O Miguel do “Reino Maravilhoso”
Por Maria Vaz
Hoje
escrevo-vos de Adolfo Correia da Rocha, mais conhecido pelo pseudónimo que lhe
conferiu notoriedade: Miguel Torga. Nasceu a 12 de agosto de 1907, numa pequena
aldeia portuguesa em que o número de habitantes não atinge a casa dos milhares,
de nome ‘São Martinho de Anta’. Assim, podemos dizer que viveu toda a sua
infância rodeado por uma natureza ímpar, em que os montes verdes contrastam com
o tom do horizonte, quer pela sombra dos dias de sol ou pelo jogo de penumbras
observáveis à luz do luar, na irregularidade em que se camuflam os vales e os
declives que terminam nas margens generosas do rio Douro: um rio presenteado
com as vinhas (plantadas como que se tratassem de adorno paisagístico das
serras), numa região em que se produz um dos melhores vinhos do mundo (o
conhecido ´vinho do Porto´), numa unicidade paisagística natural que lhe
conferiu o devido reconhecimento pela UNESCO na qualidade de Património da
Humanidade.
Foi nessa infância
de mãos dadas com a natureza que nasceu uma parte do espírito bucólico que
habita a essência dos seus versos, como neste trecho de um poema publicado no
Diário I, em Coimbra, pelo ano de 1941:
“A vida é
feita de nadas:
De grandes
serras paradas
À espera de
movimento
De searas
onduladas
Pelo vento.”
Talvez tenha
sido essa harmonia do ambiente — miscigenada com a beleza imaterial que tem a inteligência e que confere um certo grau de charme às pessoas espirituosas que
a desenvolvem livremente contra qualquer tipo de castração ideológica ou de opressão
política —, que o tenha inspirado para escrever uma das mais bonitas homenagens
à beleza, que convosco partilho:
“Não tens
corpo, nem pátria, nem família,
Não te
curvas ao jugo dos tiranos.
Não tens preço
na terra dos humanos,
Nem o tempo
te rói.
És a
essência dos anos,
O que vem e
o que foi.
És a carne
dos deuses,
O sorriso
das pedras,
E a candura
do instinto.
És aquele
alimento
De quem,
farto de pão, anda faminto.
És a graça
da vida em toda a parte,
Ou em arte,
Ou em
simples verdade.
És o cravo
vermelho,
Ou a moça no
espelho,
Que depois
de te ver se persuade.
És um verso
perfeito
Que traz
consigo a força do que diz.
És o jeito
Que tem,
antes de mestre, o aprendiz.
És a beleza,
enfim. És o teu nome.
Um milagre,
uma luz, uma harmonia,
Uma linha
sem traço...
Mas sem
corpo, sem pátria e sem família,
Tudo repousa
em paz no teu regaço. “
Mas há ainda
tanto a falar deste Miguel Torga: após uma infância polvilhada de encantos
naturais e da humildade transparente da gente de poucas posses e muitas
virtudes que habitavam a região, Miguel mudou de cidade, fixando residência no
Porto. Na altura tinha cerca de 10 anos e trabalhava, fazendo pequenos
trabalhos domésticos. Contudo, na ironia de uma insubordinação que mais tarde
se tornaria evidente, foi despedido. Isso fez com que os familiares o enviassem
para o Seminário da cidade de Lamego, mais próxima da localidade em que a
família residia. Foi em Lamego que iniciou o seu contato com o estudo e com o
mundo inundado de saber, que tanto o fascinou: aprendeu História, fundamentos
teológicos, latim, Geografia e uma imensidade de saberes com que, até então,
não tivera qualquer tipo de proximidade. Não obstante, a sua determinação e o
repúdio quase certo por uma vida de regras e submissões, fez com que, de
pronto, transmitisse aos pais a ideia de que não queria ser padre.
Por esse
motivo, no ano subsequente, com apenas 13 anos, Torga decidiu emigrar para o
Brasil em busca de oportunidades que não se limitassem às paredes do seminário
e à vida recatada que não combinava com o seu espírito liberal. Chegado ao
Brasil, instalara-se em uma fazenda de café pertencente a um tio: próxima à
cidade de Leopoldina, no Estado de Minas Gerais. Deparando-se com a
inteligência acima da média de Miguel, o tio decidiu pagar-lhe os estudos em
Leopoldina e, mais tarde, na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra.
Foi durante
a faculdade que Miguel Torga iniciou a sua incursão no mundo das letras, muito
embora tenham sido as paisagens transmontanas, onde mais tarde exerceu a sua
profissão de médico, o plano de fundo da sua obra, bastante diversificada. Não
obstante, ficou conhecido em Coimbra pela sua originalidade de pensamento e
pela coragem de se afirmar contra a praxe, em um tempo e em um lugar onde (ainda
hoje), muito se prezava a tradição. Esse espírito reivindicativo custou-lhe uma
passagem pela prisão, devido a uma crítica escrita ao regime de Franco. Mas o
seu amor à liberdade, que se miscigena o seu distanciamento (ou concepção muito
própria) da religião, é louvável e digno de reflexão:
“—
Liberdade, que estais no céu...
