Do 'Mineirês' a Guimarães Rosa

Por Maria Vaz

Guimarães Rosa no Itamaraty, Rio de Janeiro, 1964. Foto: David Drew Zingg. Acervo Instituto Moreira Salles

Passei o feriado passado no interior de Minas Gerais: uma terra abençoada em que abundam a tradição, as delicias gastronómicas e as belezas naturais, minerais e paleontológicas, que os turistas não costumam visitar. Mas não só. Um local em que os amantes do encontro de enriquecedoras divergências culturais certamente se encantam com o sotaque peculiar, tão único, desse Estado onde cabem alguns países como Portugal. E como não sou diferente daqueles que por lá se perdem e encontram, não consegui deixar de achar piada à diferença fonética e ao encurtamento das palavras: um tom de fala em que o timbre de quem profere se combina com um ritmo irregular (que ora se encurta ou prolonga), fazendo com que o orador adquira um jeito engraçado, ainda que não queira. Quem não acharia piada a um “tiquim de dôdeleite” ou a uma exclamação, como, “esse trem é bão demais da conta!”?

E dito isto, redutor seria não falarmos de duas palavrinhas que adquirem – naquele lugar de cultura camponesa –,  além de graça, destaque: o ‘uai’ , o  ‘sô’.As teorias acerca da sua origem divergem, contudo, a maioria dos estudiosos do processo de formação de palavras  encontra a sua enigmática raiz em expressões anglo-saxónicas (que passaram a ser utilizadas de acordo com a fonética que parecia transparecer aos nativos da região), como o ‘why’ e o ‘sir’. Além do supra mencionado, outros vocábulos parecem necessitar de um mecanismo de decifragem: o clássico ‘você’ é trocado pelo simples ‘ocê’; tudo aquilo que pode ser catalogado como ‘coisa’ passa a ser apelidado de ‘trem’; as palavras podem sofrer uma típica adição do ‘im’ (v.g., o ‘pouco’ vira ‘pouquim’; e, claro está, os verbos no gerúndio sofrem um alteração, que se consubstancia na subtracção de um ‘d’ (o ‘comendo’ passa a ‘comeno’, o ‘dormindo’ torna-se ‘dormino’ e assim sucessivamente). 

As peculiaridades do sotaque mineiro fizeram com que, inclusive, se começasse a falar na existência do ‘mineirês’, que se criassem dicionários de ‘mineirês-português’ e que se discutisse a sua hipotética categorização na qualidade de dialeto: um projeto que está a ser desenvolvido na Universidade Federal de Minas Gerais, sob o título, A construção de um Dialeto: a língua portuguesa em Minas Gerais. A par disso, algumas foram as teses que se aventuraram em busca da sua origem dos fonemas, apontando como causa, quer os tempos da escravatura, quer outros movimentos migratórios.

Assim, foi neste contexto de peculiaridades linguísticas que nasceu um grande escritor de que o Estado de Minas Gerais muito se orgulha: Guimarães Rosa. Nascido a 27 de Junho de 1908, em Cordisburgo, no interior daquele estado, mas relativamente perto de Belo Horizonte, a capital, para onde se mudou quando era ainda criança. Era uma criança sobredotada, sendo que começara sozinho a estudar francês, após completar sei anos de idade. No início do seu percurso de estudos, passou pela cidade de São João D’el Rei, onde se iniciou no Alemão, mas rapidamente regressou a Belo Horizonte, onde começou o seu curso de medicina, na Universidade de Minas Gerais, com apenas 16 anos. Durante o período de estudo em medicina, por ocasião da ida ao velório de um amigo, terá proferido a sua célebre frase: "As pessoas não morrem, ficam encantadas".

A sua carreira nas letras iniciou-se por volta do ano de 1929, altura em que começou a elaborar os primeiros contos, no contexto de concurso a um prémio, do qual saiu vencedor, lançado pela revista O Cruzeiro: “O caçador de camurças”; “Chronos Kai Anagke” (título grego, significando Tempo e Destino); “o mistério de Highmore Hall”; e “Makiné”.

Casou pela primeira vez em 1930, altura em que terminou o seu curso de medicina. Resolveu mudar-se para uma cidade do interior do Estado com o intuito de constituir família e começar a exercer a sua profissão passando, desse modo, a ter o primeiro contacto com o linguajar do sertão, que tanto influenciou a sua obra literária, sobretudo pela sua humanidade e predisposição de atendimento aos pobres e aos marginalizados. O seu estilo literário saiu enriquecido desse intercâmbio de ajuda médica e de saber popular que não cabe nos livros: segundo consta o escritor manteve uma forte amizade com um marginalizado, espírita, que ficara conhecido como “seu Nequinha”, que acabara por influenciar o personagem de inspiração sertaneja, da sua obra Grande Sertão: veredas. Por esta altura, a sua relação com a medicina começa a declinar: Guimarães Rosa era uma pessoa sensível e ficava doente ante a sua incapacidade de resolução dos males que assolavam as pessoas que não tinham condições mínimas de subsistência.

Mais ou menos por esta altura, em que resolveu trabalhar como voluntário na ‘Força Pública’ ganhara, nas viagens de cavalo, um tempo extra para estudar idiomas e fazer anotações. Foi nessa altura, em que a sua cultura cívica, geral e o seu poder de oratória não davam para esconder aos mais leigos, que decidiu abandonar a medicina. Sobre isso afirmou as seguintes palavras: (…) “Primeiramente, repugna-me qualquer trabalho material só posso agir satisfeito no terreno das teorias, dos textos, do raciocínio puro, dos subjetivismos. Sou um jogador de xadrez nunca pude, por exemplo, com o bilhar ou com o futebol.”

