Short movies, de Gonçalo M. Tavares
Por Pedro
Fernandes
“Eu, da
minha janela consigo ver tudo”
A imagem
antes da imagem. Assim poderíamos definir este livro que rompe com a própria
natureza enformadora da ideia de livro; o objeto que o leitor tem em mãos é
lógico que se trata de um livro, mas o seu conteúdo, capaz de nos obrigar a
reinventar o gesto da leitura, requer pensarmos em outros objetos, como um
catálogo que coleciona cenas ou um álbum de fotogramas verbais. Essa
constatação é sugerida desde o título que, se traduzido ao pé letra para o
português indicaria estarmos diante de um conjunto de “filmes curtos”, ou
“curta-metragens”.
Ante o
adjetivo que acompanha o substantivo, a brevidade é outro elemento
caracterizador dos textos aí reunidos. Mas, a qualidade das reflexões
construídas por cada uma das quase sete dezenas de textos que constituem a
obra, rompe com o senso comum de que a brevidade é signo de uma sociedade que
perdeu a capacidade de se aventurar por textos cuja densidade esteja atrelada à
grande narrativa. E o mais inusitado: Gonçalo M. Tavares não bebe na fonte da
poesia para conseguir dar ao texto essa dimensão de profundidade; pelo
contrário, se guia por uma descrição objetiva da cena e deixa ao leitor toda
responsabilidade por refletir acerca do que tem diante dos olhos.
Neste
aspecto, o escritor português não é um irmanado à natureza da objetividade tal
como ela tem sido compreendida pela contemporaneidade; mas é um provocador ao
torná-la estrutura através da qual impõe a posição não assumida ou tornada
convencional, ser possível reivindicar uma reabertura do espírito reflexivo. Ou
seja, a brevidade e a objetividade em Gonçalo M. Tavares exigem do leitor outro
tempo maior, além do gasto pela leitura: condição específica – e agora sim, a
narrativa se aproxima do material poético – da reflexão.
Em algum
momento, a crítica já terá reparado nessa capacidade expressiva da obra do escritor
português e a tem comparada ao texto de Samuel Beckett: se apropria do trivial para
construir um objeto de natureza questionadora da própria trivialidade. Ou ainda
Franz Kafka, o construtor de parábolas sobre uma realidade complexa e, por
isso, necessária de ser vista pelo espectador de outro ângulo. Tão próprio, que
terá sido necessário que as próprias coisas sobre as quais observou com tanta sutileza
se tornassem quase um padrão social para que o seu leitor pudesse apontar que o
mundo a que se referia o escritor não era outro se não o mesmo mundo que
habitamos.
No caso de Short movies, o ângulo assumido pelo condutor da cena – não sei se usar
a expressão narrador tal como usei narrativa traduziria ao certo aquilo que o
leitor encontra aí – é ora o da aproximação do olhar, a grande maioria dos
textos começa assim, ora o de um distanciamento, quando vem o seu desfecho, ou
o contrário, mas toda vez pautado no elemento surpresa ou na transformação da
situação apresentada num enigma; duas condições, vê-se, exigentes da posição
reflexiva de quem o lê ou uma destituição do lugar do breve e do objetivo como
algo meramente incapaz de induzir o indivíduo ao pensamento.
Quando
questiono a natureza do narrador e da narrativa é porque os microcontos – esse
parece ser um tipo textual, pelas características já referidas neste texto,
mais próximo da prática de escrita em Short
movies – estão destituídos de
enredo. Compreendam estou chamando de destituição da narrativa (e do narrador e
enredo) pelo padrão comum com que a teoria literária convencionou tratar textos
dessa natureza. O que temos são proposições de narrativas ou guias para a
construção de uma cena. Isto é, o roteiro, a anotação, o bastidor da narração.
São formas eminentemente descritivas, sem diálogo, apenas o relato de quem vê
claramente ou projeta uma situação a partir de uma determinada ação colhida
algures no dia-a-dia, a ação que geralmente pouca gente ou quase ninguém nota
por ela. Tampouco há personagens completas, acabadas. São sempre designações: o
/ um homem, a / uma mulher, a moça, um velho, um menino.
Externo ao
mundo observado, as situações criadas pelo escritor são construídas como se
pelo olhar cotidiano do cronista – outra forma textual com a qual essas peças
dialogam; e estão pensadas de maneira universal porque se referem a contextos
muito amplos da comunidade humana. Mas é, sobretudo, cenas do ir e vir
dramático da existência. E aqui não falta a presença do elemento denunciador,
indispensável e necessário ao texto literário.
