Notas sobre o filme Que horas ela volta? de Anna Muylaert
Por Rafael Kafka
Nas obras de Clarice Lispector, a
criança assume um papel muitas vezes demoníaco. Ofélia de A legião estrangeira e Sofia de Desastres
de Sofia são os exemplos mais claros que me veem à mente agora: elas surgem
como elementos perturbadores, como seres que veem além das aparências, do
tacitamente aceito como absoluto. As crianças com seu olhar ingênuo, não preso
ao convencional, acabam tendo consciência de frinchas, de brechas na existência
cotidiana dos adultos, os quais desarmados diante dessa invasão se sentem nus,
envergonhados.
É
um olhar desse tipo que iremos acompanhar em Que horas ela volta? de Anna Muylaert. Deparamo-nos aqui com uma
tradicional família de classe média, a qual é vista por muitos como o ideal
para manter a sociedade brasileira e mundial andando nos trilhos. Não importa
se essa família é composta por um senhor mais velho que é um artista frustrado
que mantém uma espécie de socialite com ar arrogante e preocupada demais com as
aparências, sem tempo de cuidar do filho que cresce protegido demais pela
empregada, Val, e se torna idiotizado em seu modo de ser.
Durante
a primeira meia-hora do filme, temos a descrição precisa dessa família e de seu
cotidiano. O silêncio é a marca registrada de uma casa onde o mais animado dos
seres é justamente a empregada, que representa uma boa parcela da população
explorada sem saber que o é. Porém, um elemento desestabilizador surge: um
telefonema de Jéssica, filha de Val, a qual pretende vir do Nordeste para, como
a mãe, tentar a vida em um grande centro: São Paulo, capital do progressismo e
do conservadorismo nacionais.
A
diferença é que instigada por um professor de sua escola pública, da área de
História, Jéssica sonha em entrar no curso superior e, por meio da formação em
Arquitetura, gerar mudança social, discurso esse que causará choque na família
tradicional, que não consegue ver a bela moça de tez mulata e cabelos
encaracolados frequentando os corredores da maior universidade do país. Jéssica
representa a realidade de diversas pessoas as quais não não possuem uma escola
pública de qualidade, mas acabam se deparando com uma figura provocadora que
amplia a sua visão de mundo e sua capacidade de sonhar.
É
dotada de um olhar crítico que Jéssica se choca com as condições de trabalho de
sua mãe, surdamente explorada e oprimida pela esposa do artista frustrado.
Começa então uma série de conflitos maiores ou menores que aos poucos minam as
estruturas daquela família, evidenciando todo um conjunto de convenções sociais
as quais foram introjetadas em hábitos mecânicos e vividas na forma de farsa.
Estamos
diante de um universo fechado em si mesmo, preocupado em manter uma certa forma
de ser visto perante a sociedade. Cada ser humano ali representa um papel e Val
assume o seu como se fosse algo absoluto, inquestionável. A maior prova disso
são duas cenas bem emblemáticas nas quais ela diz ser um absurdo a filha da
empregada sentar no mesmo local que o filho do dono da casa senta e outra em
que a piscina da casa é vista como um local inatingível pelas pessoas que ali
encontravam-se meramente para servir.
Jéssica
possui o mesmo olhar demoníaco de Ofélia e Sofia. Mas ao contrário de uma
ingenuidade infantil ainda não entendedora do jogo de relações do mundo adulto,
Jéssica possui a consciência de quem já entende bem demais o mundo que se
encontra ao seu redor. A garota sabe da luta de classes, sabe da existência de
explorados e exploradores e não aceita sua mãe em uma posição passiva de quem
aceitou o mundo do jeito que é, como se fosse impossível mudá-lo.
Tal
mudança não começa necessariamente com algum ato mais drástico como bombas,
passeatas ou terrorismo. Ela começa no momento em que a pessoa toma consciência
de si para depois tomar consciência de classe. O primeiro passo para se tornar
autônomo é se tornar consciente de sua situação e aí, quem sabe, provocar
mudanças gradativas. Jéssica não aceita ter um espaço naquela casa. Ela julga a
propriedade privada como um roubo, pois subjuga a pessoa que faz tudo ali
funcionar como se fosse uma criatura de menor valor. No olhar de Jéssica vemos
que as relações de trabalho de nosso sistema capitalista não apenas são
relações de compra e venda de força de trabalho e sim de dignidade humana: o
outro é coisa, deve ocupar seu espaço e meu olhar superior a ele se volta
condescendente desde que esse outro não tente romper as barreiras de sua
dominação sofrida.
