Nobel 2015: algumas proposições
Por Alfredo
Monte
Estamos
aqui. Interrogamos símbolos persistentes.
É a hora do infinito desacerto-acerto.
O vulto da
nossa singularidade viaja por palavras
matéria insensível de um poder esquivo.
Confissões
discordantes pavimentam a nossa hesitação.
Há uma embriaguês de luto em nossos atos-chaves.
Aspiramos à
alta liberdade
um bem sempre suspenso que nos crucifica.
Cheios de
ávidas esperanças sobrevoamos
e depois mergulhamos nessa outra esfera imaginária.
Com
arriscada atenção aspiramos à ditosa notícia de uma perfeição
especialista em fracassos.
Estrangeiros
sempre
agudamente colhemos os frutos discordantes
(Ana
Hatherly)
Wislawa Szymborska: não fosse o Prêmio Nobel, quais as oportunidades, para o leitor comum de língua portuguesa, de ter acesso à obra da poeta polonesa? |
Depois do impacto que teve para mim a
leitura de Wislawa Szymborska e Ivo Ándritch, desejo de coração que o
Nobel deste ano mais uma vez seja concedido a algum escritor de que nunca se
ouviu falar, de uma língua minoritária, o que geralmente irrita os comentadores
(pois como vão recorrer a informações e resenhas já mastigadas e prontas para a
prensa?; como ficam os comentários-padrão?).
Afinal, não fosse o prêmio, quais as
oportunidades, para o leitor comum de língua portuguesa, de ter acesso à obra
da poeta polonesa ou do ficcionista iugoslavo1, ambos admiráveis? Todo
mundo mais ou menos bem-informado conhece (nem que seja de ouvir falar) Vargas
Llosa, para citar um premiado recente, ou Philip Roth, para falar de um dos
“eternos candidatos”. Há cinquenta anos, quantos conheciam a obra do soviético
Mikhail Sholokhov (ainda mais com a tensão da Guerra Fria)2? Já o
premiado anterior, Jean-Paul Sartre («pelo seu trabalho, rico em ideias e
preenchido com o espírito da liberdade e em busca da verdade, exerceu uma
influência profunda na nossa época»),
era uma estrela mundial, um personagem central da cultura da época. Em 1966, os
vencedores (um raro caso de divisão do prêmio) seriam ainda mais “obscuros”, o
israelense Shmuel Yosef Agnon e a alemã (judia) Nelly Sachs3.
Isso me leva a uma segunda proposição (se
dermos algum valor ao prêmio, questão que a minha primeira proposição torna
irrelevante): como ainda somos remotos, minoritários, em termos de língua e
literatura, no mundo, é urgente que se escolha um autor brasileiro (ou
português, ou africano de expressão portuguesa).
As mortes recentes de Ariano Suassuna,
Manoel de Barros e João Ubaldo Ribeiro chamam a atenção para o seguinte fato:
nossos autores mais canônicos estão muito velhos, e começam a ir-se sem que
vejamos uma premiação expressiva. Dalton Trevisan (para mim, seria o natural
vencedor num páreo nacional) chegou aos provectos noventa anos. Macróbios, em
maior ou menor medida, estão Lygia Fagundes Telles, Carlos Nejar, Adélia Prado,
Raduan Nassar, Rubem Fonseca, os nomes que imediatamente vêm à memória como os
clássicos que ainda estão entre nós. Até mesmo João Gilberto Noll e Chico
Buarque já chegaram a uma idade “venerável”.
Só espero que, chegando a vez do Brasil, não
escolham a Embaixadora dos Países Ibéricos, a Xerezade do Paraguai, a
Instituição da “Literatura” em pessoa: Nélida Piñon. Ou então José Sarney, já
que ele sempre teve seus admiradores estrangeiros (Lévi-Strauss, por exemplo),
os quais não devem conhecer a vida severina a que ele e sua família condenou o
povo do Maranhão por décadas e décadas.
António Lobo Antunes: com justiça pode ser considerado um dos três ou quatro maiores romancistas do mundo. |
Em Portugal, António Lobo Antunes com
justiça pode ser considerado um dos três ou quatro maiores romancistas do
mundo. E sua companheira de geração, Lídia Jorge, pouco fica atrás (creio que,
com seu imenso talento, nomes do naipe de José Luís Peixoto e Gonçalo M.
Tavares ainda não são “cogitáveis”). E será que deixarão ir-se a matriarca da
prosa lusitana de alta qualidade, Agustina Bessa-Luís, assim como deixaram os
maiores representantes da poesia contemporânea, caso de Herberto Helder e Ana
Hatherly, mortos ambos em 2015?
E por que não nos surpreender um nome
africano? É lógico que todo mundo pensa primeiro em Mia Couto, e seria
esplêndido. Mas que tal um autor absolutamente inesperado, que represente a língua
portuguesa, mas também uma novidade, algo ainda não “domesticado”? Afinal, é um
território quase inexplorado.
