Percorrendo Jorge de Sena
Por Maria Vaz
Jorge de Sena, 1949. Foto: Fernando Lemos |
Jorge de Sena foi poeta, ensaísta, crítico,
ficcionista, dramaturgo e professor universitário. Todavia, neste texto, centrar-nos-emos em
nuances da sua poesia.
O poeta nasceu em Portugal mas, após ter visto o seu sonho de pertencer
à Marinha frustrado, pelo facto de possuir poucas habilidades físicas, decidiu
seguir aquilo que a alma não calava: as letras. Não obstante, não podemos dizer
que isso tenha ocorrido com a linearidade quem tem o ‘destino’ daqueles que não
encontram obstáculos: Jorge de Sena tinha-se licenciado em engenharia, muito
embora fossem as letras a sua grande paixão, o que lhe valaria algum
preconceito posterior na avaliação da sua obra, a engenharia ocupar-lhe-ia
tempo e tornar-se-ia a sua primeira profissão.
Na linha do supra mencionado, não podemos falar dele sem referir as
circunstâncias que o rodearam e condicionaram de alguma forma: nascido em 2 de novembro de 1919 (ano em que nascia a europeia República de Weimar), viu a
parte inicial da sua vida submergida no regime do Estado Novo. Não obstante o
facto de pertencer à alta burguesia – que não tivera problemas de maior com o
regime ditatorial –, encontrava-se tediosamente amargurado com o seu trabalho
de engenheiro, com a aparente falta de fertilidade intelectual no ambiente
literário em que se encontrava inserido e com as censuras e limitações à
liberdade derivadas de políticas opressivas.
Assim, uma vez que casou e que ia
descobrindo os prazeres e as responsabilidades da parentalidade (teve nove
filhos), aproveitava o escasso tempo livre para escrever, trazendo à luz, com
naturalidade, as suas primeiras obras. Tendo
como pano de fundo presente a Guerra Civil espanhola, escreve a sua reconhecida
obra, Sinais de fogo, em que não consegue afastar-se dos ideais de liberdade
e do vislumbre da libertinagem em torno das paixões, buscando o abandono dos
moralismos que impregnavam na hipocrisia da aparência cristã, que o Estado ia
propagando em jeito de controlo social: afinal, enquanto escrevia sobre uma
personagem que se “entregava” a dois homens ao mesmo tempo e falava das orgias,
não deixava de falar abertamente dos tabus da época, como a questão da
homossexualidade.
Destarte, o limite do insustentável levou Jorge de Sena a um longo
exílio da pátria, no Brasil: primeiramente na Bahia e depois em São Paulo, onde
viu o seu mérito reconhecido e onde iniciou a sua carreira de Professor
universitário em Literatura, não tardando a defender o seu doutoramento com o
aplauso da crítica, pela aprovação com classificação máxima.
Não obstante, um dos meus poemas preferidos foi escritos na sua obra Coroa da terra, no período em que ainda se encontrava em Portugal. Não
poderia deixar de o partilhar convosco nem de mencionar que o título se
intitula “Independência”:
“Recuso-me a aceitar o que me derem.
Recuso-me às verdades acabadas;
recuso-me, também, às que tiverem
pousadas no sem-fim as sete espadas.
Recuso-me às espadas que não ferem
e às que ferem por não serem dadas.
Recuso-me aos eus-próprios que vierem
e às almas que já foram conquistadas.
Recuso-me a estar lúcido ou comprado
e a estar sozinho ou estar acompanhado.
Recuso-me a morrer. Recuso a vida.
Recuso-me à inocência e ao pecado
como a ser livre ou ser predestinado.
Recuso tudo, ó Terra dividida!”
Daqui se retiram notas que perpassam e vincam a sua vontade forte, a
sua inquietude com as questões que o transcendem (como a liberdade ou o
destino) e a impaciência com o que limita a mente, como “a inocência” ou “o
pecado”. Daí se denota uma insatisfação crónica com tudo aquilo que limite o
potencial humano, como a apatia existencial ou os dogmas das “verdades
acabadas”.
Jorge de Sena era um homem no verdadeiro sentido poético, na medida em
que os mergulhos de insatisfação nos mares de Neptuno fizeram com que se
avultasse uma ‘insatisfação crónica’, que mais não seria do que fome do
absoluto: um absoluto perfeitamente inatingível na condição imperfeitamente
humana; o mergulho em um desconhecido que não chega e na intensidade que medeia
o mundo de Hades e de Zeus; a busca de um pedaço de sol que ilumine o banal ou
a telepatia ideal de dois seres que se intuem e se buscam num momento de
flagrante combustão, em que o tal absoluto se manifesta em jeito de libertação,
em que o tempo pára e se torna o desvelar do ‘agora’. Sobre este sentimento,
podemos mencionar o poema “Desencontro”, seleccionado da sua obra Post-Scriptum:
“Só quem procura sabe como há dias
de imensa paz deserta; pelas ruas
a luz perpassa dividida em duas:
a luz que pousa nas paredes frias,
outra que oscila desenhando estrias
nos corpos ascendentes como luas
suspensas, vagas, deslizantes, nuas,
alheias, recortadas e sombrias.
E nada coexiste. Nenhum gesto
a um gesto corresponde; olhar nenhum
perfura a placidez, como de incesto,
de procurar em vão; em vão desponta
a solidão sem fim, sem nome algum -
- que mesmo o que se encontra não se encontra.”
