o medo, a vida, o tempo, a beleza e um
rol de outras questões que insere o drama narrado numa dimensão universalizante.
Isto é, essas que independem do lugar do indivíduo no mundo ou do modelo de
vida adotado por ele. Talvez resida nesse ponto a compreensão ao menos adequada
para que esse romance fisgue o leitor desde o começo e só o solte no final de tudo.
Certos mistérios são soltados de maneira como quem oferece pequenas doses de um
bom doce que lhe obriga a permanecer atento para ganhar alguma recompensa no
final – quem sabe todo o doce.
De certo modo o trabalho de João é o
de dar forma ao romance que seria (ou é?) escrito por Teresa, pensamos. Sim, mas é fato
que não consegue. O leitor perceberá, no desfecho de Um beijo de colombina que o produto da escrita dessa personagem é
uma possibilidade do romance de Teresa; ainda que a ideia seja trabalhada por
ele, os seus escritos são já outro
texto. Um texto possível.
Um
beijo de colombina que volta ao
tema da metanarrativa, toca assim na revisão de várias outras questões, além do
próprio ato da escrita: o tema do autor, do ponto de vista (note que aqui a
experiência de leitura de Manuel Bandeira é mediada por uma sorte de outras
condições diferentes das que seriam vividas por Teresa), ou a constante e nunca
amistosa relação da ficção com a ideia a concepção racionalista de verdade. Esse
último tópico é visível na forma como a morte de Teresa é tratada pelo
narrador: enquanto a imprensa forja um fim trágico para a escritora a partir
dos versos soltos de um poema de Manuel Bandeira deixado na porta da geladeira
que indicaria uma morte por afogamento, ele prefere, na combinação dos vários
acontecimentos, enquanto descobre a obra e a vida do poeta brasileiro, não
construir afirmações fechadas, mas imaginar toda uma sorte de situações, todas
igualmente possíveis de ter acontecido. Uma delas, e não irei responder, é, não inscrita por João (ao menos no auge da cobertura midiática), mas sugerido pelo leitor depois das próprias possibilidades elencadas pelo narrador, e se Teresa não tiver morrido? E se o vivido pela narrativa de João for narrativa dessa escritora?
Outra habilidade de Adriana Lisboa com a construção
da narrativa é a de, mesmo construindo um texto de forte apelo estético e em
profundo diálogo com a cultura literária que lhe antecede, não deixa de inserir
as questões sociais, muitas delas muito caras nas discussões sobre o modo de
vida nas grandes cidades, como se fizesse da obra uma janela para revisar
determinadas posturas. As corruptelas do dia-a-dia (como o simples uso da contramão
que facilita a vida diária do motorista), a violência (do taxista capaz de surrar
um menor apenas pela aparência até levá-lo à morte aos olhos da polícia que
apenas desvia o olhar para a situação), são dois exemplos impossíveis de deixar
de citar, que demonstram essa vivacidade do texto de Adriana Lisboa.
A brevidade do texto não deixa o leitor mais
simples, se estiver incomodado por perder o fio das emoções, cair de fome como
quando li o Filomena Borges, de
Aluísio Azevedo. Dá para ler sem medo numa sentada. Agora as razões que inscrevem
esse romance no rol dos que enfeitiçam quem o lê está na forma como a romancista
alia prosa e poesia numa trama muito bem arquitetada, marcada por uma escrita
leve e elegante. E, sobretudo, por construir personagens tão próximos que nos
sentimos irmanados com eles nesse complexo drama que é viver e amar. Isso serve,
por enquanto, como uma resposta para aquela inquietação inicial. Não é uma
conclusão definitiva, claro.
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