Amor literário
Por Rafael Kafka
Por esses tempos,
dei uma aula sobre o conto "No Moinho", de Eça de Queirós. Há nesse
conto uma interessante cena a qual, se eu fosse o escritor português, teria
explorado mais: a ruptura existencial causada pela leitura. Maria da Piedade
era uma moça até então fechada em seu universo existencial regido pelos filhos
e marido doentes. Tudo muda quando ela se depara com Adrião, espírito romântico
e vivaz, típico de escritores que não se afundaram demais na angústia das
palavras. Por não poder concretizar o amor com Adrião, Maria passa a devanear
por meio dos livros do amado, para de alguma forma sentir-se vivendo uma
realidade desejada por ela e mostra em sua conduta algo muito comum a todo
leitor apaixonado: o espírito sonhador.
O fator mais
importante do ato de leitura é essa revolta nascente em nosso espírito quando
passamos a ler com maior frequência. Vislumbramos outras realidades, outros
modos de existir e passamos a sonhar com aquilo. Muitas vezes, esse sonhar nos
leva a mudanças concretas de nossa realidade e o devaneio se torna força para
pequenas revoluções cotidianas. Por isso, sociedades totalitárias controlam o
acesso à literatura: permitir que o ser humano sonhe é o primeiro passo para
que se rompam os grilhões de uma ordem estabelecida.
O ato de leitura é
uma corrente que de forma paradoxal, se fosse pintada, representaria algo que
ao mesmo tempo que dá volta ao redor de si mesma segue em uma linha reta sem
limite. Uma pessoa que lê, não por status e sim por paixão, por sede de viver,
passa de um livro a outro incansavelmente, faz relações entre os temas lidos
por si e possui um pensamento mais capaz de entender os meandros dos fatos que
a rodeiam. Por isso, um sujeito plenamente leitor, aquele que por conta própria
procura novas formas de prazer e conhecimento, é uma pessoa mais perigosa e ao
mesmo tempo mais sedutora. Uma das experiências mais extasiantes de minha vida
foi a de sentar diante de uma tela de computador ou em um banco de um bar e
ouvir alguém falar de suas leituras de mundo colocando-se plenamente diante de
mim. A empolgação sentida em tal momento levou-me muitas vezes a criar pequenos
sentimentos de paixão, os quais tiveram, em alguns momentos, desfechos bem
interessantes.
Entendo bem o que
sente Maria da Piedade por Adrião: esse êxtase diante uma pessoa leitora é uma
das coisas mais belas a serem sentidas por mim e por outros indivíduos como eu
que por aí andam. Mas há um pequeno porém que aqui devo expor: um sujeito
leitor não se faz por quantidade de livros lidos. Desde jovem, aprendi a gostar
das pessoas que falam do que leem sempre fazendo relações com fatos ligados a
sua vida. De repente, estou ali ouvindo alguém falar de uma situação de sua
vida e ouço essa pessoa soltar uma frase colocando sua existência sob o prisma
de uma obra literária lida recentemente. Uma cena da ficção ilustra um
pensamento ou uma cena da vida real. Gosto de pessoas que falam de obras lidas
com a humildade de um leitor o qual se coloca dentro do que leu, passando ao
seu ouvinte as suas impressões de leitura a partir de seu local no espaço.
Nunca gostei do crítico empertigado que coloca-se distante de seu objeto de
estudo, agindo como se por ele não fosse afetado e em um tom falsamente
didático o qual serve mais para obscurecer as coisas do que para aclará-las.
Esse leitor
apaixonado o qual fala da obra e da realidade como duas linguagens as quais a
todo instante se tocam, se enfrentam, é o leitor apaixonado. Aprendi a
valorizar tal tipo de sujeito leitor a partir das leituras das obras de Simone
de Beauvoir. Tanto seus romances quanto tuas memórias são textos que se
preocupam com certo realismo de impressões das coisas. Simone procura relatar
vivamente tudo o que viveu e o modo como as situações e objetos afetam o seu
espírito. Esse concretismo é algo que me encanta nas pessoas, sempre que elas
conseguem não cair no velho egotismo de falarem de si apenas e de nada mais.
