Por que Svetlana Aleksiévitch?
As reações ao
Prêmio Nobel de Literatura 2015 foram muito frias. Em parte porque é um nome se
não desconhecido dos grandes centros culturais, é um dos que sempre são olhados de forma
atravessada; mesmo do seu país de origem, onde parte da obra foi proibida durante um
tempo não veio nenhum grito de comemoração. E a comunidade de leitores ao redor
mundo ignorou a escolha porque viu nela mais um apelo político que literário; a
Academia, de novo, preferiu ignorar uma quantidade significativa de grandes
nomes da literatura para entregar um prêmio dessa natureza a uma escrita
considerada menor: Svetlana Aleksiévitch por ser uma mera escritora de relatos
jornalísticos. Para outros, finalmente o Nobel rendeu-se ao mass midia.
Mas, o
silêncio frio ou a recepção negativa leva a compreender que o Prêmio Nobel de
Literatura dado a Svetlana Aleksiévitch é um feito peculiar em muitos sentidos:
mesmo para os que acusam a Academia de se render ao mass midia. Por um lado, é a primeira ocasião em 28 anos que é galardoado
alguém da escrita em língua russa; língua que, em certo momento quis ser
rejeitada por Svetlana porque a tinha como uma expressão inferior aos outros
idiomas, numa infeliz declaração da qual quis se recompor muito tempo depois do
estrago feito, e não se recompôs. Língua que, agora, de posse do prêmio, talvez
volte a tê-la como sua preferida.
A última vez
que o Nobel de Literatura foi para esse idioma, foi com Joseph Brodsky, em
1987, o poeta russo naturalizado estadunidense. E aqui está outra relação complexa
entre essas duas figuras e sua nação. Brodsky entrou em conflito com as
autoridades da então União Soviética, e por isso foi expulso de seu país; Svetlana,
ainda que não tenha sido expulsa, nega reconhecer a história antiga da Rússia e
é, se olharmos com os olhos do tempo do poeta, uma dissidente. Depois da
projeção internacional com o prêmio não tem deixado de alfinetar a Rússia de
Putin.
Além de ser
a décima quarta mulher a receber a distinção, ela traz para o centro um debate
caro aos estudos literários desde a separação, por assim dizer, da escrita: história,
jornalismo e literatura. A crônica ou o relato para jornal, desde então, tem
ocupado o lugar entre os chamados gêneros menores, pensando na novela e no
conto, como algumas das outras expressões da prosa. Svetlana é uma jornalista e
sua produção escrita é o relato testemunhal. Nesse sentido o Prêmio volta a
quando nomeou com a honraria a contista Alice Munro; nos dois casos parece que
o desejo é o mesmo reparar a injustiça para com o reconhecimento da literatura
produzida por mulheres e do gênero literário considerado menor pelo cânone, cumprindo
um retorno, na era da escrita difusa, em realinhar o que a teoria e crítica
literária terão levado anos para separar.
Quase todos
os jornais tiveram de recorrer, com a anúncio, a um único livro, o mais famoso da
escritora, Vozes de Tchernóbil, onde ela
reúne uma série de testemunhos de pessoas que vivenciaram o desastre nuclear de
1986, e parece que este foi o título a partir do qual o parecer da academia foi
redigido – “por sua escrita polifônica, um monumento ao sofrimento e coragem de
nosso tempo”. Mesmo autora de testemunho
a parte menos avessa das reações à nomeação de Svetlana precisaram que o reconhecimento
dado foi à crônica, gênero praticado por quase todos os escritores desde sempre
e cujo boom acontece em meados do
século XX e se propaga nos dias atuais; a observação generalizada pode ter sido
uma maneira de encontrar uma valia
para o galardão.
O fato é que
se formos à história, encontraremos desde o Renascimento o gênero literário
preferido por Svetlana Aleksiévitchdesempenhando um papel determinante sobre os
eventos que remodelariam geograficamente e culturalmente todo mundo; afinal não
foram também cronistas ou testemunho os textos compilados pelos exploradores e
conquistadores durante as Grandes Navegações? Não foi através da crônica que na
Europa se tinha as notícias acerca do então Novo Mundo? Não são algumas dessas
peças consideradas fundadoras das literaturas na América? A questão é que,
entre o exercício estilístico do brio linguístico com que tais textos eram
redigidos foi perdido, ao longo do avanço do jornal e das tecnologias, para em
nome do suporte ao qual se vinculam, para uma linguagem muitas vezes barata,
simplista, objetiva e excessivamente informativa, características que devem ser
desprezadas para alguns outros casos em que essa narrativa do cotidiano adquire
uma originalidade vibrante.
