Uma visita à sólida catedral poética de Carlos Drummond de Andrade
Carlos Drummond de Andrade |
Carlos
Drummond de Andrade parece que teve desde cedo uma consciência muito bem
elaborada sobre o exercício da escrita ou mesmo certa segurança sobre o êxito
de seu trabalho. Pode ser que isso tenha sido, primeiro, produto de uma
intuição alcançada não sem o custo de conhecer muito bem a literatura
brasileira e por quais lugares alguém interessado em construir um projeto
literário poderia tatear para se estabilizar; segundo, uma extensa preocupação
e, sobretudo, zelo com o ofício da palavra, capaz então, de lhe determinar uma
consciência lúcida sobre sua obra. Entre as duas observações, de serventia a
qualquer interessado na escrita, está a capacidade de acreditar no trabalho e
persistir, sem apelos, pela feitura do reconhecimento. Alguém já terá definido
que escrever é uma missão e a recompensa vem do empenho por aquilo que faz;
claro, não sem uma pitada de sorte pelo caminho.
A impressão
que fica de Carlos de Drummond de Andrade é ainda a do escritor que desenvolveu
ao lado de sua rotina como funcionário público uma rotina de igual maneira para
a leitura e a escrita; essa seriedade pela palavra guarda uma certa imagem com
a de poetas como T. S. Eliot, quem também deixa transparecer pelo semblante, tal
como se mostra nas fotografias, essa postura. Sim, todas as características
demonstradas anteriormente se materializam na imagem do poeta e na sua obra,
reafirmando que qualquer escritor não é apenas a figura que se dedica à
escrita, mas aquele que tem uma posição diversa de ser e estar no mundo;
posição essa que não deve se confundir (apesar de sempre terem essa imagem) com
o sujeito de dons especiais ou entidade a quem a comunidade lhe merece um zelo
mais estimado que com outras criaturas, quase uma figura mística – semblante
muito visível em poetas como Thiago de Mello, por exemplo.
É evidente
que todo poeta (e escritor) tem ao redor de si certa capa protetora, uma
película, uma persona criada para dar sentido ao mundo trabalhado pela escrita;
ou mundo imaginado, este que não é só
imaginação, é entrelugar entre a realidade e o imaginário. Entretanto, os
poetas que se disfarçam de gente comum, como Drummond, estão muito à ordem do novo ser-poeta porque distorce o lugar
do místico ou o do desajustado socialmente; esses que disfarçam é que são os
melhores porque a poesia nua dessa aura santa ou maldita. É poesia em estado
puro. E não é que ela tenha se tornado despida daquela coisa do sagrado que
está em sua origem, mas poesia em estado puro é a “poesia terrena”, a que diz
melhor aquilo que somos.
Há várias
ocasiões na vida do nosso poeta que atestam para essa condição e convicção
sobre a escrita. A primeira delas é de quando ainda estava em Minas Gerais, no
curso de Farmácia em Ouro Preto, mas já atento à cena modernista que se
desenvolvia em São Paulo; é nessa época que Carlos Drummond de Andrade cria, com
a ajuda de dois amigos A revista, um
periódico de vida breve (como foram quase todos os dessa época).
Passaram por
essa revista quase todos os nomes da cena modernista do sudeste do Brasil;
nomes, entre outros, como o de Mário de Andrade, Pedro Nava, Abgar Renault, Manuel
Bandeira. Mas o curioso é que nem sempre o poeta conseguiu fechar o conteúdo
para os poucos números que produziu (foram apenas três); então, foi prática
comum inventar pseudônimos que dessem textos para completar as edições.
Que
explicação existe para atitudes dessa natureza, se não a de uma crença
inabalável naquilo que fazia ou ainda a persistência em levar adiante uma fuga
contra a condição cultural literária escassa no interior no Brasil? É evidente que,
por trás da proposta, havia certo interesse particular de estabelecer laços com
os grupos da cena paulista, desde então, a mais conhecida dentro e fora do país,
mas atitudes dessa natureza nunca têm, por mais que se nutra de um desejo
particular, apenas um impacto na formação da carreira do interessado; ela
responsável por rearticular o território da literatura.
