O universo extremo e delirante de William S. Burroughs
Por Neiva Dutra
William S. Burroughs é uma das
figuras mais transgressoras e inclassificáveis da literatura universal, a tal
ponto que sua condição de narrador, compreendido como contador de histórias,
chega a ser duvidosa: é um escritor, pois seu meio de expressão é a linguagem
escrita, mas também é muito mais do que isso.
O escritor e a obra
William Seward
Burroughs nasceu em 5 de fevereiro de 1914 e desde muito jovem recebeu uma
esmerada educação burguesa e conservadora, que teve sobre ele o efeito de fazer
com que rejeitasse categoricamente as convenções sociais e a moral imperante.
Foi criado
no american way of life próprio dos Estados Unidos entre guerras,
pertencendo a uma estirpe de burgueses automarginalizados e transgressores.
Estudou em diversas universidades, licenciou-se em literatura inglesa em
Harvard e cursou vários anos de antropologia, medicina, psicologia, em diversos
países. Casou-se com uma judia alemã para livrá-la dos nazistas, viajou por
toda a Europa, trabalhou de redator a exterminador de baratas. Especializou-se
em psicanálise, parapsicologia e telepatia lendo compulsivamente autores como
Wilhelm Reich, Jung, Spengler e Ron Hubbard e clássicos como Zoroastro,
Giordano Bruno e Paracelso.
Além do interesse
pelo mundo da ciência e do ocultismo, desenvolveu grande paixão por armas durante
a adolescência, quando também se iniciou em práticas homossexuais. Entre 1938 e
1943, em Chicago, introduziu-se no submundo e na delinquência, condicionado
pela iniciação no uso de morfina.
Em Nova Iorque
conheceu Herbert Huncke, um dos “heróis” suburbanos retratados pelos escritores
da Geração Beat Allen Ginsberg e Jack Kerouac, que se fascinaram por sua
cultura e erudição e o tomaram como mestre e fonte de inspiração para suas
obras. Kerouac, em quase todas as suas obras, revela um personagem baseado em
Burroughs: Bull Lee, de On the road, por exemplo.
O papel de
Burroughs no momento da fundação da Beat Generation foi o do “irmão
mais velho”, especialmente porque vivera em diversos países e possuía uma vasta
cultura sobre os mais diversos temas. Graças à sua influência, Ginsberg e
Kerouac leram autores como Hart Crane, William Butler Yets, W. H. Auden,
William Blake, Kafka, e se interessaram pela cultura oriental, pelo Bhagavad-Gita, pelo
Livro tibetano dos mortos, os Upanishads e o Tao Te King.
No início dos
anos cinquenta, Kerouac o convidou a retomar a escrita de romances e chegaram a
escrever juntos E os hipopótamos foram cozidos em seus tanques, que
tratava das experiências homossexuais de um amigo comum de ambos, falecido
prematuramente.
Burroughs escrevera romances na
infância, como A autobiografia de um lobo e Carl Cranbury no Egito.
Em ambas demonstra sua fascinação por países exóticos para fugir do isolamento
social a que a família o submetia após a queda da bolsa em 1929, fato que
provocou a ruína econômica de seu pai, a vergonha e sensação de fracasso que
levou a família a mudar-se para uma pequena propriedade rural.
Neste ano publicou uma história
intitulada Magnetismo pessoal, em que abordava várias de suas obsessões
posteriores: o controle mental, a telepatia etc. Já aos dez anos escrevia
compulsivamente histórias de piratas, vaqueiros, gangsteres, sempre com duelos
de pistola (motivo repetido em boa parte de sua obra).
A partir de 1947, morando em Nova
Orleans, começou a ter problemas com a polícia em razão do uso de morfina,
fugindo para o México em 1949, onde estudou a história asteca e escreveu Junky e Marica.
O primeiro foi publicado nos Estados
Unidos em 1953, graças a Allen Ginsberg, e foi um incômodo para o mundo
editorial da época, tanto por sua temática como por seu estilo. Por isso, foi
editado em um formato pulp e assinado com o pseudônimo de William
Lee. Ainda, o editor obrigou Burroughs a escrever uma nota introdutória em tom
moralista, para proteger-se perante os “cidadãos de bem” da época.
