Quem tem medo de Agatha Christie?

Agatha Christie em sua casa em Devon, 1974. Foto: Lord Snowdown

Em 1961, a Organização das Nações Unidas para a Educação (UNESCO) reconheceu que Agatha Christie era a autora da obra mais lida do século XX. Tantos anos depois, a julgar pelo ritmo, ela ainda tem chances de repetir o feito, visto que, as recordes não param de ser superados. 

Deixou uma bibliografia que vale por uma biblioteca inteira, são 81 romances de cunho policial, e há ainda os livros de contos, as peças para o teatro, os romances não-policiais e os livros de memórias. Essa extensa obra tem alimentado uma geração diversa de leitores – dos iniciantes aos que mesmo estando noutro estrato de leitura nunca perderam a chance de fazer uma visita (depois de passar por sua obra) e respeitá-la – e também de detratores que demonstram a artificialidade dos seus enigmas, a mecânica fajuta de suas narrativas ou o conservadorismo ideológico que tem a atmosfera de suas narrativas e suas personagens.  

Se tudo nessa vida pode ser questionável, há algo que ninguém poderá acusar a Rainha do Crime, a querer por fina força forjar um abrigo no cânone literário, como tem se dedicado alguns escritores fenômenos da contemporaneidade. Agatha sempre tinha a consciência de que produzia uma obra para a grande massa, vivia disso e nunca se mostrou inferiorizada pela posição que ocupou. Estaria assumindo a mediocridade de que tantas vezes foi acusada? Não. A escritora sabia o que fazia, onde pisava e esteve sempre muito bem resolvida com isso.

“Se você quiser escrever um livro, terá que estudar o tamanho normal dos livros e escrever seu livro dentro desses limites. Se quiser escrever certo tipo de conto para certo tipo de revista, terá que escrevê-lo do tamanho requerido e no gênero das histórias publicadas por essa revista. Se quiser escrever apenas para si próprio, então o caso é diferente – você poderá escrever o que bem desejar, do tamanho que bem quiser, mas, provavelmente, terá também que se contentar só com o prazer de tê-lo escrito. Não adianta começar a escrever pensando que se é um gênio – existem, é certo, escritores geniais, mas são poucos. Não nós somos vendedores, comerciantes – comerciantes de um bom e honesto comércio. Precisamos aprender primeiro as artes e a técnica, e depois, dentro desse ramo, poderemos aplicar nossa imaginação criadora, mas sempre submetidos à disciplina da forma necessária”, escreveu em sua Autobiografia.

O nome foi adquirido depois de haver se casado com o piloto Archibald Christie; nascida em 15 de setembro de 1890 em Torquay, ao sul da Inglaterra, numa família tipicamente vitoriana, conta-se que desde pequena já se mostrava uma menina imaginativa. Foi educada apenas pela mãe, uma viúva sem grandes preocupações na vida. Fez parte de seus estudos em Paris, numa escola para meninas. E, a imaginação servia para o desejo de ser musicista, porque gostava do som de piano; na música também queria ser soprano, mas não tinha voz para tanto e era muito tímida ante o público. Todas as características assim enumeradas demonstram a formação de um espírito de escritora.

Agatha Christie nos anos 1920, quando publica seu primeiro livro.

Quando voltou para a Inglaterra escreveu um livro de poemas que chegou a publicar mais tarde e algumas novelas que, nas suas palavras, eram narrativas longas e confusas, que os editores logo reprovaram. Depois das decepções com a escrita, Agatha já então casada com um militar envolvido com a guerra, resolve alistar-se como enfermeira. A leitura que faz nas horas vagas de novelas de detetive de nomes como Arthur Conan Doyle, o criador de Sherlock Holmes, impressionada com O mistério do quarto amarelo, de Gaston Leroux e a curta aprendizagem sobre venenos mortais levam-na a escrever, em dezoito meses, uma novela protagonizada por um detetive inteligente e extravagante acompanhado por um amigo lerdo e idiota. O romance O misterioso caso de Styles, definido com um de seus melhores títulos por um desfecho controverso e interessante é o primeiro em que aparece um detetive belga e aposentado, Hercule Poirot, seu particular Doutor Watson, o néscio capitão Hastings.

