Thomas Mann e sua inquietante visão do artista: “Tonio Kröger” e “A morte em Veneza”
Por Alfredo Monte
Em Confissões de Felix Krull (1954), seu derradeiro romance, Thomas Mann faz
Schimmelpreester, padrinho do personagem-título, um pintor que «não raro
expressava ideias duvidosas sobre a natureza do artista em geral», dizer:
«Assim são as pessoas. Desejam o talento, que em si é uma singularidade. Mas as
outras singularidades que a ele se ligam, ou talvez lhe sejam inerentes, não só
não as admitem de modo algum, como lhes negam toda e qualquer compreensão».
Portanto, o grande escritor alemão nunca
chegou a abandonar as questões que povoam dois textos da juventude, “Tonio
Kröger” (1903) e “A morte em Veneza” (1912), clássicos agora relançados pela Companhia
das Letras1. Em anos encontramos uma inquietante visão da realização
artística. Ambos têm em comum também certa solenidade do tom narrativo,
distante da alegria jocosa que perpassa O eleito (1951) e outras obras
maiores de Mann (A montanha mágica, 1924; Carlota em Weimar, 1939; o
próprio Felix Krull, por exemplo).
Escrito aos 28 anos, “Tonio Kröger”
desenvolve à exaustão o mote da posição duvidosa e suspeita do artista na
sociedade; de tal forma que o protagonista, já um escritor de certa fama, ao
voltar à cidade natal, é confundido com um marginal foragido. E ele mesmo acha
que a confusão é justificada!
Tonio pertencera a uma tradicional e
abastada família («não somos ciganos num carroção verde»), porém abandonara a
cidade quando da morte do pai, e a mãe — exótica mulher de um país
estrangeiro— caíra no mundo, por assim dizer. Ainda assim, ele conservou a
nostalgia pelo mundo burguês (do qual se excluíra por vontade própria), pelos
«inocentes loiros, de olhos azuis», como seus amados da adolescência, Hans
Hansen e Ingeborg Holm (note-se que a ambivalência dele atinge inclusive a
sexualidade, como geralmente acontece no universo manniano, onde a beleza
pessoal, mais do que a identidade de gênero, é que dá as cartas2).
Por isso, se sente «um burguês que se
extraviou na arte, um boêmio com saudades do bom berço, um artista de
consciência pesada», e compensa esse desconforto com a ideia de que o artista
tem de ser um trabalhador incansável, «passando despercebido como uma sombra
parda, como um ator sem maquiagem, que não é nada enquanto não tem um papel a
representar(...) quem vive não trabalha(...) preciso estar morto para ser
realmente um criador».
Tonio mantém-se “suspeito” aos olhos
burgueses, todavia causará igualmente má impressão aos seus companheiros, por
insistir numa fachada que ele denomina de «decoro exterior»; para ele, «Como
artistas já somos aventureiros demais por dentro. Pelo menos por fora devemos
vestir-nos bem, que diabo! E nos comportar como gente decente».
Toda essa problemática, formulada em “Tonio
Kröger” de maneira muito incisiva, só que com um entrecho dramático um tanto
tênue, é amplificada poderosamente em “A morte em Veneza”, com resultados
ficcionais mais fortes, tanto que talvez se trate da única novela do século
vinte capaz de se ombrear com A metamorfose de Kafka. Como Mann conseguiu
escrever algo assim aos 37 anos?
O cinquentão Gustav Aschenbach, apesar do
afinco maníaco a que se entrega no trabalho de escritor, sente-se de fato
“morto por dentro” (tal como Tonio augurara). Resolve, então, sair de sua
estafante rotina em Munique, viajando para algum balneário no sul da Europa.
Depois de outros lugares insatisfatórios, decide-se por Veneza. Lá, como todos
sabem, impressiona-se com a beleza de um menino polonês de 14 anos, Tadzio;
apaixonado, segue-o por toda a parte, não se decidindo a ir embora da mítica
cidade, mesmo ao tomar conhecimento de que uma peste a assola. Durante um
passeio, ao perder de vista Tadzio, angustiado e esgotado fisicamente, come morangos
(contaminados) para refrescar-se e, pouco tempo depois, em plena praia, entra
em agonia mortal.
Esqueça-se um pouco do pormenor homoafetivo,
caro leitor, não é por aí que se compreenderá “A morte em Veneza”, nem o texto
nem a extraordinária versão cinematográfica realizada em 1971 por Luchino
Visconti, na qual Aschenbach transforma-se em compositor clássico, detalhe
essencial num filme que é uma das mais perturbadoras e majestosas experiências
não-verbais já levadas a cabo, onde o espectador compreende tudo o que se passa
através da utilização da música de Gustav Mahler e das expressões (e do pathos)
de ator admirável (Dirk Bogarde).
Tadzio, com sua beleza, exerce mais do que
uma banal sedução erótica, é o anjo da morte a conduzir Aschenbach—aquele que
trabalha incessantemente para criar formas artísticas e domesticar o caos—para
o mar, o outro polo da narrativa, o mar que encanta o jovem Tonio Kröger e
encanta o escritor maduro3: «Amava o mar pela necessidade de repouso
do artista que, assediado pela multiformidade das aparências, anseia por
abrigar-se no seio da simplicidade, da imensidão, e por um pendor proibido,
diametralmente oposto à sua tarefa e por isso mesmo tentador, para o indivíduo:
o desmedido, o eterno (...) Repousar na perfeição é o anseio nostálgico daquele
que se esforça por alcançar a excelência; e o nada não é uma forma de
perfeição?»4.
Assim, Aschenbach, que vagara por Veneza
atordoado por Eros (na forma de um Lolito), não sabia que ele o levava para o
reino do nada, numa irônica e cruel dança da morte. A beleza encarnada num
corpo serve como perverso umbral para o território onde não existem formas.
Derrota (redentora talvez, quem sabe?) para
Aschenbach; vitória absoluta para um Thomas Mann então em crise, chafurdando há
anos num bloqueio criativo, do qual emergiu com o texto mais emblemático e
perfeito da sua obra.
Notas:
1
O primeiro deles em nova tradução, de Mário Luiz Frungillo. Já houve as de
Maria Delling e Eloisa Ferreira Araújo Silva, as quais traduziram também o segundo,
mas a nova edição reaproveita uma brilhante versão de Herbert Caro, publicada
na antiga Coleção do Prêmio Nobel (Mann o recebeu em 1929).
2 E
talvez fosse melhor dizer que embaralha as cartas.
3 Quase
ia escrever “velho” porque, à época, cinquenta anos já era praticamente a
velhice, e percebe-se nitidamente o temor de Mann a ela e suas possíveis
iniquidades.
4
Não foi à toa que Mann leu apaixonadamente Schopenhauer, cujo pensamento tem
grande peso na estrutura de seu primeiro romance, Os Buddenbrooks (1901).
Comentários