O poeta maldito: conceitos científicos e filosóficos da pequenez humana
Por Neiva Dutra
Augusto dos Anjos (20 de abril de 1884 – 12 de novembro de
1914) é autor de um único livro: Eu, publicado em 1912. Apesar de ter
sido rejeitado pela elite literária e cultural de sua época, que considerou de
mau gosto recitar sua poesia nos salões literários, seus sonetos foram
apreciados prontamente pelo público e recitados em bares pela lira popular.
Sua poesia, de extraordinária musicalidade, destaca jogos
fonéticos e aliterações, combinados com o uso de palavras inusitadas, mas assim
como foram as imagens fantásticas, o uso de superlativos e hipérboles que
corresponderam ao gosto do público da época, essas características chegaram aos
dias atuais com uma força ímpar, que transcende as predileções do tempo em que
foi publicado.
A obra Eu conta com mais de cinquenta reedições,
expondo uma visão profundamente pessimista e lúgubre da existência humana e seu
caráter hermético, servindo-se de complexos conceitos científicos. Tem sido
objeto de dezenas de teses de mestrado e doutorado, comprovando que além de ter
sido um poeta popular, admirado e conhecido em seu tempo, Augusto dos Anjos
mantém-se vivo nos dias atuais, até mesmo em círculos menos eruditos,
permitindo diferentes leituras e identificações.
A poesia de Augusto dos Anjos possibilita uma pluralidade
de leituras: filosóficas, literárias, históricas, sociológicas e científicas.
Apesar desse caleidoscópio de interpretações, a magia dos versos do poeta
remete às possibilidades que oferecem para a concepção do universo em uma visão
metafísica, na qual se estabelece uma comunicação entre o sujeito lírico e o
cosmos.
Nessa perspectiva, demonstram a fragmentação do eu, a
partir da multiplicidade de discursos científicos e filosóficos empregados.
Esses discursos se articulam através da instância do eu, um laboratório
subjetivo da sensibilidade de Augusto dos Anjos e sua forma de demonstrar que a
natureza é completamente indiferente e implacável diante do sofrimento humano,
provocando o desencanto, a agonia e a angústia.
É possível também entrever uma atitude niilista do poeta,
na qual enfatiza os inefáveis limites da existência e a relatividade do
conhecimento humano.
No poema "Monólogo de uma sombra", o eu lírico é uma
entidade cósmica, a prosopopeia do conjunto dos seres no universo, do micróbio
aos astros. A visão olímpica de sua voz aniquila um segundo eu, humano, que
surge no final do poema: é uma epifania negativa, que culmina no desencanto do
eu humano. A sombra, protagonista do poema, é uma perseguidora implacável, que
desintegra a espiritualidade:
Sou uma Sombra: Venho de outras eras,
Do cosmopolitismo das moneras...
Pólipo de recônditas reentrâncias,
Larva de caos telúrico, procedo
Da escuridão do cósmico segredo,
Da substância de todas as substâncias.
A simbiose das coisas me equilibra.
Em minha ignota mônada, ampla, vibra
A alma dos movimentos rotatórios...
E é de mim que decorrem, simultâneas,
A saúde das forças subterrâneas
E a morbidez dos seres ilusórios!
Pairando acima dos mundanos tetos,
Não conheço o acidente da Senectus
– Esta universitária sanguessuga
Que produz, sem dispêndio algum de vírus,
O amarelecimento dos papiros
E a miséria anatômica da ruga!
[...]
Disse isto a Sombra. E, ouvindo estes vocábulos,
Da luz da lua aos pálidos venábulos,
Na ânsia de um nervosíssimo entusiasmo,
Julgava ouvir monótonas corujas,
Executando, entre caveiras sujas,
A orquestra arripiadora do sarcasmo!
Era a elegia panteísta do Universo,
Na podridão do sangue humano imerso.
Prostituído talvez, em suas bases...
Era a canção da Natureza exausta,
Chorando e rindo na ironia infausta
Da incoerência infernal daquelas frases.
E o turbilhão de tais fonemas acres
Trovejando grandíloquos massacres,
Há-de ferir-me as auditivas portas,
Até que minha efêmera cabeça
Reverta à inquietação da treva espessa
E à palidez das fotosferas mortas!
A angústia do eu lírico permite, alternativamente, a
descrição do universo, refletindo a mística do nada, uma dialética inovadora na
qual a aspiração ao infinito e ao desconhecido se choca com uma transcendência
vazia e retorna, destrutivamente, à realidade.
Na busca do autoconhecimento, portanto, ocorre uma tensão
entre os elementos cósmicos e científicos e o subjetivismo lírico. O discurso
poético, em alguns poemas, se oferece como uma força redentora, como em "Versos íntimos":
Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão – esta pantera –
Foi tua companheira inseparável!
Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.
Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.
Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!