Apesar de ter aproveitado a sua estadia pelo Brasil, Jorge de Sena
viu-se numa espécie de temor de analogia político-existencial daquilo que
acontecera em Portugal, durante o Estado Novo, dado que, em 1964, se deu um
Golpe Militar. Nessa medida, agarrou a oportunidade que entretanto surgira de
dar aulas na Universidade de Wisconsin e, mais tarde, tornou-se professor na
Universidade da Califórnia.
O poeta nunca esqueceu Portugal e, quer no Brasil quer nos Estados
Unidos, envidou esforços no sentido da protecção da democracia e na oposição ao
regime de Salazar, do mesmo modo que não conseguiu afastar a realidade
tenebrosa da sua poesia. Na “Ode à mentira”, retirado da obra Pedra filosofal, não deixa de dar voz à sua insatisfação social:
“Crueldades, prisões, perseguições, injustiças,
como sereis cruéis, como sereis injustas?
Quem torturais, quem perseguis,
quem esmagais vilmente em ferros que inventais,
apenas sendo vosso gemeria as dores
que ansiosamente ao vosso medo lembram
e ao vosso coração cardíaco constrangem.
Quem de vós morre, quem de por vós a vida
lhe vai sendo sugada a cada canto
dos gestos e palavras, nas esquinas
das ruas e dos montes e dos mares
da terra que marcais, matriculais, comprais,
vendeis, hipotecais, regais a sangue,
esses e os outros, que, de olhar à escuta
e de sorriso amargurado à beira de saber-vos,
vos contemplam como coisas óbvias,
fatais a vós que não a quem matais,
esses e os outros todos... - como sereis cruéis,
como sereis injustas, como sereis tão falsas?”
E, dentre uma vida rica, plena de aventuras, criatividade, liberdade e
mudanças, não podemos deixar de falar do amor: essa meta existencial das
pequenas coisas, que prende e liberta e que, por isso mesmo, teve um papel
importante no legado de Jorge de Sena. Como tal, deixo-vos as palavras do poeta
acerca da loucura ou da coragem de sentir o amor real, que por concretização
física se eclipsa e nos evade para o reencontro existencial.
Jorge de Sena, 1949. Foto: Fernando Lemos |
O amor ao belo,
afinal, coexiste com o amor inexplicavelmente brotante do instinto reincidente
onde a razão morre. E as trevas podem, aí, enlaçar-se com a luz ou com a morte
do ‘apesar de’, sem falsos puritanismos ou incompreensões cor-de-rosa de uma
realidade delimitada. Afinal, o amor apoteótico da catarse existencial, mais
físico do que mental, não é mais do que morte e renascimento: o encontro entre
Hades e Perséfone, que visita Hecate mas não abdica de regressar ao submundo da
psique que temos ou, ainda, o famosa ligação de Eros e Psique. E tudo o que é
humano é despudoradamente apreensível sem grandes eufemismos, dado que amor e o
sexo são uma espécie de miscigenização em torno do mito da Fénix. De nada me
adianta explicar o que as palavras não dizem, mas, certamente, farão mais
sentido aglomeradas em estilo de ‘Ode’. Como despedida, é a “Ode ao amor” que
vos deixo:
Tão lentamente, como alheio, o excesso de desejo,
atento o olhar a outros movimentos,
de contacto a contacto, em sereno anseio, leve toque,
obscuro sexo á flor da pele sob o entreaberto
de roupas soerguidas, vibração ligeira, sinal puro
e vago ainda, e súbito contrai-se,
mais não é excesso, ondeia em síncopes e golpes
no interior da carne, as pernas se distendem,
dobram-se, o nariz se afila, adeja, as mãos,
dedos esguios escorrendo trémulos
e um sorriso irónico, violentos gestos,
amor...
ah tu, senhor da
sombra e da ilusão sombria,
vida sem gosto, corpo sem rosto, amor sem fruto,
imagem sempre morta ao dealbar da aurora
e do abrir dos olhos, do sentir memória, do pensar na vida,
fuga perpétua, demorado espasmo, distração no auge,
cansaço e caridade pelo desejo alheio,
raiva contida, ódio sem sexo, unhas e dentes,
despedaçar, rasgar, tocar na dor ignota,
hesitação, vertigem, pressa arrependida,
insuportável triturar, deslize amargo,
tremor, ranger, arcos, soluços, palpitar e queda.
Distantemente uma alegria foi,
imensa, já tranquila, apascentando orvalhos,
de contacto a contacto, ansiosamente serenando,
obscuro sexo à flor da pele... amor... amor...
ah tu senhor da sombra e da ilusão sombria...
rei destronado, deus lembrado, homem cumprido.
Distantemente, irónico, esquecido.
Ligações a esta post:
***
Maria Vaz nasceu em Mirandela a 19 de Setembro de 1990, muito embora tenha vivido toda a infância e início da adolescência em Vila Flor. Aos 11 anos, apaixonou-se pela poesia ao encontrar, por mero acaso, um livro de Alberto Caeiro. A par da poesia e da literatura, é uma apaixonada pelas artes em geral, de entre as quais ressalta a música, dado que tocou clarinete entre os 11 e os 21 anos. Publicou o seu primeiro poema em Março de 2015, numa antologia de poetas portugueses contemporâneos e escreve regularmente no seu blog (“The philosophy of little nothings”). É agora colunista do ‘Letras in.verso re.verso”. Além da escrita, é doutoranda em ciências jurídico-criminais, na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, desde finais de 2014.Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, desde finais de 2014.
Comentários
Assinas uma vez mais um trabalho de grande competência e maturidade, e esse é o cariz que mais me sobressai. Gostei bastante.
Beijos.