Um bando de selvagens desajustados
Por Carlos
Reviriego
Arthur Miller e Marilyn Monroe. No auge da inserção do dramaturgo no cinema. |
A relação de
Arthur Miller com a indústria e a arte do cinema foi esquiva, tangencial, anedótica,
frustrada e, em termos pessoais, catastrófica. São muitas as traduções para a
tela de seus textos teatrais, embora poucas memoráveis, enquanto seu vínculo
direto com o cinema está obviamente marcado pelo seu curto casamento com a
estrela mais deslumbrante da sétima arte, Marilyn Monroe. Na verdade, foi na
tela onde ambos deixaram a consequência de sua devastadora ruptura. No selvagem
e crepuscular Os desajustados (The
Misfits, 1960) filmado por John
Huston está a autópsia de um amor que já era cadáver, o amargo fim de uma relação
e o último filme de dois ícones do século XX: Clarck Gable e a própria Marilyn.
De fato é praticamente a única produção do gênero, hoje de ressonâncias míticas,
que contou com a participação direta e a supervisão constante de Miller –
escreveu o roteiro a partir de um texto seu publicado na Esquire e se envolveu pessoalmente, durante anos, na produção e
gravação – quem havia tido alguma (má) experiência com Hollywood.
A primeira
delas foi talvez a que determinou seu afastamento da indústria, que o
dramaturgo considerava basicamente um negócio de canalhas e vedetes, quando no
início dos anos quarenta foi contratado como roteirista de Também somos seres humanos (The story of G. I. Joe, 1945), um drama
bélico dirigido por William Wellman e protagonizado por Robert Mitchum e
Burgess Meredith. Miller abandonou o projeto antes mesmo de iniciar as gravações
quando o produtor interveio no roteiro e o escritor não estava de acordo com as
mudanças. Anos mais tarde, depois de alcançado o reconhecimento como
dramaturgo, lhe oferecem a oportunidade de aparecer nos créditos (o filme era
assinado por três roteiristas e não tinha o nome de Miller), mas como a oferta não
incluía os direitos do autor (o filme havia tido um êxito considerável e ia ter
uma reestreia), Miller negou o uso do seu nome.
Outro
projeto também falido, The Hook, que
escreveu para o cinema no final dos anos quarenta, guarda uma estreita relação
com Elia Kazan, uma figura crucial na vida e na obra de Miller. A história
aponta ao coração da caça às bruxas. O roteiro, que nunca alcançou as telas (e
que só veio a lume pela primeira vez em junho de 2015 numa adaptação para o
teatro, em Londres) era ambientada nas lutas entre máfias sindicais no coração
do Brooklyn, e parece improvável que Elia Kazan não tenha se baseado nela para realizar,
alguns anos depois, Sindicato de ladrões
(1954), embora sempre tenha negado o
feito, enquanto o roteirista, Budd Schulberg se recusou a fazer qualquer referência
sobre a obra em suas memórias. The Hook
é provavelmente o não-filme mais influente da história do cinema, pois leva implícita
o germe do casamento Miller-Monroe e o distanciamento profissional e pessoal do
dramaturgo com Kazan.
Frank Taylor, Montgomery Clif, Eli Wallach, Arthur Miller, Marilyn Monroe, John Houston e Clark Gable, o elenco de Os desajustados no set em Nevada, 1960. |
O roteiro de
Os desajustados, ainda que inspirado
nas experiências de Miller em Nevada – onde em 1956 conheceu um grupo de
vaqueiros que se dedicavam à captura de cavalos selvagens para convertê-los em
ração para cachorro, foi como concebido como um presente do companheiro para a
companheira. O papel de Roslyn estava tão feito pela medida de Marilyn que ele
evocou dados biográficos e diálogos que havia mantido com ela. Quando o cowboy veterano interpretado por Gable
diz a Roslyn que é “a garota mais triste” que já conheceu na sua vida, não faz senão
reproduzir as mesmas palavras que Miller disse a Monroe pouco tempo depois de
terem se casado.
Os desajustados é um
cemitério de lendas, uma conferência selvagem de desajustados, seres deslocados
e disformes que já não se encaixam mais no mundo. O valor do filme não é
somente de caráter ficcional, como pioneiro dos westerns crepusculares, seu valor é também puramente documental,
pois registra certa morte da era dourada do cinema. As longas filmagens no Reno
e no deserto de Nevada foi um inferno doentio e para todos os envolvidos e
viciados: Monroe aos comprimidos, Clift ao álcool, Huston ao jogo... À vista de
todos, Miller iniciou uma relação com a fotógrafa Inge Morath (cujas imagens do
filme são realmente espetaculares), com quem se casaria alguns meses antes do suicídio
de Monroe. As imagens em preto e branco de Os
desajustados nos levam hoje a um limbo em que o caráter físico e derrotado
do cinema de Huston convertem a experiência num ato quase sem pudor, de uma
beleza desconcertante.
Depois
disso, uma vez conquistado seu lugar na história do cinema, Mille pareceu selar
para sempre sua colaboração com a arte cinematográfica. Se envolveu em todo
caso com o roteiro de O crime que o mundo
esqueceu (1990), filme dirigido pelo tcheco Karel Reisz a partir da obra Some kind of love story. Também participou
na produção de Broken Glass (1996), adaptação
que ele mesmo escreveu (e pela qual foi nomeado ao Oscar) e protagonizado seu
futuro filho protagonizado por Daniel Day-Lewis (o companheiro da atriz Rebecca
Miller). Sua última relação com o cinema foi como ator e corroteirista de Eden (2001), do grande diretor
israelense Amos Gitai. Baseado na narrativa de Homely girl do próprio Miller, o filme narra a história de um casal
de sionistas estadunidenses que migram para a Palestina. Apresentado no
Festival de Veneza, o filme foi recebido mais como reconhecimento que como
glória pelas telas internacionais.
Variações de Loman e Carbone
O
protagonista de A morte de um caixeiro-viajante
é um dos papéis mais cobiçados no teatro e nas telas. Muitos quiseram ver-se na
personagem de Willy Loman um símbolo do low-man
(homem vulgar), embora Miller tenha extraído este nome do filme de Fritz Lang, O testamento de Doutor Mabuse. O primeiro
ator cinematográfico a encarná-lo foi Frederic March com a adaptação de 1951
produzida por Stanley Kramer e dirigida por László Benedek. Dustin Hoffman
interpretaria Loman na adaptação televisiva do alemão Volker Scholondorff em
1985, cujo êxito foi tanto que acabou indo parar no teatro. É desde então muito
mais interessante do que o que havia protagonizado Lee J. Cobb em 1966, sob a direção
de Alex Segal.
O primeiro dos filmes baseados numa obra de Miller foi Todos eram meus filhos (1948) com Burt
Lancaster e Edward G. Robinson. As bruxas
de Salem é provavelmente a obra mais revisitada desde que o francês Raymond
Rouleau a dirigiu para o cinema em 1957, com Yves Montand e Simone Signoret e roteirizada por ninguém menos que
Jean-Paul Sartre – embora Miller tenha renegado a adaptação pelos sentidos
marxistas de que acusou o francês. Mas ficou entusiasmado em todo caso com a versão
cinco anos depois para Um panorama visto
da ponte (1962) com Raf Vallone na pele de Eddie Carbone. É este filme sem
grandes estrelas ou ambições que captura de forma admirável o texto da obra de
Miller. Seu primeiro romance, Foco,
teve de esperar até 2001 para ser adaptada por Neal Slavin.
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