A transcendência se concretiza na dúvida quanto
à existência de um deus diante do silêncio e da incapacidade do ser superior
frente às imagens de corpos em decomposição, de cidades consumidas pela peste,
da disseminação dos vírus, enfim, ao universo sempre sujeito à degradação e à
vida que permanece sempre como um enigma que cresce enquanto esse deus
permanece mudo e inerte.
Essa impotência divina é a sentença do homem, derrotado e
decadente, que desencadeia um niilismo mórbido, revelado em versos como "Psicologia
de um vencido":
Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênese da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.
Profundissimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância...
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.
Já o verme – este operário das ruínas –
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra,
Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há-de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!
A ideia de substância, assim como a de energia como
quantidades constantes, alude à continuidade cósmica entre todas as formas de
vida. Confundem-se, assim, a negatividade por excelência e a impossibilidade de
realização plena do ciclo vital e de expansão da energia e da
individualidade.
Na maioria de seus poemas, o potencial e o irrealizado
esperam sair à luz para realizarem-se tragicamente, em uma existência de
agonia. A força que move esta visão transformista são os micro-organismos, aos
quais dedica um monumento lírico em "O Deus-Verme":
Fator universal do transformismo.
Filho da teleológica matéria,
Na superabundância ou na miséria,
Verme – é o seu nome obscuro de batismo.
Jamais emprega o acérrimo exorcismo
Em sua diária ocupação funérea,
E vive em contubérnio com a bactéria,
Livre das roupas do antropomorfismo.
Almoça a podridão das drupas agras,
Janta hidrópicos, rói vísceras magras
E dos defuntos novos incha a mão...
Ah! Para ele é que a carne podre fica,
E no inventário da matéria rica
Cabe aos seus filhos a maior porção!
Augusto dos Anjos também critica o alcance da linguagem, o
que coincide com um soneto dedicado a Friedrich Nietzsche, no qual questiona o
sentido de qualquer atividade filosófica e da construção de um pensamento
sistemático, pois a decadência do sistema de pensamento ocupa o lugar do caos
cósmico onde se encontram inúmeros de seus poemas.
Em "Vozes de um túmulo", o eu lírico enuncia uma crítica
à vaidade humana: “No ardor do sonho que o fronema exalta / Construí de orgulho
ênea pirâmide alta... / Hoje, porém, que se desmoronou / A pirâmide real do meu
orgulho, / Hoje que arenas sou matéria e entulho/ Tenho consciência de que nada
sou!”
O poema é apresentado por um eu lírico que fala de uma
posição post-mortem, depois de encontrar-se dissolvido em meio à
substância cósmica. A negatividade do lugar e do enunciado remete ao paradoxo
de que o ser humano é incapaz de enunciar o cosmos e a cosmovisão oferece a
oportunidade para construir um marco de enunciação. Neste sentido, reforça a
chave da leitura de seus poemas: a ideia da negatividade absoluta.
Essa negatividade relativiza o alcance da ciência e
assinala uma posição contraditória do ser humano, que conhece a relatividade de
suas certezas, porque são evidências construídas sobre o fundamento instável da
linguagem.
Convivem, portanto, dois níveis de leitura da poesia de
Augusto dos Anjos. Por um lado, a verdade absoluta e inquestionável em seu
contexto de origem, ou seja, a característica formal e estética de uma poesia
que formula a hipótese de que as noções científicas vertem no absurdo, no
paradoxal e no irônico. Por outro lado, existem indícios da verdade construída
a partir da linguagem, relativa e inexprimível. Mesmo que a natureza seja
conhecida apenas como fenômeno, não existindo uma essência ou uma coisa em si,
a instabilidade do real e o desencanto remetem a uma visão do mundo que é mais
do que uma interpretação subjetiva, comunicável pela linguagem, pela
impossibilidade de determinação.
Assim como Nietzsche, no ensaio "Sobre verdade e
mentira em um sentido extra-moral", as paisagens apocalípticas e a expressão do
ceticismo sobre o alcance do conhecimento manifestada em Augusto dos Anjos expressam
a distância entre o humano e o cósmico, a lamentável condição de esterilidade do
intelecto humano na natureza:
"No desvio de algum rincão do universo inundado pelo
fogo de inumeráveis sistemas solares, houve uma vez um planeta no qual os
animais inteligentes inventaram o conhecimento. Este foi o minuto mais soberbo
e mais mentiroso da “história universal”, mas foi apenas um minuto. Depois
de alguns suspiros da natureza, o planeta congelou-se e os animais inteligentes
tiveram de morrer.
Esta é a fábula que se poderia inventar, sem com isso
chegar a iluminar suficientemente o aspecto lamentável, frágil e fugidio, o
aspecto vão e arbitrário dessa exceção que constitui o intelecto humano no seio
da natureza. Eternidades passaram sem que ele existisse; e se ele desaparecesse
novamente, nada se teria passado; pois não há para tal intelecto uma missão que
ultrapasse o quadro de uma vida humana".
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