O que me leva à minha terceira proposição:
se não fizesse justiça à língua portuguesa, que pelo menos o Nobel saísse um
pouco do circuito europeu, sem precisar se render aos Estados Unidos, apesar de
todos os nomes que apreciamos e admiramos (Don DeLillo, Joyce Carol Oates, o
próprio Philip Roth)4, embora seja lícito perguntar se, por exemplo,
o albanês Ismail Kadaré pode ser considerado do “circuito europeu”, periférico
como é seu país; ou então o estupendo escritor sérvio Milorad Pávitch? Ambos na
confluência entre continentes e culturas até hostis entre si.
Adonis: será que a tragédia da Síria não inclinaria a balança para Adonis? |
Será que a tragédia da Síria não
inclinaria a balança para Adonis, que agora — e com grande tardança— está
traduzido no Brasil), autor da belíssima Celebração abaixo?
O tempo
avança,
na mão um
cajado de ossos de corpos.
A lâmina da
insônia
marca o
pescoço da noite.
Crânios –
uns servem sangue
outros se
embriagam e deliram.
O fogo de
suja?
o vento se
infla?
Fumaça é
nuvens.
Nuvens tem
forma de cabeças.
Letras
caídas
são
impressas dispersas no chão
– pedaços de
corpos.
Hoje o
horizonte recomendou a seu filho
o vento que
não saísse.
Como não se
cansam as pedras do caminho?
Nem mesmo o
sol consegue
iluminar
este corpo que sangra sombra.
Dias
cobertos de pó
tem feições
de velhos.
Mariposas
queimam
Subindo a
escada do sono.
A cinza,
princesa,
toma assento
e recebe as honras.
O míssil,
rei,
arrasta a
cauda
sobre os
corpos dos súditos.
O sol está
prestes a dizer
à luz:
ofusca meus olhos.
Será a vida
um erro
que a
matança corrige?
Onde está a
cova aberta para acolher as lágrimas?
E o buraco
que acolherá a alma?
A coisa
elimina a coisa.
Não terá
outro seio
este céu?
Esta rosa,
de onde lhe vem tanta obstinação?
Está sempre
lendo seu amor.
O dia tem
medo do dia
e a noite se
esconde da noite.
Agradeço
ao pó que se
mistura com a fumaça e a abranda,
ao intervalo
entre uma bomba e outra,
ao piso que
sempre aguenta meus passos,
agradeço às
pedras que ensinam a paciência.
Apagou-se a
luz.
Vou acender
a estrela dos meus sonhos.
Leva-me,
amor,
e me mantém
trancado
(Trad. Michel Sleiman)
O
poema se refere ao ano de 1982, quando as tropas israelenses, contrariando resoluções
da ONU, cercaram, bombardearam e massacraram Beirute.
E será que nosso asco pelos dirigentes do
estado de Israel serve como impedimento para a consagração com o Nobel de Amós
Oz, um dos grandes romancistas das últimas décadas?
Ou será que, Haruki Murakami e Japão à
parte, a Ásia nos dará um nome surpreendente, e que nos trará o sopro de beleza
e renovação do prazer de leitura que aquela senhora polonesa já citada, de nome
tão esquisito e impronunciável, trouxe aos brasileiros? Como comprovará o poema
com o qual termino esta arenga nobeliana:
Para mim, o
mais importante na tragédia é o sexto ato:
o
ressuscitar dos mortos das cenas de batalha,
o ajeitar
das perucas e dos trajes,
a faca
arrancada do peito,
a corda
tirada do pescoço,
o perfilar-se
entre os vivos
de frente
para o público.
As
reverências individuais e coletivas:
a mão pálida
sobre o peito ferido,
as mesuras
do suicida,
o acenar da
cabeça cortada.
As
reverências em pares:
a fúria dá o
braço à brandura,
a vítima
lança um olhar doce ao carrasco,
o rebelde
caminha sem rancor ao lado do tirano.
O pisar na
eternidade com a ponta da botina dourada.
A moral
varrida com a aba do chapéu.
A
incorrigível disposição de amanhã começar de novo.
A entrada em
fileira dos que morreram muito antes,
nos atos
três e quatro, ou nos entreatos.
A volta
milagrosa dos que sumiram sem vestígios.
Pensar que,
pacientes, esperavam nos bastidores
sem tirar os
trajes,
sem remover
a maquiagem,
me comove
mais que as tiradas da tragédia.
Mas o mais
sublime é o baixar da cortina
e o que
ainda se avista pela fresta:
aqui uma mão
se estende para pegar as flores,
acolá outra
apanha a espada caída.
Por fim uma
terceira mão, invisível,
cumpre o seu
dever:
me aperta a garganta
(Trad. Regina Przybycien).
Notas:
1 Anunciados como vencedores, respectivamente, em 1996 e 1961.
2 “Pelo poder artístico e integridade com a qual, em seu épico O Don
Silencioso, ele deu expressão a uma fase histórica na vida do povo russo”, foi
a justificativa.
3 Justificativas: “Por sua
arte narrativa profundamente característica com motivos da vida do povo judeu” (Agnon); “Pela sua
excelente escrita lírica e dramática, que interpreta o destino de Israel com
toque de força” (Sachs).
4 E a língua inglesa já foi bastante contemplada no século 21: dos quatorze
vencedores, cinco são autores anglófonos (Naipaul, Coetzee, Pinter, Lessing,
Munro).
Comentários