Fac-símile de uma das versões de "No meio do caminho"; esta publicada no n. 3 da Revista de antropofagia, julho de 1928. Arquivo: Brasiliana. |
Em 1930,
poucos anos depois, portanto (que A
revista circulou no biênio 1925-1926), nosso poeta publica seu primeiro
livro. Alguma poesia só existiu nessa
época porque teve a primeira edição de 500 exemplares custeada pelo próprio
autor. E se fosse um livro medíocre não teria alcançado o reconhecimento
imediato que alcançou, mesmo sendo Carlos Drummond de Andrade um conhecido
entre alguns dos nomes mais importantes da literatura da época com colaborações
em veículos como a Revista de
Antropofagia, onde primeiro publicou o famoso poema “No meio do caminho”.
Em Alguma poesia o poeta do interior de
Minas aparece mais inteirado com o que era defendido à sombra do espírito
modernista do que a obra dos próprios impulsionadores do movimento. Vale citar
como justificativa sobre essa recepção, uma das primeiras críticas à obra,
redigida por Prudente Morais em que revela Carlos Drummond de Andrade como “a
primeira voz diferente surgida do Modernismo”: “leva mais longe do que qualquer
outro algumas das tendências deste, desenvolvendo gestos por outros apenas esboçados”.
E completa: “ninguém ainda entre nós tinha conseguido exprimir com tanta força
de desolação o sentido absoluto da vida e a vaidade das nossas habituais
preocupações”. E basta ao leitor saber que alguns dos poemas que, mesmo ele não
sendo versado sobre a poesia do mineiro, logo poderá encontrar aí: “Poema de
sete faces”, o já citado “No meio do caminho”, Cidadezinha qualquer” e
“Quadrilha”. Isso já responde por muito do que ficou pontuado aqui.
É sabido
ainda que muitos textos que formaram parte na composição das orelhas das
primeiras edições foram do próprio Carlos Drummond de Andrade. A atitude
reafirma a questão-tema deste texto e propõe mais uma: alcançada a proporção
literária que alcançou e conhecedor, então, dos espaços pelos quais poderia
fazer trilhar sua obra, o poeta tinha consigo uma visão muito nítida sobre a
exposição de seu trabalho no mercado editorial. Nunca foi editor, mas, como bom
profissional da escrita, que deve conhecer os elementos enformantes de sua carreira, Drummond teve bom faro para
certas necessidades como a de chegar da forma pretendida pelo escritor aos
leitores. Por falar em escrita dos textos para orelha, não podemos esquecer que
desenhou muitas das capas de seus livros.
Depois, e agora
chegamos no centro da questão, parece que sempre houve em Drummond a
preocupação na organização de sua obra; isso atesta não apenas esse zelo com o
ofício da escrita, mas terá se convertido numa maneira do poeta observar a
construção de sua catedral poética. Nesse interstício, organizar sua obra foi
também uma maneira de reunir a grande quantidade de poemas dispersos; Júlio
Castañon Guimarães, quem compôs uma edição crítica sobre a obra do poeta
mineiro, cita a dispersão como um fenômeno inerente ao trabalho de publicação
dos poemas em lugares diversos, desde o jornal (onde mais publicou desde antes
do primeiro livro) às inúmeras correspondências que enviou aos amigos.
Mesmo assim,
parece haver em Drummond um exercício de composição que, do ponto de vista da
distribuição de temas e formas, não se verifica, a menos em primeiro plano, uma
dispersão que corresponda a dispersão das publicações. Ainda que o poeta tenha
inserido constantes alterações entre o poema editado num suporte para o poema
reunido na obra, nenhuma das revisões é do nível de sentido e mesmo assim o
leitor encontra elo entre um e outro poema de uma obra. Não estamos diante de
livros que reúnam um mero conjunto disperso de poemas, como se uma espécie de
antologia, caso comum em alguns poetas. Estamos diante de uma obra que é
exercício de unificação temática. Mesmo A
rosa do povo, considerado seu livro mais heterogêneo, os poemas aí
agrupados estão irmanados pelo contexto diverso do tempo de sua escrita.
