Perdido em Marte, de Ridley Scott
Por Pedro Fernandes
Parece que,
desde a invenção da porta automática, passamos a olhar para os filmes de ficção
científica como uma maneira de nos mantermos atualizados sobre a tecnologia ou
sobre o que andam pensando os envolvidos com a corrida espacial – sim, esta não
foi terminada com a ida do homem à Lua, mas permaneceu no exercício de perscrutação
do espaço e tem se concentrado nos últimos anos no enigmático Marte. Foi da remota possibilidade sobre a existência de vida humana nesse
planeta que se construiu todo um imaginário hoje lendário de marcianos e
extraterrestres. A chegada do homem à sua superfície através de uma sonda que desde então
tem se dedicado a enviar fotografias (e mesmo muito antes) serviu para provar que não há vida, ao menos sob forma humana, mesmo depois de, recentemente,
constatar a existência de água na sua superfície.
O filme é
uma adaptação do livro de Andy Weir e ao que consta, Ridley Scott seguiu muito
de perto o enredo modelado pelo escritor, com uma ou outra intervenção no
intuito de tornar seu produto bem-quisto aos olhos de Hollywood: como a construção
da cena do resgate espacial de Mark Watney. É durante uma grande tempestade de
areia que os da equipe de uma missão ao planeta vermelho decidem abortar o
início do trabalho de investigação que duraria algum tempo; nesse intervalo
entre a vida e a morte, o astronauta é atingido por um equipamento e detectada
a possibilidade da vestimenta ter sido furada, todos dão como certa a morte do
companheiro de equipe.
A grande diferença
do enredo reconstruído por Scott reside numa outra condição agora representada
para a humanidade acerca de Marte. Se já esquecemos a lenda sobre a existência de
perigosos ou delicados seres marcianos, também parece que vimos perdendo
gradativamente o medo sobre a inviabilidade de uma ida ao planeta. Mas, enquanto
as agências espaciais trabalham com a possibilidade de uma viagem sem retorno num
projeto que levaria adiante a ressurreição dos feitos da colonização construídos estes desde o
advento das Grandes Navegações, Perdido
em marte ainda aposta na impossibilidade de manutenção de alguma forma de
vida que não a criada pelo próprio homem. Agora, parece que estamos mais
distantes da viagem como uma tragédia tal como desenhou outras peças cinematográficas; e logo lembramos como exemplo, a de Brian
De Palma em Missão: Marte. Neste filme
de há quinze anos, o homem conseguia chegar ao planeta, mas uma série de
misteriosos fenômenos causa um acidente que mata toda a tripulação.
No caso do
filme de Scott, a descoberta de que Watney está vivo levará, primeiro parte do
corpo de pesquisadores da NASA, depois, todos a unir esforços pelo seu resgate;
daí a narrativa se desmembra em quatro núcleos que vão se aproximando à medida
que o enredo ganha corpo: o dia-a-dia do astronauta em Marte, os bastidores
na agência espacial na construção do resgate, o dia-a-dia da equipe a qual pertence Watney retornada a
estação espacial e a intervenção da agência
espacial chinesa, depois que o caso-Watney ganha proporção mundial. Cada um desses
núcleos têm natureza e linguagens muito próprias e contribui para o que o filme não finde apenas numa monotonia sobre a sobrevivência de náufrago, digamos assim.
Embora seja este o núcleo que mais chama atenção do
espectador comum, afinal não é apenas um diário de sobrevivência, mas prova
de fogo de que, não importa as condições, o homem quererá buscar uma maneira de
não perecer à própria sorte. É assim que Watney decide, enquanto buscará a
possibilidade de contato com a Terra, calcular milimetricamente o passo a passo
de se manter vivo, desfazendo totalmente a ideia de acaso como regência sobre a
vida humana e tornando esta um adorável e bem humorado exercício de precisão técnica
e racional. Imprevistos acontecem – sim, eles estão por toda parte – mas, uma
maneira de resistir é, primeiro, torná-los problemas e decidir-se por
resolvê-los rapidamente e, segundo, acreditar que a criatividade humana, a
mesma capaz de levar um homem a Marte, deve estar a serviço em ocasiões aparentemente menores, como as dessa
natureza.
Chama atenção, a maneira como os protocolos da ciência foram incorporados ao filme com uma propriedade muito realista e bem-humorada; nesse sentido, a atuação de Matt Damon é fundamental para fazer da piada desenxabida do estadunidense em coisa palatável ao gosto diverso do humor. E a construção da fotografia de Marte, certamente marcada pela extensa galeria de imagens reais que agora temos da superfície da atmosfera do planeta.
Além das questões
próprias do enredo de ficção cientifica e das questões técnicas, é notável como Ridley Scott coloca em
relevo alguns temas ainda caros ao homem: sua grandiosidade plasmada
nos grandes feitos e sua recorrente fragilidade; a impossibilidade de, diante
do grandioso, não conseguir se fiar apenas na sua capacidade em encontrar
a saída necessária ou a necessidade quase constante de a querença da entidade
divina que lhe permita penetrar na sua grandiosidade, tal como um Ulisses entregue
ao mar tenebroso e dependente do favor dos deuses; a revisão do tema da coletividade, quando juntos a
fragilidade torna-se uma questão acessória; ou, ainda a revalidação da frase “quem
tem amigos tem tudo”.
E são estas últimas características que tornam o filme grandioso
porque recobra no interior de toda nossa habilidade a necessidade de não nos
descuidarmos do nosso bem maior: o que nos faz o humano que somos não está na
capacidade da mera descoberta científica ou da grandiosidade do feito, mas nas
atitudes que ora reconhecem nossa limitação ante o desconhecido ora a constatação
de que a essência individualista, muito em voga nesses tempos difíceis, representa
uma grande destituição de toda capacidade que alcançamos com a ciência.
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