O erótico que está em nós
Por Pedro Fernandes
Eliane Robert Moraes, organizadora da edição Antologia da poesia erótica brasileira |
Quando se
fala em poesia erótica brasileira, o leitor deverá logo se lembrar de peças da
poeta Hilda Hilst e da obra de Carlos Drummond de Andrade que casou certo reboliço
na cena literária nacional quando publicada, O amor natural, livro que veio a lume em 1992, cinco anos depois da
morte do poeta.
Mas, o fato é
que, de maneira diversa, toda obra poética terá, em alguma ocasião flertado com
esse mistério que está numa dimensão mais acentuada da relação amorosa. O que
tanto espanta é um enrubescimento do leitor, ou a censura desbragada praticada sobre textos dessa natureza, sobretudo, numa sociedade que se diz tão aberta
para os desígnios do corpo ou mesmo uma sociedade que canta a plenos pulmões as
letras malfeitas da música chula que reafirmam o poder do homem sobre a mulher
ou rebaixa esta ao limite de objeto de disputa, coisa a ser usada ou movida à rédea
curta do dinheiro.
Espanta, mas
há um adendo expresso nessa observação que não deve ser tomado como uma variável
desprezível: talvez a sociedade brasileira seja um tanto aberta para aquilo que
noutras culturas se guia por outros temperamentos ou onde tenha imperado outras
formas mais abruptas de censura, mas o que é enaltecido nessa cultura chula
(que aliás é muito distinta do tema erótico) são os mesmos valores que durante
séculos deu as cartas como regra fixa dos padrões de comportamento: o imperativo
do macho. Não se pode negar isso, porque está não apenas nesse repertório que
toma conta do dia-a-dia do brasileiro, mas numa série diversa de atitudes que
toda vez reafirma a necessidade da manutenção de mecanismos que sejam capazes
de reeducar socialmente os indivíduos.
As lamentáveis cenas vivenciadas recentemente por alguns candidatos e não-candidatos no Exame Nacional do Ensino Médio com uma simples citação de O segundo sexo, de Simone de Beauvoir e uma redação que versava sobre a violência contra mulher, além, é claro, de todas as manifestações de ódio misógino contra a liderança da mulher numa presidência da república e mesmo a incapacidade de admitir o uso do substantivo presidenta são exemplos ou provas definitivas do quanto ainda estamos parados na mesma posição de uma das nações de mente mais vergonhosa do mundo.
Esta observação
sobre a cultura do chulo no dia-a-dia do brasileiro é algo não nascido ou criado
na cultura contemporânea. Como acentua Eliane Robert Moraes, já Mário de
Andrade no seu tempo havia marcado o tema como uma constante da chamada cultura
popular. E, apesar de uma coisa ser distinta da outra, isto é, o pornográfico e
o erótico, não é possível descartar a influência do primeiro no segundo,
afinal, as fronteiras entre a arte e a vida, apesar de alguns incautos
acreditarem no contrário, não estão afastadas uma da outra ao ponto de se
distinguirem seriamente como coisa oposta. Como na prosa, a realidade externa
ao texto é um elemento fundamental no enforme da matéria poética.
Daí mesmo
que o texto que toque na privacidade do indivíduo não deveria despertar o espírito
da censura, que, só ocorre graças a um fator primordial: a convenção de que a
arte nunca deva se aproximar com tanta força daquilo que não é tido como sublime,
delicado e belo. Embora o sexo possa e se nutre de todas essas características,
elas estão associadas ao espírito clássico ocidental de pureza divina, quase intocável.
Não fosse isso, um leitor, quando descobre a linguagem solta de uma Hilda Hilst
ou de um Carlos Drummond de Andrade, para ficar apenas nos dois exemplos já
mencionados, não se surpreenderia com a mesma interrogação de sempre: mas isso
é literatura? Ou então: não sabia que putaria era arte.
Se a natureza
do clássico mantém ainda uma força expressiva de uma época em que se distinguia
com puras letras o que era assunto do povo e o que era assunto do literário,
foi no povo que as principais formas de tratamento sobre o tema logo alcançaram
melhor forma, justamente porque mais autênticas que as geradas pela construção
cerrada da estrutura limpa e divina tal como pedia o figurino. É à chamada cultura
iletrada que devemos agradecer pela nova incursão assumida pela literatura quando
descobre a possibilidade de integrar o que se considerava vulgar com o erudito.
A razão para isso é muito simples: tornou a matéria literária mais próxima do homem,
mais à vontade ou integrada às correntes do que ele é propriamente: corpo, pulsão.
E a obra literária que for incapaz de apreender isso está fadada a negar sua
própria natureza, dizer sobre o homem e seu mundo.
Desse modo o
trabalho de Eliane Robert Moraes, quem organizou a Antologia da poesia erótica brasileira, tem um valor inestimável para
a nossa cultura literária. Há muito que precisávamos de algo parecido, mas
apenas ficávamos na vontade. Apenas o José Paulo Paes havia se disposto à seleção
de poesia erótica, mas, com aspirações um tanto mais complexas que as da obra
agora publicada; é que ele compôs um itinerário do que seria uma versão universal
da antologia, revisitando nomes que vão da Antiguidade como Ovídio, Catulo,
Ronsard, Goethe, Rousseau, Whitman, Baudelaire, Rimbaud aos seus contemporâneos
como Pablo Neruda.