Por
conta de sua consciência, Jéssica chega a ser insensível em alguns momentos.
Cruel mesmo. Vemos nela, porém, uma força muito maior do que a presente em
Fabinho, jovem de classe média que parece não ter mudado nada em relação à
primeira cena do filme, quando surge ainda criança perguntando a Val a que hora
sua filha voltaria. Jéssica é a prova concreta, mesmo que no campo da arte,
daquilo que Marx disse em certo momento: a essência das relações humanas é o
conflito. Sem conflito, estagnamos.
Muitas
pessoas tenderam a ver em Que horas ela volta? um filme sobre a amizade de um jovem garoto com a empregada de sua
casa. Todavia, mesmo nessa análise tão superficial, a meu ver, do tema do
longa, há a possibilidade de se questionar as bases de nosso sistema econômico
e moral: que tipo de estrutura familiar é essa na qual pais estão tão distantes
do filho que a secretária do lar acaba sendo a mão acalentadora e a palavra
consoladora no momento de maior frustração do filho? Como se não bastasse a
necessidade de uma mão estranha até para pegar o iogurte na geladeira, essa
família precisa que uma moça simples seja a verdadeira mãe de uma criança sem
pai ativo e sem mãe amorosa.
Aos
poucos, Val começa a entender sua situação.
A crueldade de Jéssica é seguida de importantes êxitos e Val percebe que
de repente seja a hora de uma mudança de rumos em sua vida. É o momento em que
ela decide largar sua antiga condição e parte para cuidar da filha e de uma
criança a qual representa uma chance de encontro consigo mesmo e de cuidado
familiar. Val aprende pelo exemplo da filha que pode e deve questionar sua
posição neste mundo, pois somos o que projetamos ser e não o que nos foi
determinado como o que somos.
Um
ponto a se destacar é a linda atuação de Regina Casé. Talvez por ter o hábito
de lidar com pessoas simples desde sempre, a apresentadora global se saiu bem
demais no papel da bem-humorada e batalhadora Val. Vemos nela uma ingenuidade
similar a de Fabiano em Vidas secas,
mas com a diferença de que a pessoa ao seu lado tem consciência do que ocorre
no mundo injusto em que elas habitam e assim elas podem sair do mar de chamas
em que se encontram.
O
filme é praticamente todo gravado em ambientes fechados, mesmo quando Jéssica
vai com Fabinho e o pai conhecerem a Faculdade de Urbanismo da USP. Isso me
lembrou demais o modo como se passa a história no filme Entre os muros da escola, passando para mim o mesmo ar conflituoso
de um universo fechado em si mesmo, apesar de em outro contexto social. Além da
beleza estética das cenas, temos diante de nós um verdadeiro panorama das
relações humanas falseadas por um mundo econômico e social que apregoa a
essência como sendo aparência, a superioridade do ter sobre o ser.
Creio
que Que horas ela volta? é um filme
excelente para se entender as contradições sociais de nosso país. Ao lado de O som ao redor e Tropa de elite 2, vejo neste filme uma bela forma de se entender
pela arte como nosso país ainda é crivado e marcado por um classismo que só
atrasa nosso avanço, um classismo que nos últimos dois anos tomou as ruas do
país e o congresso nacional com o anseio de tornar as relações humanas e
políticas um verdadeiro mar de retrocesso.
Em
um mundo cheio de informações e preguiça, filmes como esses têm a possibilidade
de fomentarem o debate, a sensibilidade e acima de tudo a consciência das
mazelas que nos rodeiam. É a arte dizendo que mesmo entretendo tem muito a
colaborar, com o olhar demoníaco das diversas Jéssicas lispectorianas
espalhadas por aí, para tirar o ser humano de sua zona de conforto e fazê-lo
lutar contra todo tipo de opressão.
Comentários