Em sua estreia como escritor
utilizou um estilo muito mais conciso e asséptico do que na maioria de seus
escritos posteriores, priorizando a história, mais do que a forma literária,
construindo uma narração desprovida de todos os acessórios, minimalista. Este
estilo, próprio das novelas pulp, busca causar impacto através da
imediaticidade da linguagem e da contundência com que narra. O leitor
"assiste" a uma narração em primeira pessoa, de aspecto improvisado,
que outorga uma aura de autenticidade ao texto, servindo de “gancho” para a
compreensão da leitura.
O romance se converte rapidamente em
um marco dentro do subgênero da autobiografia toxicômana, destacando-se por seu
tom antipoético e marginal, distanciando-se do romantismo por um relato
centrado apenas no processo de dependência em si, afastando qualquer narração
adjacente.
Quando Burroughs o publicou, a
sociedade americana vivia um fervor proibicionista em torno do consumo de
diversas drogas. O estereotipo do dependente de drogas como marginal
perseguido, residente nos subúrbios, à mercê de traficantes, se reflete na obra
de Burroughs que, progressivamente, passou a recorrer à heroína adulterada
comprada nas ruas. Sua obra retrata o cotidiano do dependente e a luta
constante contra a resistência dos médicos e farmacêuticos em receitar
narcóticos, quando na verdade estes profissionais eram o principal grupo de
dependentes e/ou difusores da dependência iatrogênica. Diversos estudiosos de
substâncias psicoativas destacaram a influência determinante desse romance no
surgimento do conceito de junky como estereotipo sociológico.
Na década de setenta, quando os
sonhos dos hippies se desvaneceram, a figura do junky marginal
começou a tomar impulso na forma das chamadas “epidemias de heroína” e se
refletiu em vários fenômenos da cultura americana. Desde as primeiras músicas
da Velvet Underground até o desencanto punk, passando pela progressiva marginalização
e despolitização do movimento underground ou pelos filmes de Warhol, Morrisey
ou Anger, todos foram diretamente influenciados de forma confessa por
Burroughs, uma das poucas figuras que se mostrou imune à iconografia do flower
power e ao movimento hippie.
No México, fascinado pela extrema
liberdade, pelo mundo onírico que vive e pela facilidade para comprar morfina,
acidentalmente disparou contra a esposa e a matou. Embarcou então para uma
viagem ao Panamá, Colômbia, Equador e Peru, em busca da ayahuasca, que lhe
interessara pelas alusões que os antropólogos faziam às suas propriedades
telepáticas. Durante a viagem, manteve uma relação epistolar com Allen
Ginsberg, que foi publicada em 1963 em Cartas do Yage, que revelam a
profunda depressão de Burroughs após o acidente com a esposa.
Regressou a Nova Iorque em 1953 para
assistir ao nascimento da então incipiente Beat Generation e conheceu
os demais escritores do movimento. Entre 1954 e 1958 viveu no Marrocos. Foram os anos
mais duros e difíceis de sua vida, pelo agravamento da dependência em heroína e
por sua extrema degradação. Nesse período escreveu apenas pequenos fragmentos
desconexos, dos quais alguns foram incorporados a Almoço nu, que descreve
sua vida na época. Após várias tentativas de desintoxicação, em 1956 alcançou
resultados positivos que lhe permitiram retomar energicamente o trabalho
literário.
Em 1959 mudou-se para Paris, onde
começou a experimentar métodos como o cut-up (recorte), o fold-in (montagem)
e o splice-in (inserção), aplicados à literatura e surgidos por
influência do pintor Brion Gysin.
Almoço nu é considerado por
muitos a obra-prima de Burroughs, um romance paradigmático na história da
literatura mundial. Aprofunda-se em um universo onírico, obsessivo, no qual as
ruas de Tanger, no Marrocos, e de Chicago e Nova Iorque, nos Estados Unidos,
são descritas com uma intensidade psicanalítica através de imagens
contundentes, monstruosas, associadas aos personagens freaks (aberrações)
que as povoam. A luta entre o poder e os marginalizados se expressa de forma
amplificada na sensação de constante paranoia que atravessa a obra.
A escrita automática e o monólogo
interior criam imagens vertiginosas, impactantes mais pelas conotações do que
pelo seu significado literal. Não há um planejamento, nó ou desenlace, nem um
cenário fixo: tudo se desenvolve em espiral, através de uma torrente de
sensações que se comunicam diretamente com o subconsciente. É uma “não-história”
da vida de Burroughs, com a intensidade do que ele próprio sentiu e que, por
isso, não pode ser filtrada através de convenções literárias. Ensaio e romance
se juntam para dar lugar à poesia em prosa, na qual a linguagem se subverte e
foge às convenções.