Mas, a Antologia preparada por Eliane se nutre
de outras linhas de força mais pertinentes para a literatura brasileira. Primeiro
porque tornou visível aquilo que todos os leitores mais atentos, sabiam, de uma
forma ou de outra, que o brio da chama erótica não está apenas inscrito em
autores que se expressaram mais abertamente, contrariando certas nuances pré-estabelecidas
pela crítica sobre o tema ou sobre o conjunto de sua obra. Mas que, em grande
parte dos trabalhos poéticos lá está sua marca, construindo uma presença indelével
e significativa no processo de composição de sua literatura, porque no interior de
cada uma, o tema se renova, ganha nova forma, nova possibilidade de inscrição
na marca poética.
Antologia da poesia erótica brasileira
cobre ainda uma extensa lacuna há muito aberta na cena literária nacional,
principalmente porque já temos uma longa vivência com as letras e somos autores
de um dos sistemas mais completos no sistema da literatura universal, com
presença não meramente figurativa, mas relevante no processo de reabertura do cânone,
seja por estéticas genuinamente nossas, seja por determinadas particularidades
do exercício com a linguagem.
Nesse
aspecto, é fundamental sublinhar que a tarefa de Eliane não foi se reter a
nomes canônicos do nosso sistema, seja pela forte inserção e apelo popular como
Mário Quintana, Adélia Prado, Paulo Leminski, a própria Hilda Hilst (cuja obra
cada vez mais, ainda bem, tem deixado os subterrâneos do esquecimento), seja
pela recuperação de alguns nomes pouquíssimos citados mesmo fora do círculo
eleito para as escolhas que a obra hospeda; é o caso de João Nepumoceno da Silva,
Francisco Moniz Barreto, Dante Milano, Moysés Sesyon, entre tantos outros,
inclusive os anônimos; seja por colocar na pauta nomes que não tiveram necessária
dedicação ao ofício do verso, como o caso de Pedro Nava ou Lúcio Cardoso; seja
porque descobre nuances sobre tema em obras que só o leitor mais crítico talvez
perceba a presença do tema, como em João Cabral de Melo Neto ou em Haroldo de
Campos; seja porque não deixa alguns dos nomes ainda muitos ativos na cena
poética nacional, como Antonio Cícero, Alexei Bueno, Carlito Azevedo, Arnaldo
Antunes.
Enfim, o
leitor está munido de um rico e diverso panorama cujas fronteiras únicas
marcadas pela pesquisadora são as que diz respeito ao tema; é perceptível ainda
que nesse percurso ela tenha dado melhor atenção ora à maneira inovadora com
que o escritor compôs sua visita ao tema ora observando mais naqueles cujo nome
anda um tanto fora da atenção dos compêndios, como se, ao tratar de um tema
geralmente alojado à beira dos outros temas, e, claro com isso reafirmá-lo como
elemento composicional de extenso valor na leitura da cena poética nacional, também
quisesse realimentar as duras linhas do cânone como nomes tangenciados pelo
epígono de serem menores.
É evidente que
por mais democrático que sejam as escolhas e os critérios, haverá muitos nomes
que poderiam figurar numa antologia dessa natureza, mas, se nenhuma lista é
definitiva, também uma antologia, que é, à sua maneira um extenso rol, não poderá dar
conta de tudo. Nesse aspecto, o trabalho de Eliane é sobretudo uma porta de
acesso a outros escritores ou outras formas de abordagem sobre o tema motivo da
Antologia. Dicionários, enciclopédias
e antologias, para citar três gêneros distintos, têm em comum serem obras abertas,
sempre introdução, nunca conclusão sobre seu interesse. Aqui reside o impulso
deixado para num futuro servir de norte a outros exercícios dessa natureza.
Pensando
nisso, o livro se nutre ainda de outros aspectos a fim de reafirmar seu lugar
de marco na cena literária brasileira: como o rico texto preparado pela
pesquisadora, a extensa quantidade de referências bibliográficas, ou abertura de
sua biblioteca pessoal utilizada no processo de catalogação dos textos aí reunidos.
Tudo alinhavado com um conjunto de desenhos de Arthur Luiz Piza que dispensa apresentações:
constrói um diálogo entre o texto poético e artes plásticas numa inferência
sobre a diversidade das representações do erotismo nas artes nacionais e um contributo
à leitura de descanso exigida pela poesia, afinal todos hão de concordar, não se
lê poesia como se lê prosa.
Desse modo, Antologia da poesia erótica brasileira é
um registro indispensável na biblioteca particular de todo leitor, de poesia ou
não; fundamental para a compreensão sobre a variedade de nossa cultura literária
e como esse tema ganhou força e forma diversa pelas mãos de nossos artífices da
palavra ao longo de quatro séculos.
Comentários