Gosto de pessoas que exploram esse sensacionismo da vida e da literatura,
mostrando a existência como uma temporalidade livre de fronteiras e cheia de
projetos. Tais pessoas são capazes de me levar a ficar em uma conversa o dia
todo se possível for.
Ainda falando em
Simone, há uma frase sua que quando li me soou bastante paradoxal. Talvez por
ainda estar bastante influenciado por uma leitura machista de mundo, não
compreendi bem o sentido de seu dizer quando, em uma carta dirigida a Nelson
Algren, ela afirma só conseguir dormir com pessoas pelas quais ela tem um
sentimento de afeição. Achei isso paradoxal, pois Simone já deitara com um
número considerável de pessoas e mesmo então estava envolvida, ao mesmo tempo
com Algren e Sartre. Na verdade, entendi erradamente sua assertiva por ainda
estar marcado pelo signo da bipolaridade amorosa ocidental, acreditando que
amamos apenas uma pessoa e que com as outras com quem ficamos apenas queremos o
sexo por si só. Hoje entendo perfeitamente o que Simone quis dizer e vejo a
afeição como algo puramente plural, o qual se as pessoas usassem melhor para
seu prazer teriam bastante felicidade ao terem momentos de diversão com gente
querida e amiga.
Em minha vida, tal
sentença começa a ganhar sentido. Aos vinte e seis anos, começo a sair daquela
fase em que o ser humano brinca de aventureiro de corpos alheios para começar a
pensar mais a sério sobre o modo como se utiliza de seu tempo e com quem ele se
envolve em seus momentos de liberdade. Lembro, ao falar disso, de uma frase de
Kundera, outro grande escritor existencialista, tirada de A insustentável leveza do ser: a maior prova de amor não é o ato de
amor, sexual, em si, mas o sono compartilhado. Uma amiga minha interpretou essa
frase como o momento de entrega que é o sono diante de uma pessoa com a qual
deitamos. Apesar de concordar com ela, eu sempre tendo a ver essa frase como
ligada à convivência com outrem. Quando fazemos amor de forma isolada, temos um
contato fugaz com o outro, algo que não durará. No momento em que dormimos ali,
damos a entender que já há e poderá seguir havendo um contato mais aprofundado:
duas idiossincrasias começam a se imiscuir uma na outra. Tal convivência
envolve algo muito essencial de nossa existência: a linguagem. Ouvimos o que o
outro tem a dizer e dizemos a ele o que somos.
É aqui que o
sujeito leitor apaixonado citado por mim acima ganha mais força. Tal sujeito
repleto de olhar aberto e desejo de manter tal olhar focado na realidade plena
ao seu redor, em um momento de intimidade, revela-se como uma profunda fonte de
prazer intelectual, o qual se torna um potencializador de todos os outros tipos
de prazer: o cafuné carinhoso, a carícia voluptuosa e o ato sexual pleno de
sentido em si mesmo. Muitas vezes em minha vida, ouvir uma pessoa no entre ato
sexual falar somente de si mesmo ou das verdades prontas e acabadas de sua vida
foi algo extremamente desestimulante para o meu prazer.
*
Falo por mim
mesmo, claro, neste texto. Digo que quero um amor literário. Ainda me envolvo
com algumas pessoas por motivos puramente pragmáticos: a obtenção de prazer.
Cheguei, porém, a dispensar tais momentos de prazer para ficar em uma praça
conversando com alguma pessoa amiga acerca de livros, filmes, séries,
existencialidades. Digo de forma um tanto quanto jocosa que eu casaria com
diversas de minhas amigas, pois com elas eu sinto essa união intelectual a
qual, eu confesso, sonho em ter com uma mulher. Contudo, não espero que meus
possíveis leitores pensem de mim como sendo um ser à procura de tal sentimento.
Ou à espera.