Aracy, companheira de Guimarães Rosa. Na Alemanha, ajudou os judeus na fuga do nazismo. Foto: Acervo Família Tess

Pelos motivos acima expostos, após ter percorrido algumas cidades do interior, enquanto médico, decidiu prestar um concurso para o Itamaraty, com o objectivo de iniciar uma carreira diplomática, em 1933. Em 1936, recebeu uma grande alegria: um prémio atribuído pela Academia Brasileira de Letras, pela sua colectânea de poemas, Magma.  Dado o seu brilhantismo, passou no concurso do Itamaraty e foi nomeado “cônsul-adjunto” em Hamburgo, na Alemanha, corria o ano de 1938, onde viveu cerca de cinco anos. Entretanto, Guimarães Rosa resolveu casar pela segunda vez, com Aracy: esta segunda esposa do escritor ficou conhecida na História pelo facto de o ter ajudado a emitir vistos de permanência no Brasil a Judeus em fuga da Alemanha Nazi, motivo que os levou a serem homenageados pelo estado de Israel, no ano de 1985.

A passagem de Guimarães Rosa pela Alemanha deixou-o transparecer o misticismo e o espiritismo, de que se tornara inseparável: as suas crenças astrais, sobretudo lunares; o apreço pela sabedoria ancestral dos curandeiros, dos terreiros de umbanda e quimbanda, sem esquecer os ensinamentos do Kardecismo. A sensibilidade do autor permitia-lhe sentir a existência da energia dos locais e das pessoas que, segundo o próprio, originavam alterações no estado de humor e, por consequência, na saúde das pessoas.  

No decorrer do ano de 1942 deu-se a quebra de relações diplomáticas com a Alemanha e o escritor foi preso, até a sua liberdade ser negociada em troca do reenvio dos diplomatas alemães em solo brasileiro. Assim, Guimarães Rosa regressou ao Brasil por um curto período de tempo, não tardando a ser nomeado “secretário de embaixada” em Bogotá, na Colômbia, onde fica até 1944. Durante o período em que ali viveu, escreveu o conto “Páramo”, onde fala de quase morte, de frio, de solidão e de ‘soroche’, o mal das alturas.

Em 1946 regressa ao Brasil e é nomeado ministro sendo, por esse motivo, designado para se deslocar a Paris, enquanto membro da delegação para a Conferência de Paz do pós segunda guerra e, entre 1948 e 1950, o escritor é nomeado “secretário de embaixada” também em Paris. Quando regressou ao Brasil, na qualidade de Ministro, fez uma viagem para o Mato Grosso do Sul, em que recolhe imensa informação sobre a vida no sertão, servindo-lhe de inspiração para várias obras, como: Campo Geral, em que fala de autoconhecimento, dos astros e do sertão; Corpo de Baile; e Grande Sertão: veredas, em que relata a história de um amor proibido entre Diadorim e Riobaldo.  Esta última obra ganha o aplauso da crítica e é traduzida para várias línguas, ganhando vários prémios literários nacionais e internacionais, ganhando Guimarães Rosa um lugar ao sol no pódio dos melhores escritores da terceira geração do modernismo brasileiro. Foi assim que, em 1961, o autor foi granjeado com o Prémio Machado de Assis, atribuído pela Academia Brasileira de Letras.

Os sucessos de Guimarães Rosa extrapolaram os limites da carreira literária e, pelo seu dinamismo e reconhecido mérito em termos diplomáticos, foi dado o seu nome ao pico mais alto da Cordilheira Curdupira,  em 1962.  Em 1958 começa a apresentar sinais de um estado de saúde débil e, talvez por influência desse facto, acrescenta notas de espiritualidade e de dados acerca das religiões às suas publicações, advogando a ideia de sobreposição e supremacia do espírito sobre a matéria. Em 1963 candidata-se pela segunda vez à Academia Brasileira de letras e é aceite por unanimidade. Não obstante, a data da sua tomada de posse só foi por ele marcada quatro anos depois, precisamente três dias antes da sua morte (física), a 19 de Novembro de 1967, de forma súbita, em Copacabana.

Em jeito de conclusão, porque “as pessoas não morrem, ficam encantadas”, deixo-vos, no bom linguajar mineirês, um ‘pouqim’ do eterno Guimarães Rosa:

“Só se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor. Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura.”

Ligações a esta post:

***

Maria Vaz nasceu em Mirandela a 19 de Setembro de 1990, muito embora tenha vivido toda a infância e início da adolescência em Vila Flor. Aos 11 anos, apaixonou-se pela poesia ao encontrar, por mero acaso, um livro de Alberto Caeiro. A par da poesia e da literatura, é uma apaixonada pelas artes em geral, de entre as quais ressalta a música, dado que tocou clarinete entre os 11 e os 21 anos. Publicou o seu primeiro poema em Março de 2015, numa antologia de poetas portugueses contemporâneos e escreve regularmente no seu blog (“The philosophy of little nothings”). É agora colunista do ‘Letras in.verso re.verso”. Além da escrita, é doutoranda em ciências jurídico-criminais, na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, desde finais de 2014.



Comentários

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

A poesia de Antonio Cicero

Boletim Letras 360º #607

Boletim Letras 360º #597

Han Kang, o romance como arte da deambulação

Rio sangue, de Ronaldo Correia de Brito

Boletim Letras 360º #596