Em língua
portuguesa, atualmente, é possível citar nessa linha do excelente cronista, a
figura já inscrita no rol dos injustiçados pela Academia Sueca, António Lobo
Antunes, quem faz da crônica prática de reinvenção estrutural e escritural deste texto ou mesmo se utiliza do gênero como elemento integrante do romance.
E com
Svetlana Aleksiévitch há, além do escritor português uma série de outros nomes,
como a inglesa Aphra Behn, autora de Oroonoko
or the royal slav, um texto de 1688, em parte verídico em parte ficcional
sobre as viagens pela África e pelo sul da América, um dos primeiros testemunhos
críticos sobre a indústria da escravidão. Nesse mesmo território de língua
inglesa, sempre vão lembrar de A sangue
frio, de Truman Capote, que renovou a relação literatura e jornalismo ou
Hunter S. Thompson, quem trouxe a subjetividade como elemento necessário ao
texto para jornal e que logo levou para o romance como faz em Medo e delírio em Las Vegas, ou Tom
Wolfe, considerado um dos pais do Novo Jornalismo e o autor de O teste do ácido do refresco elétrico.
Na língua
portuguesa, além de António Lobo Antunes, é impossível não citar Fernão Lopes –
na literatura medieval, o considerado o “pai da História” em Portugal –, ao qual
se somam uma leva de autores contemporâneos, como José Saramago, ou ainda a
série de autores brasileiros, solo onde melhor o gênero tem sido aperfeiçoado: Machado
de Assis, Lima Barreto, João do Rio, Rubem Braga, Paulo Mendes
Campos, Nelson Rodrigues, Carlos Drummond de Andrade, Antonio Callado, Clarice Lispector,Vinicius
de Moraes, Luis Fernando Verissimo ou Zuenir Ventura, entre outros.
Se formos ao
restante da América Latina, encontramos o argentino Rodolfo Walsh, quem em seu
livro Operação massacre reúne a
recriação dos tristes fatos da ditadura em seu país nos anos 1950; Ruben Darío,
Gabriel García Márquez, Calos Monsiváis, Juan Villoro, Martín Caparrós, Leila
Guerreiro, Fabrizio Madrid e Fernanda Mechor.
Svetlana
nascida na Ucrânia de 1948 pertence a uma geração marcada não apenas com o fim
da União Soviética, de Thernóbil, mas com todos os outros resquícios da Segunda
Guerra Mundial. “Tenho buscado um gênero que fosse o mais adequado a minha visão
de mundo para transmitir como meus ouvidos ouvem e meus olhos veem a vida.
Tentei este e outro e finalmente elegi um gênero onde as vozes humanas falam
por si mesmas. Pessoas reais falam em meus livros sobre os principais
acontecimentos da época, tais como a guerra, o desastre de Tchernóbil e a queda
de um grande império. Juntos, registram verbalmente a história do país, sua
história comum, embora cada pessoa coloque nas palavras a história de sua
própria vida. Hoje em dia, quando o homem e o mundo se tornou tão multifacetado
e diversificado, o documental na arte é cada vez mais interessante, enquanto
que a arte, como tal, muitas vezes é impotente. O documental nos aproxima da realidade,
já que captura e conserva o original. Depois de 20 anos de trabalho com o
material dessa natureza e de haver escrito cinco livros com a mesma base,
declaro que a arte não pode entender muitas coisas sobre a gente” – assim afirma
a escritora em sua página na web, uma
declaração sobre os princípios em torno de uma escrita que coloque em relevo a
experiência humana de maneira mais direta possível, ainda que sua concepção de
documento ou de acesso a realidade mais próxima sejam duas questões problemáticas
e totalmente questionáveis.
Durante o
segundo maior conflito da história da humanidade, Aleksiévitch viu seu país de
origem, a Bielo-Rússia perder um quarto de sua população e o restante entregue
às condições mais espúrias e duras que pode viver o homem; essa tem sido a razão
porque se interessa pelos temas tratados em obras que, antes de nascer, passam
pela coleta de pelo menos sete centenas de depoimentos de homens e mulheres que
vivenciaram os dramas sobre os quais pretende escrever. Aleksiévitch assume-se
como uma copista ou alguém que busca ser a voz dos que mesmo testemunhas não alcançam
a versão oficial, sobretudo, quando esta é uma versão contada pelo ponto de
vista do vencedor ou por uma voz adulta e masculina. Isto é, a guerra, por
exemplo tem outras faces que precisam ser desveladas – A guerra não tem rosto de mulher ou Os
últimos testemunhos. Um livro de relatos nada infantis, para citar dois
outros de seus títulos.
