O livro das semelhanças, de Ana Martins Marques
Por Pedro Fernandes
Ana Martins Marques. Foto: Rodrigo Valente |
Qual a
pátria de um poeta? Pablo Neruda elegeu Isla Negra; João Cabral de Melo Neto,
Sevilha; Carlos Drummond de Andrade, Itabira; Manoel de Barros, o Pantanal
sul-mato-grossense; Dora Ferreira da Silva e Sophia de Mello Breyner Andresen,
a Grécia; e os exemplos se prolongariam quase ao infinito. É evidente que
aquilo que esses poetas criaram está além do ponto no mapa. Os lugares
constituem, para sua poesia, numa outra geografia: a de fornecer temas, formas
e obsessões de sua poesia, o de permitir ao poeta olhar para o mundo. Esses
lugares são agora uma nebulosa através da qual cintilam seus poemas. A
capacidade do grande poeta é remontar com a diversidade de materiais sugeridos
pela sua pátria sua poesia que, por diversa e heterogênea que seja, é um só
poema, é uma só obsessão.
Pode então
um gesto de poético se constituir sem esse lugar? Pode então um poeta ser sem
pátria? Na poesia contemporânea, essa que se afirma como um gesto de vozes galvanizadas,
essa já incapaz de se distanciar dos poemas que a antecedem (sempre foi assim,
mas agora esse gesto se incorpora na estrutura, impregna no vocabulário, na
construção do poema), parece que sim. Não que este seja um fenômeno da
contemporaneidade; este é, sim, uma condição mais recorrente agora, nesse tempo
de lida poética tão diversa que já é
incapaz de precisar um grupo específico ou uma linha na qual o leitor possa
pendurar a obra poética lida.
Em O livro das semelhanças, o terceiro da
poeta Ana Martins Marques (o primeiro foi A
vida submarina, publicado em 2009
e o segundo, Da arte das armadilhas,
em 2011), o que se pratica é a construção
de outra pátria, distinta desse ponto geográfico e imaginário do poeta. Diria
que a poeta parece tocada pela extrema forma confirmada pela atmosfera
modernista da metapoesia e trata de se refugiar num mapa cujas coordenadas ou
cuja cartografia é só um mar de páginas, um terreno de palavras e nada é
possível transbordar desse interior construído ora de maneira minimalista ora
de maneira mais solta, com versos que se quebram porque não cabem nos limites
impostos pelo próprio lugar ou pátria eleita: o livro.
Isso está
impresso desde o título, O livro das
semelhanças, que permite ao leitor buscar aí um catálogo bastante
heterogêneo de aproximações com as quais a poesia possa estabelecer um diálogo.
E não encontrará nada mais do que o que poderíamos enumerar como o comezinho do
próprio livro. Mesmo que o eu-poético se dedique a perscrutar o que está fora
desse universo de tinta e papel, o que se passa fora é tragado pela força da
escrita ou está a favor (ou à semelhança) do que deve estar ou deve caber no
livro.
Claro, que isso
se verifica de maneira mais forte no primeiro conjunto de poemas, “Livro”, em
que a poeta transforma o próprio objeto (a sua forma) em matéria para a poesia
e se utiliza da natureza estrutural de cada elemento para enformar seus poemas, da capa à contracapa. Isso não sem antes
estabelecer também em forma de poema, o que o leitor poderá compreender,
primeiro, como o projeto sobre o livro que irá ler, mas depois, como um conjunto
de ideias soltas através das quais seria possível conceber outras antologias
poéticas diferentes da que ele tem em mãos.
Mesmo que
mais adiante o leitor encontre um poema que responde pelo título do livro, depois
de ler as outras duas partes que constrói O
livro das semelhanças, ficaria satisfeito se Ana Martins Marques tivesse
abdicado da série de poemas de “Cartografias”, “Visitas ao lugar-comum” e parte
dos poemas do próprio “O livro das semelhanças”, que ocupa não apenas um título
e uma poema, mas uma parte da obra. Ou, estruturalmente, há mais coerência que
o conteúdo que integra essas outras partes do livro fossem integradas entre os
poemas “Capa” e “Contracapa”. Zelaria por uma certa unidade almejada pela poeta
e uma das condições mais importantes para um gênero sempre acusado de disperso
ou reunião à toa de palavras como é a poesia. É óbvio que isso não tira o
mérito do seu trabalho, porque, nota-se o zelo com a construção do poema na
própria maneira como os textos estão construídos, isto é, não é o mero enfeixe ou
a disposição dos poemas o responsável por dizer sobre o exercício de criação e
reflexão elaborados pelo poeta.
E o leitor
concordará que o momento melhor realizado desse livro não está na primeira
parte, mas nos conjuntos de poemas de “O livro das semelhanças” e “Visitas ao
lugar-comum”; esse último ainda melhor que aquele – é a ocasião que o levará de
volta a Ana Martins Marques que conheceu desde o início. Ou a reafirmação de
que, se o poeta já não elege um lugar ou está encerrado num lugar de tinta e
papel, não pode lhe faltar uma voz própria que reafirme não uma raiz
geográfica, mas um ponto entre a diversidade de vozes anteriores e do seu
tempo. No caso de “Visitas ao lugar-comum”, parece que se a tarefa do poeta
contemporâneo é de se afastar, tal como os pontos geográficos, de certos temas
tornados quase obsessões para a poesia, é neles que ainda repousam o melhor
material capaz de lhe render bons poemas. Isto é, por mais objetiva que se
queira tornar a poesia, a melhor ainda é a que fala do nosso interior.
Mas, tocar
na caracterização do universo poético pela via da pátria do poeta não foi uma
referência gratuita; no já citado conjunto de poemas intitulado “Cartografias”,
Ana Martins Marques como que insinua uma busca por um lugar no mapa. Depois de
transitar, não fisicamente, mas imaginariamente por uma cartografia impressa (o
leitor não esquecerá que tudo aqui ganha forma no interior da forma livro),
como se assinalasse um espaço para um encontro por fim não realizado, conclui
que o mundo já não é só o que se imprime na cartografia. Nem somente o que está
nos mapas. Conhece-se melhor pela insegurança da ausência de um roteiro que lhe
pegue pela mão e diga aonde ir; além disso, atordoados, os mapas também podem
facilmente confundir esses indivíduos que por eles se guiam e quem por eles se
guiam pode não ir a lugar algum; ou mesmo, como se num excesso de espaços por
conhecer, perder-se pode ser a melhor forma de se conhecer um lugar. O lugar,
já é, por fim, o que pouco importa. O homem é já sujeito desterritorializado.
O anseio do
poeta – e isso parece ganhar forma na poética de Ana Martins Marques – é o de abdicar
de mapas, dos lugares, de uma pátria. E para quê? Para ser só poeta. Porque seu
ponto no mapa é a convivência com a palavra e seu enigma de nomear, e sua
capacidade de não dar conta da realidade visível, e sua impossibilidade de
dizer as coisas. É notável que a poesia cada vez mais se faz de uma certa ponta
de migalha, de uma certa maneira de captar o que lhe rodeia. O poema anda a
nutrir-se da necessidade de encapsular coisas e instantes para torná-los formas
distintas das formas existentes. Essa não é uma ânsia nova; é apenas um
aperfeiçoamento contínuo daquilo exercitado noutros tempos. Também o contexto é
outro e outros também são os materiais ao alcance do poeta. Resta saber é se no
futuro esse trânsito sem território e esse mergulho num lamaçal de palavras alcançará
um lugar entre a tradição. Mas, isso só o futuro dirá.
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