Logo na primeira tiragem, foram vendidos 2 mil exemplares; o contrato assinado por Agatha a obrigava escrever mais cinco romances com o mesmo estilo. A escritora considerou a cláusula e escreveu O inimigo secreto (1922), Assassinato no campo de golfe (1923), O homem do terno marrom e Poirot investiga (1924), e O segredo de Chimneys (1925). Em 1926, já fora do contrato, Agatha Christie publica O assassinato de Roger Ackroyd e o livro mantém a boa recepção do público. A série de romances modela sua visão particular sobre o esquema tradicional do relato policial inglês. Uma e outra vez, um grupo de representantes dos mais seletos grupos da sociedade vitoriana estão reunidos num lugar onde deles morre assassinado, enquanto um barroco e irracional detetive descobre que todos têm algum motivo para tê-lo matado, até chegar à conclusão de que o assassino é aquele que aparentemente tinha o melhor álibi.

Agatha Christie e sua única filha, Rosalind.

Todos os livros foram muito bem recebidos pelo público. Mas, ainda assim, Agatha não via sucesso nisso como uma profissão e tampouco estava decidida que faria isto por toda a vida; cumprida a cláusula, veio o nascimento da filha Rosalind e, logo depois, a revelação do companheiro de que tinha uma amante. Uma viagem misteriosa, sem destino certo e seu retorno para os trâmites do divórcio, foram motores para que Agatha se dedicasse exclusivamente à escrita; estava movida por duas pulsões, superar a traição e precisava não perder a vida que levava até a separação.

“Fui criando o hábito de escrever contos. Foi-se tornando meu passatempo, em vez de, digamos, bordar almofadas ou fazer desenhos copiados das flores da porcelana de Dresden. se alguém pensar que estou situando a profissão de ficcionista em nível demasiado baixo, não concordarei. O ímpeto criador pode sentir-se realizado de qualquer forma: bordando, cozinhando, pintando, fazendo desenhos ou esculturas, compondo músicas, assim como escrevendo romances ou contos. A única diferença é que algumas dessas ocupações dão mais status do que outras”.

No início da carreira a escritora não perdeu o hábito para as viagens. Eram elas em parte motivadores de experiências imaginárias responsáveis pela modelagem de muitas de suas histórias e foi numa delas ao Oriente, que conheceu o arqueólogo E. L. Mallowan, uma nova paixão que, não durou muito, tornou-se seu segundo companheiro. É nessa nova fase que ela escreve alguns de seus melhores romances: Assassinato no Expresso do Oriente (1934), Morte no Nilo (1937), O caso dos dez negrinhos (1939), A mansão Hollow (1946) ou Um gato entre pombos (1959).

“Agora, ia ganhando confiança no que escrevia e achava que não teria dificuldade em produzir um livro por ano e, possivelmente também, alguns contos. A parte mais agradável estava diretamente relacionada com o dinheiro. Se me decidisse a escrever uma história, sabia que me daria umas sessenta libras de ganho, pouco mais ou menos. Deduzindo o imposto de renda – nesse tempo vinte ou vinte e cinco por cento – sabia, portanto, que receberia quarenta e cinco libras. Isso estimulava enormemente minha produção. Dizia comigo mesma: “Gostaria de mandar derrubar a estufa e construir uma loggia onde pudesse me instalar. Quanto custará?” quanto obtinha o orçamento das despesas, sentava-me diante de minha máquina de escrever, cogitava, planejava e, ao cabo de uma semana, havia nascido uma história em minha mente. Na devida altura eu escrevia e mandava fazer minha loggia”.

Quando Poirot parecia cansado, recriou a figura do detetive através de Miss Marple.