Isto é, há
uma unidade temática ou estruturante em grande parte de suas obras que sempre
atendem por títulos muito singulares e verdadeiras fórmulas de provocação ao leitor: além de Alguma poesia, termo que parece atestar um tímido ou simples poeta
à estreia com um currículo de alguns
poemas com dedicatória a Mário de Andrade para se apresentar entre os
já-consagrados, pensemos em Sentimento do
mundo, Claro enigma, Fazendeiro do ar, A falta que ama, As impurezas
do branco.
Mas, esse
contínuo trabalho de organização da obra não se restringiu na disposição da
palavra na composição do poema, na finalização definitiva do texto poético, nem
depois na disposição dos poemas no livro. Sobre o segundo instante, é preciso
lembrar novamente a constatação de Castañon Guimarães: Carlos Drummond de
Andrade deixou poucos manuscritos. Possivelmente a composição escrita, depois
datilografada, enviada ao jornal era o estágio de fabricação do poema e a publicação em livro o seu estágio quase-final
da obra e não havia, nesse intercurso, deixar sobrevida aos restos que lhe
serviram no processo de composição.
No projeto de reedição da obra de Carlos Drummond de Andrade, iniciado em 2012, esta é a edição de Antologia poética preparada pelo poeta em 1962. |
Drummond
também trabalhou na ordenação do conjunto de sua obra – indicando seus poemas
preferidos? Sim; com a edição de uma Antologia
poética. A impressão que nos fica ainda é que toda vez que reorganiza sua
obra o poeta escava outras possibilidades de versar sobre os temas de sua
predileção. Isso escapa na própria nota introdutória redigida para a edição
publicada em 1962: “Ao organizar este volume, o autor não teve em mira,
propriamente, selecionar poemas pela qualidade, nem pelas fases que acaso se
observem em sua carreira poética. Cuidou antes de localizar, na obra publicada,
certas características, preocupações e tendências que o condicionam ou definem,
em conjunto”. E ao olhar depois do critério de organização a própria a Antologia vemos que não é apenas uma
reunião de poemas, mas é já outro livro com existência própria no conjunto de
sua bibliografia.
Notável,
nesse zelo com a obra, como quem rega, poda, planta, limpa um jardim, e como
quem busca novos ares para oxigenar e renovar o poema porvir é a consciência de
seu projeto literário; é o próprio poeta quem concorda que sua literatura é possível
de ser determinada quanto a um conjunto de fases. Não meramente distintas, obviamente,
mas com traços muito particulares, certamente.
Edição de Nova Reunião de Poesia. A antologia foi preparada pelo próprio Drummond e depois teve acréscimos feitos pelos netos do poeta. |
Nessa
composição de organização, haveria a preocupação do poeta em dizer para o
leitor uma sequência que lhe parecia coerente a leitura de sua obra? Possivelmente.
Quando não, talvez lhe fizesse bem ver a força que a poesia de uma vida inteira
tem quando reunida. Tanto que, anos depois de preparar sua antologia, em 1969,
Drummond publicou Reunião. Num único
volume, compilava dez livros desde Alguma
poesia; em 1983, voltou ao título e acrescentou outros nove livros e mudou
o título da antologia para Nova reunião de poesia;
o poeta morreu quatro depois e os netos Luis Mauricio e Pedro Drummond voltaram
ao trabalho do avô e acrescentaram poemas de outros livros editados depois da
última alteração feita pelo poeta, mais poemas dos livros póstumos.
Sem querer,
o poeta inaugurou uma obra quase-aberta, manipulável até o limite de
organização de toda sua poética num só lugar (o que não é impossível). Não é o
que ocorre agora, porque a reedição de Nova
reunião, em 2015 (no curso de um amplo projeto de nova edição da obra de
Drummond, desde 2012, pela Companhia das Letras), tratou de manter aquilo que
deixaram os netos na edição de 1983: vinte e três livros e outros poemas. Uma
espécie de mosaico ou grande painel do extenso trabalho de um poeta que se não
chegou a concluir sua obra, afinal parece que nenhuma pode ser assim fechada à
cadeado, conseguiu erguer sólidas paredes daquilo que projetou erguer.
A seguir, preparamos um catálogo com alguns poemas recolhidos de Nova reunião de poesia. Para leitura, divulgação da obra de Carlos Drummond de Andrade e partilha entre amigos.
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