Assim como em Junky e Marica,
a obra Almoço nu expressa as sensações intangíveis que o acompanharam
nessa época e por isso, além de completar o que as duas primeiras obras iniciaram,
conforma uma produção que deve ser lida, em sua totalidade, como livros de
poesia, sem que se pretenda encontrar um enredo.
Em 1960 mudou-se para Londres, onde
viveu distanciado do enorme “barulho” que Almoço nu provocara nos
Estados Unidos. Permaneceu entre Londres, Paris e o Marrocos até 1965, quando
passou a viver em Nova Iorque, conhecendo Andy Warhol, Larry Ryvers, Basquiat e
outros representantes da pintura e da poesia da década posterior. Nessa época
voltou para Londres, somente retornado aos Estados Unidos em 1974.
Seu estilo se radicalizou em
conformidade com sua filosofia de vida, com truques e prestidigitações
linguísticas que buscaram um rompimento cada vez maior na forma de seus
romances (uma das suas sentenças mais famosas é a contundente language is
a virus). Paralelamente, passou a imprimir em seus livros um leve teor
ideológico, com contínuas referências ao poder e à anulação do homem através do
controle. O universo Interzona é fatalmente profético: um mundo globalizado
onde “falar é mentir e viver é colaborar”, acelerado, onde não há tempo para
viver e muito menos para pensar.
O Planeta Nova, recorrente na
trilogia A máquina macia, de 1961, O ticket que explodiu, de 1962
e Expresso Nova, de 1964, é uma imensa metáfora da paranoia cibernética,
que lhe rendeu as homenagens dos expoentes da corrente cyberpunk. Esse
universo, por vezes, possui reminiscências de O Processo, de Kafka, mas em
uma perspectiva mais extrema e tecnológica. No universo Nova, as forças
policiais espreitam em cada esquina e a individualidade não é permitida. A
única forma de romper com essa sociedade binária, dominada pelo conflito de
opostos, é a unidade:
Há várias fórmulas básicas que têm
mantido este planeta na ignorância e na escravidão. A primeira é o conceito de
nação ou país. Se traça uma linha em torno de um território e se lhe chama
país. O que significa que se deve colocar polícia, controle de aduanas,
fronteiras, exércitos, e também problemas com as outras tribos do outro lado da
linha.
O garoto subliminar, um dos fantasmagóricos habitantes de
Nova, se desloca por um mundo corrupto onde as forças da ordem são os
criminosos mais perigosos. Essa atmosfera antecipa em mais de uma década a
paranoia pós-hippie dos speed-freaks e dos hell-angels, o
fim do sonho psicodélico de retorno à natureza, uma onda que se choca contra as
pedras do poder e deixa um rastro de destruição... Como diz Ginsberg,
premonitoriamente, em Uivo: “eu vi as melhores mentes de minha geração
destruídas pela loucura”.
No início dos anos setenta viveu uma
crise criativa em Londres. Escreveu um roteiro para cinema – As últimas
palavras de Dulch Schulz –, em 1970, dois romances e compilações de relatos
que foram absolutos fracassos comerciais, assim como todo o restante de sua
obra posterior.
Em meados dos anos setenta, em parte
devido à ajuda de Allen Ginsberg, passou a fazer seminários em universidades
americanas e europeias e, de volta aos Estados Unidos, publicou inúmeras obras,
dentre as quais se destacam A terceira mente, de 1978, Brion Gysin,
e Doctor Benway, de 1979 (espécie de variação de Almoço nu, protagonizada
por um de seus personagens mais enigmáticos).
Nos anos oitenta publicou uma genial
trilogia do espaço: Cidades da noite vermelha, em 1981, O lugar dos
caminhos mortos, em 1984 e As terras do ocidente, em 1987. Nestas
produções, aborda gêneros que vão desde o western surreal-cibernético
até a ficção científica mais reflexiva. Retomou o melhor de seu estilo e o
aplicou a um novo tipo de histórias, transcendendo a compulsão do cut-up e
retornando a um estilo mais simples.