O Prêmio
Nobel não veio à toa; antes, a jornalista já havia logrado outras vinte e cinco
honrarias, entre elas o Prêmio Médicis (França), o Ryszard Kapuscinsky de
jornalismo (Polônia) e o Prêmio da Paz dos Livreiros Alemães (2013),
considerado entre tantos um determinante para o maior deles recebido em 2015. O
título parece ser ainda um recado conservador da Academia, tantas vezes acusada
de ser uma propulsora dos autores de pensamento marxista; é um recado político
com o interesse de colocar a última pedra sobre um dos regimes mais cruéis da
história humana se olharmos a partir de Joseph Brodsky e os demais escritores russos
que receberam o galardão: em 1933, Iván Bunin; e em 1958, Boris Pasternak, o
mais controverso dos prêmios. Ainda resta saber, quando começarão a, nesse
rodízio político, colocar em pauta os escritores que denunciam tão abertamente
como os russos dissidentes o horror dos regimes capitalistas, mesmo tendo vista o grau de importância, por exemplo, que tem o pensamento de José Saramago frente a esse outro império que sustenta desde sempre à base de um fenômeno ininterrupto da crise e não reconhece as extensas falhas cometidas.
Apesar do
trabalho de Svetlana Aleksiévitch se inserir claramente na chamada não-ficção, há
alguns antecedentes na literatura de seu país; Olga Ulianova afirma que dentro
da narrativa bielorrussa, ela é herdeira de nomes como Ales Adamovich e Vasil
Bykov. Este último pertence ao que na literatura soviética se chamou de “geração
dos tenentes”: autores que viveram a guerra muito jovens e passaram o resto de
seus anos escrevendo sobre ela. Bykov fez uma ficção sem adornos, parca, de um
mundo muito duro. Adamovich – que o foi seu mestre no início de sua carreira
jornalística – escreveu obras que flertam com o não-ficcional. Uma das mais
famosas é Sou da aldeia ardente
(tradução livre), sobre um adolescente que perde seus pais durante a ocupação
alemã e parte do povoado onde vive com o objetivo de se tornar membro do
partido comunista. A partir deste livro foi realizado o filme Vá e veja (1985).
Outra linha
narrativa com a qual Svetlana pode ser comparada é da literatura dos
prisioneiros. No ocidente, só conhecemos sobre esta cruel experiência humana, a
obra de Solzhenitsyn, mas há outras obras notáveis que começam a chegar ao
nosso alcance, com a de Varlam Chalámov, enviado em 1937 a um campo de
trabalhos forçados em Kolimá sob a acusação de atividades trotskistas
contrarrevolucionárias. Em Contos de
Kolimá descreve a vida dos prisioneiros com esmagadora crueza. Outra escritora
que também registrou esta experiência foi Eugenia Ginzburg em O vertigo (tradução livre), presa aos 18
anos sob as mesmas acusações que Chalámov.
Quatro motivos pelos quais ler a obra de
Svetlana Aleksiévitch
1. Quem é
Svetlana Aleksiévitch?
É uma boa combinação
entre jornalismo e literatura. Uma escritora da Bielo-Rússia crítica de seu
país e com o que o foi a antiga União Soviética e de situações importantes de
seu país e de outros como Afeganistão.
2. Por que
lhe deram o Nobel?
É um reconhecimento
ao trabalho documental. Onde acaba o labor do jornalismo e começa o literário.
3. Por que
lê-la?
Se alguém se
interessa pela União Soviética deve lê-la. Esse é o tema central de sua obra,
seu material, sem a intervenção comum dos críticos. Em seus livros destacam-se
os testemunhos das mulheres soviéticas que sobreviveram à Segunda Guerra
Mundial, à catástrofe de Tchernóbil, em 1986, a ruína da antiga União Soviética
e a ferida moral dessa sociedade através dos diferentes feitos históricos.
Sobre a problemática do Afeganistão: vozes recolhidas de maneira especial que
chegará ao coração dos leitores.
4. Que livro
recomenda?
A guerra não tem rosto de mulher, sobre
os testemunhos das mulheres soviéticas que sobreviveram a Segunda Guerra, Vozes de Tchernóbil e O tempo de segunda mão. O fim do homem soviético, sobre o drama
socialista.
* Os quatro motivos foram listados por Richard San Vincente para o jornal El País. Os títulos da obra de Svetlana foram traduzidos do espanhol.
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