A miséria, a
solidão, a doença, a violência, as manias, a desumanização, a capacidade de
observação perdida para o apego desnecessário ao mundo virtual, a incapacidade
da ação, a cegueira na mesma forma denunciada pelo seu conterrâneo José
Saramago, o destino desgarrador, a usura, a perda dos afetos, a imposição dos
discursos como a religião, a submissão das mulheres, a morte, o desamparo, a
tragédia dos que já não dispõem mais que a vida, entre outras questões
possíveis de mapear na leitura desse livro, estão aí presentes.
Mas nem tudo
é o descaminho do homem; há algumas nesgas de certa humanidade escondidas e vez
ou outra reveladas, pequenas rotinas neutralizadoras do desencanto do mundo, da
dor e do sofrimento humanos. E em todas elas sempre são presentes a arte, da
sua forma contemplativa, à vivência e obsessão por ela. A arte tornada como uma
das únicas possibilidades, parece, de enfrentamento e saída contra as novas
formas de barbárie ou contra o progressivo assoreamento de nossa condição
humana – tema no qual está alojado todas as questões dramáticas enumeradas
acima (e as não-enumeradas).
As figuras
lembradas pelas lentes desse potente observador por recordar a gente sem nome e
as situações que podem estar em toda parte (num conflito de guerra, no interior
de casa, no hospital), ou que observamos diariamente se pararmos para olhar nosso
entorno (sobretudo o que se passa no interior do movimento das cidades) dão a
essas condições de narrativa uma dimensão universalista, fato recorrente às
expressões literárias na contemporaneidade.
Apesar de
seu interesse é o de nenhuma maneira olhar o que passa no interior das figuras
que as imagens recobram, não se exime, como qualquer bom observador, à
investigação sobre o que poderia se passar na cabeça de determinadas
personagens, como se perscrutasse a partir do gesto o seu elemento motivador,
tal como ingenuamente construímos falas ou engendramos situações a partir de
situações observadas na rua para o que vemos.
Por vezes, esse
conjunto de instruções para a narrativa é a imagem em formação, uma vez que são
recorrentes as situações em que o desfecho do texto é entregue ao leitor que
pode alcançá-lo pelas pistas deixadas pelo observador: ora é o título que faz
essa denúncia ora é o próprio roteiro. Isso isenta a ideia de acabamento como
sugere toda forma de impressão sobre a imagem. Outras vezes, o plano da descrição
leva o leitor para diante de uma imagem acabada, como se estivesse guiado ante
um conjunto de telas ou de fotografias.
Mas, através
dessas formas textuais, Gonçalo M. Tavares não vem retocar o lugar-comum de
que, se vivemos numa era da objetividade da linguagem vivemos também numa era
da imagem. Produz, isso sim, uma revisão do conceito de imagem sempre confundido
com a fotografia ou tela, por exemplo. Para o escritor, toda a realidade é um
conjunto formado por imagens. A existência é um grande fotograma. Funde assim,
magistralmente, a ideia de realidade e ficção como uma só forma, não no sentido
de serem iguais, mas no sentido de estarem uma como presença da outra.
Recorro como
compreensão do segmento “O anjo”. Nele é descrito um homem entregue ao jogo de
pintar no chão de casa a imagem de um anjo; daí a pouco, a lente aproxima-se
para visualizá-lo entregue à contemplação de um pequeno relevo na imagem para,
no desfecho, conhecermos que, o ele contempla não a imagem recentemente pintada,
mas o possível perfil de uma mulher no andar de baixo.
Ao compreender
a realidade como conjunto de imagens, o escritor produz uma interrogação:
tornamo-nos escravos da imagem, ou sempre fomos condicionados por ela? Ou
ainda, o que somos, se não imagens, projeções, construídas de maneira contínua
e diversa?
Esse espectador
é o sujeito-flânuer contemporâneo. O que
já necessariamente não precisa de sair à rua, mas, parado, vê a rua pelas situações
ou os pequenos filmes que aí se
desenvolvem e, como uma câmera, cata e transpõem para o papel o observado ou filtra
essas imagens pela criação imaginativa. Sua leitura deve desautomatizar o
leitor da pressa e exigir-lhe um retorno à observação – primeira condição de
tudo: de reabrir os olhos para o que se passa ao nosso redor, descobrir o
outro, descobrir nós próprios. É uma maravilha que esta obra esteja ao alcance do
leitor comum no Brasil.
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