Rezava o
padre-nosso que sabia,
A pedir-te,
humildemente,
O pio de
cada dia.
Mas a tua
bondade omnipotente
Nem me
ouvia.
— Liberdade,
que estais na terra...
E a minha
voz crescia
De emoção.
Mas um
silêncio triste sepultava
A fé que
ressumava
Da oração.
Até que um
dia, corajosamente,
Olhei noutro
sentido, e pude, deslumbrado,
Saborear,
enfim,
O pão da
minha fome.
— Liberdade,
que estais em mim,
Santificado
seja o vosso nome.”
A sua obra
literária é muito vasta e tem o mérito de ter sido galardoada com inúmeros
prémios nacionais e internacionais. Não obstante, não podemos deixar de falar
do poeta que subjaz o pensamento crítico: por detrás do amante da liberdade, de
uma personalidade difícil de oprimir ou de convencer com base em persuasões
duvidosas, encontra-se o poeta da beleza, dos sentimentos, que acredita no
amor. Foram palavras de Miguel as que nos dizem que “só havia três coisas
sagradas na vida: a infância, o amor e a doença.” Sobre o amor, encantem-se com
os seguintes versos:
“Porque o
amor é simples,
Vale a pena
colhê-lo.
Nasce em
qualquer degredo,
Cria-se em
qualquer chão.
Anda, não
tenhas medo!
Não deixes
sem amor o coração!”
Chegados a
este ponto, fácil será dizermos que a sua obra se encontra impregnada de
liberdade, de beleza, de amor, de crítica e, por conseguinte, de uma tonalidade
singular alimentada pelo jeito voraz de insatisfação crónica na busca da
concretização dos seus elevados ideais. A insatisfação vislumbra-se: no amor
(ou nos amores) em que a vida lhe provocou a exaltação dos sentidos; no
inconformismo com as ditaduras opressivas das paixões do espírito e do corpo;
na castração do seu espírito libertino, sempre em busca de uma expansão; nos
pensamentos dialéticos entre a tese e a antítese de um ser que se busca, que
quer a sua síntese. Uma insatisfação esperançosa, que se leia o poema ‘esperança’:
“Tantas
formas revestes, e nenhuma
Me satisfaz!
Vens às
vezes no amor, e quase te acredito.
Mas todo o
amor é um grito
Desesperado
Que apenas
ouve o eco...
Peco
Por absurdo
humano:
Quero não
sei que cálice profano
Cheio de um
vinho herético e sagrado.”
Miguel Torga
faleceu em 1995, mas a sua obra é imortal. A melhor homenagem que lhe podemos
prestar, além da transmissão dos seus poemas, traduzir-se-á na continuação da
sua reivindicação por liberdade, na sua crítica à opressão endógena e exógena,
sem deixar de ter amor no coração. Em jeito de conclusão, deixarei mais um
poema, mas incito a uma reflexão a essa liberdade que nos distingue: que a
diferença não oprima e que a crença jamais castre a mente e o corpo. Que cada
um possa ser feliz e ser o “capitão da sua alma”. A tarefa final foi deixada
“aos poetas”:
(...)”E vos
digo e conjuro que canteis.
Que sejais
menestréis
Duma gesta
de amor universal.
Duma epopeia
que não tenha reis,
Mas homens
de tamanho natural.
Homens de
toda a terra sem fronteiras.
De todos os
feitios e maneiras,
Da cor que o
sol lhes deu à flor da pele.
Crias de
Adão e Eva verdadeiras.
Homens da
torre de Babel.
Homens do
dia-a-dia
Que levantem
paredes de ilusão.
Homens de
pés no chão,
Que se
calcem de sonho e de poesia
Pela graça
infantil da vossa mão.”
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Comentários
Dentro daquilo que sobre o autor decidiste expor, e é verdade que aqui e acolá abrangeste o maioral da sua temática, existe uma característica que sobressai no seio das demais exibidas por Torga. Talvez por ser uma das que nele mais admiras ou com a qual mais te identificas, essa questão mereceu o teu sublinhado. Na verdade, Torga será o eterno 'Orfeu rebelde' e, como se sabe, sem rebeldia não pode existir... liberdade. Defendeste, por isso, com brio a linha a que decidiste , consciente ou não, dar destaque. E convenhamos: o brilho de uma voz não deve muito aos actos repetitivos, isto é, ao recordar de linhas que alguém um dia já estipulou; mas sim à apresentação doutras linhas que a essas linhas concedem um diferente fulgir - o autor visto pelos olhos limpos daqueles que o lêem.
Aguardarei com o mesmo interesse o teu próximo trabalho.
Beijos.