Do final dos anos oitenta até 1997,
ano de sua morte, além da enorme quantidade de obras, dedicou-se também
à pintura, à música e ao cinema, gravando diversos discos junto a nomes como
David Bowie, Frank Zappa e Tom Waits. Protagonizou também diversos
curtas-metragens e filmes, convertendo-se, no final da vida, de escritor
maldito a ícone midiático, referência para os herdeiros do punk e
para a nova cena eletrônica experimental.
O tratamento da palavra
A linguagem de
Burroughs se afasta não apenas da norma acadêmica, mas também das diversas
gírias e dialetos marginais americanos. Frequentemente, utiliza termos que ele
próprio inventa, de construções gramaticais impossíveis ou de palavras
desprovidas de significado, mas plenas de sonoridade.
Por tudo isso, a maior parte de sua
obra, poética ou em prosa, não tem a intenção de narrar, mas sim de evocar
estados psicológicos extremos (quase nunca sentimentos) e o faz através de um
processo de desconstrução e de recomposição da linguagem, para alcançar algo
mais do que um meio de expressão.
Nesse sentido, assim como Joyce,
altera a base da linguagem literária utilizando-se de um novo código, transmite
novas ideias e novas sensações. Escrever passa a ser um ato físico de
coordenação motora – deseja escrever mais rápido do que pensa, transformando a
escrita num método de meditação.
Da mesma forma que a repetição dos
mantras, nas religiões ancestrais, é uma forma de retirar da linguagem todo
significado e limpar a mente de todo pensamento através do ritmo respiratório,
a escrita automática, como método, liberta da corrente de vibração interna,
encerrando os pensamentos em uma folha de papel e deixando-os fluir sem
refletir sobre eles.
Esta forma de trabalho foi uma das
principais contribuições de Burroughs para a Geração Beat, da qual foi o antecessor
direto e o grande mestre. Muitos dos representantes dessa geração demonstraram
interesse pela meditação e pelas tradições místicas orientais e desenvolveram
um estilo hipnótico e rítmico, muito influenciado por estas filosofias e pelos
movimentos musicais, como os do jazz, especialmente.
Tanto Allen Ginsberg como Gergory Corso
e, sobretudo, Jack Kerouac, refletem em sua literatura esse fluxo obsessivo e
automático de palavras, que guarda estreita relação com o beat (batida),
que foi o sinal da identidade dessa geração – batidas nas teclas da máquina de
escrever, batidas da bateria de jazz que conferem um ritmo espiral aos
improvisos, batidas das máquinas que trabalham no lugar do homem a partir da
Segunda Guerra Mundial e, sobretudo, dos golpes da vida e da sociedade sobre
todos aqueles que pretendem guiar-se por sua própria consciência e não pelo que
é estabelecido como modelo de pensamento e de conduta.
O tratamento peculiar que Burroughs
dá à linguagem o leva à invenção do método cut-up (cortar em pedaços)
aplicado à narrativa, que consiste em recortar um texto em vários fragmentos,
agitá-los até misturá-los aleatoriamente e, finalmente, recombiná-los da forma
como vão emergindo. Esse método perpassa obras inteiras de Burroughs e foi
também utilizado por ele em entrevistas, combinando três ou mais fitas gravadas
com discursos diferentes, misturados de forma desconexa.
Esses experimentos formais foram
sumamente importantes na evolução da música eletrônica e das artes audiovisuais
a partir dos anos sessenta, o que explica a influência de Burroughs sobre
músicos como Kurt Cobain e Laurie Anderson e sobre cineastas como Gus Van Sant
e David Cronenberg.
Um dos maiores méritos de Burroughs
foi ter sido capaz de “sobrevoar” todas as tendências, sem se envolver com
nenhuma delas mais do que por sua personalidade intensa. Foi capaz de publicar
dezenas de livros na década de sessenta sem se aproximar do que era “moda” na
época. Criou uma obra atípica e visionária, que quando é lida atualmente
(sobretudo a trilogia Nova), se mostra absolutamente esclarecedora e
atual.
A capacidade de reinventar-se diz
muito sobre quem é Burroughs, pois muitos dos resultados expressivos que
alcançou ainda não foram assimilados nem incorporados em sua totalidade pela
literatura, embora a música e as artes visuais há tempos transitem pelos
caminhos que traçou.
Hoje, quase dezoito anos após a sua
morte, continua ocupando o mesmo lugar inclassificável que sempre ocupou – e o
tempo continuará a dar-lhe razão.
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