Hoje eu me
encontro em um processo de aceitação do estar só, algo bastante comum em nosso
mundo de procura incessante por um sentido pleno existencial , geralmente
vendido como algo a ser encontrado única e exclusivamente dentro das relações
amorosas. O que quero dizer é que se eu tiver de me envolver com alguém
novamente no futuro será baseado nesse modelo de amor literário que de certa
forma expus aqui. O meu espírito sonhador passou a desejar isso no momento em
que li, já no final das Memórias de uma
moça bem-comportada, Simone falando de seu encontro com Sartre. Diria até
que todo ser humano romântico e amante de literatura sonha com aquilo: um
encontro fortuito com uma pessoa extremamente leitora, capaz de alimentar todo
tipo de diálogo sobre toda e qualquer situação. Como disse acima, nem todo
sujeito leitor é assim. Disse isso também em outro texto meu, quando falei da
existência de dois tipos de leitores: o leitor por status e o leitor por
paixão. Se for para me envolver com alguém, espero me envolver com uma pessoa
leitora por paixão.
Os meus dias
atuais têm se resumido a trabalho, leituras, estudos para escrever um projeto
de mestrado e, com o fim da greve da minha universidade, com as disciplinas de
minha segunda graduação. Sinto prazer com tal rotina, apesar do cansaço que em
certos momentos toma conta de mim. O fato de ler demais gera uma série de
ideias dentro de mim que gosto de compartilhar com os outros. Imagino que se
for um dia para ter uma relação amorosa, a qual exige maior grau de atenção e
envolvimento, o ideal é que eu me envolva com alguém que, assim como eu, goste
de viajar nas ideias e de usar a leitura para entender a complexidade do mundo
em que vivemos.
Se me for
permitido um momento de devaneio, fico a imaginar como é namorar alguém que se
interesse pelo que estamos lendo, que empreste o livro em questão, que o
discuta no momento oportuno, que empreste outro cuja temática seja similar e
assim, em meio a beijos, carícias, voluptuosidade, haja diversos diálogos
infindáveis sobre leitura, cinema, arte, política, etc. Isso me parece algo tão
excitante. O curioso é que há pessoas que pensam o contrário de mim. Uma amiga
me disse certa vez que não namoraria um intelectual pelo fato de que eles, os
seres pensantes, vivem de menos e pensam demais. Ainda há, ao que me parece,
uma imagem do intelectual como ser erudito, distante das massas, incapaz de
viver plenamente uma existência e rodeado de seus livros geradores de
pedantismo. Algo curioso, pois as pessoas mais cheias de vida as quais conheci
dentro de nosso contexto urbano ocidental eram as sedentas por leitura e
entendimento.
Talvez a crônica
de hoje tenha um ar meio que adolescente demais, mas espero que o leitor me
entenda. Dando aula e vendo as notícias de nosso atual momento político, de
reacionarismo intenso, percebo que a falta de leitura diminui a dimensão
poética das pessoas, sua bondade. Pessoas não leitoras se mostram cada vez mais
brutalizadas, defensoras de ideias assassinas e de um mundo pobre onde dinheiro
e status é o que importa, onde falta empatia e sobre egoísmo. Diria, portanto,
que me equivoquei ao dizer que nunca sonhei com o amor, como tantas vezes já
disse de forma cheia de empáfia. Mas sonho sim em ter um amor literário, ou
filosófico, desse tipo que me leva a querer compartilhar em momentos de carinho
e intimidade as descobertas feitas por mim para com o ser amado. Não me engajo
em uma procura disso, por acreditar que os encontros casuais da vida não devem
ser forçados ou buscados, pois isso se configura perda de tempo. Creio,
contudo, que o amor só é mais uma das coisas salvadoras do mundo a partir do
momento em que ele deixa de ser submissão a valores pré acabados quando estamos
diante de uma consciência disposta a amar nossa liberdade.
Algo bem difícil
em um mundo como o nosso, onde as pessoas pobres de espírito estão a todo
instante preocupadas em ter a paz de um sentido definido para suas existências.
Todavia, creio não ser impossível. Também não creio que seja o amor um idílio
das coisas ruins que ocorrem no mundo. Vejo-o apenas como contato de duas
consciências que de repente se sentem sintonizadas. Pronto. Acabou. É essa
singeleza, essa falta de promessa, essa beleza gratuita em si mesmo, esse
esforço e essa torcida em estar junto que torna o sentimento belo. E se um ser
apaixonado por livros já é alguém ardente demais em seu amor por esses pequenos
compilados de papel com uma estranha magia, imagina essa pessoa em um momento
de paixão sincera por outro ser humano: deve ser a coisa mais linda de se ver
no mundo.
Comentários