É precisamente no início da década de 1930 quando em Assassinato na casa do pastor aparece pela primeira vez com uma senhora encantadora que, entre os trabalhos de tricô e chás da tarde, resolve os crimes complexos. O que em Poirot é petulância (suas constantes referências a seus dotes de observação) e absurdo (o inglês salpicado de expressões francesas que fala mesmo depois de tantos vivendo na Inglaterra), em Miss Marple é o cotidiano (uma magnifica descrição da vida no campo inglês) e sentido comum (umas agudas observações sobre o caráter dos britânicos). Mas, apesar dos pesares, Poirot ganhou o jogo: protagonizou trinta e três romances contra doze da encantadora solteirona.

Em meados dos anos de 1930, a fórmula magistral de Agatha Christie (pistas, mais detetive inteligente, mais amigo idiota) se esgota e a autora muda lentamente a personagem de Hercule Poirot; a mais alta variação é sumiço com o capitão Hastings. Mas, não fica aí; a mudança é tão séria e radical que na adaptação teatral de seus romances (como por exemplo em Os três ratos cegos), o próprio Poirot desaparece da história.

Depois vem o declínio dessa atmosfera favorável ao caso policialesco. Nos Estados Unidos surge o chamado romance negro (W. R. Burnett, Dashiell Hammett e Raymond Chandler) que muda a maneira de agir de seus heróis; o gosto público já é outro. Além disso, a Segunda Guerra Mundial tolda a moral da sociedade e o declínio do império britânico é também o declínio do mundo de Poirot e de Miss Marple.

Agatha Christie continuo escrevendo romance policiais até à velhice. Cinquenta e seis anos dedicados ao ofício. Cada vez mais cansada, sem tanta convicção, apesar da extensa fidelidade de seu público e dos benefícios econômicos que ganhava com sua literatura (ela e os seus editores).  É nesse período que ela muda de nome e de estilo. Deixa de ser Agatha para ser Mary Westmacott. Com esse pseudônimo ainda escreveu meia dezena de romances sentimentais de duvidoso êxito e acolhida irregular; logo depois da descoberta de quem estava por trás do nome, o mesmo público, aquele mais fiel dos romances policiais, aprovaram as mudanças. Mas, da crítica, Agatha só arranca repulsa.

Mesmo saturando a fórmula Hercule Poirot, Agatha conseguiu se reinventar.

Vendo-se impossível de se reinventar a essa altura, o que ainda lhe resta é a escrita de suas memórias; dos títulos do gênero que redigiu em mais de uma década e meia, vale citar o de 1965, Autobiografia. O livro só veio a lume muitos anos depois da morte da escritora – foi desejo seu – e é um interessante afresco sobre a vida social da Inglaterra na virada do século. É também um encontro com grande parte dos desejos, das angústias, alguns dos segredos na escrita de suas mais importantes obras e o relato do comezinho, a descrição dos muitos lugares onde viveu, da relação com os empregados, as recordações de viagem, as relações de família e seus dois casamentos, com destaque para as inúmeras viagens e as expedições que fez à Mesopotâmia, Egito e Síria.  


Nada de sofrimentos, de mortes violentas, nem história misteriosa ou escondida, nenhuma descoberta surpreendente, uma vida pacata para o que se espera de uma mente inquieta. A autobiografia de Agatha Christie, assim como seus famosos romances policiais, é a confirmação de uma mentalidade vitoriana, o retrato de uma vida comum do entre-século na Inglaterra.

Ligações a esta post:

Comentários

Unknown disse…
UMA ÓTIMA ESCRITORA. LI ALGUNS DE SEUS LIVROS E GOSTEI DO JEITO COMO ELA FAZIA SUAS TRAMAS POLICIAIS.

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

A poesia de Antonio Cicero

Boletim Letras 360º #610

Boletim Letras 360º #601

Seis poemas de Rabindranath Tagore

16 + 2 romances de formação que devemos ler

Mortes de intelectual