O meu tipo de romance "Conversa no catedral"
Por Alfredo
Monte
«Eu quisera
que meus livros fossem lidos como eu li os romances de que gosto. Os romances
que me fascinaram, mais do que entrar pela inteligência, através do puro
intelecto, da pura razão, me enfeitiçaram literalmente, quer dizer, se
converteram em histórias que de certa forma destruíram toda capacidade crítica
em mim. E me faziam perguntar: O que vai acontecer? O que vai acontecer? Este é
o tipo de romance que eu gosto de ler e este é o tipo de romance que eu
gostaria de escrever. Então para mim é muito importante que todo elemento
intelectual, que é inevitável que esteja presente em um romance, de alguma
forma esteja dissolvido fundamentalmente em ações, em episódios que deveriam seduzir
o leitor não por suas ideias, mas por sua cor, por seu sentimento, suas
emoções, suas paixões, por sua novidade, por seu caráter insólito, pelo
suspense e o mistério que possa emanar deles. Para mim, a técnica do romance é
fundamentalmente conseguir isso, conseguir diminuir e, se possível, abolir a
distância entre a história e o leitor. Nesse sentido eu creio que sou um
escritor do século XIX. Para mim o romance continua sendo o romance de
aventura, que se lê desse modo especial, tomado pela história».
Essas afirmações podem ser encontradas no
livro de Ricardo A. Setti, Conversas com Vargas Llosa1. Embora
haja uma verdade profunda nelas, creio ser também possível apontar o escritor
peruano (Nobel 2010) como representante do romancista no formato modernista:
enciclopédico, labiríntico e total, num sentido joyceano; e no caso dele muito
especificamente, num sentido faulkneriano.
1
Não foram poucas as vezes em que Llosa se
declarou um admirador de Faulkner, tendo usado com muito proveito suas
técnicas, inclusive a de fazer a história surgir de conversas, de colóquios nos
quais muitas vezes os fatos se refratam em diversas versões, que se opõem e se
complementam. Três autores, aliás, sempre apareceram muito nas entrevistas e
ensaios de Vargas Llosa: duas admirações constantes, Faulkner e Flaubert, e uma
relação de amor e ódio: Sartre (para se purgar do fantasma sartreano, publicou
um livro inteiro e alentado: Contra vento e maré), com quem acabou sendo
injusto, tachando seus romances de muito ruins, o que está longe de ser a
verdade.
Um dos aspectos mais relevantes de CONVERSA
NO CATEDRAL2 tem uma feição tipicamente sartreana: além das
conversas (de Zavalita com Ambrosio, matriz do romance; com o jornalista desiludido,
literato falhado, Carlitos; também tem os diálogos entre Ambrosio e Don Fermín,
entre Ambrosio e Queta), das cenas justapostas, da discreta narrativa em 3ª pessoa, dos discursos indiretos livres, enfim, de toda a pletora de recursos
explorados no romance, um procedimento narrativo relevante (Llosa vai
praticá-lo, embora de forma mais discreta e atenuada, até no mais recente O
paraíso na outra esquina, já no século 21) é o do solilóquio que Zavalita, o
protagonista, mantém consigo mesmo e que espelha sua perplexidade, sua
frustração e sua má consciência (que origina situações em que ele age de “má
fé”, expressão tão sartreana, de descompasso entre sua ação e sua consciência).
Solilóquio + dúvidas = Hamlet.
Entre outras, a leitura de CONVERSA
NO CATEDRAL me fez sonhar (um dos muitos projetos que já acalentei) em
perseguir num estudo o arquétipo de Hamlet na ficção da modernidade, encarnado
especialmente em intelectuais e artistas. O próprio Mathieu de Os caminhos
da liberdade (a trilogia de Sartre formada por A idade da razão,
Sursis & Com a morte na alma, que eu acho sensacional, malgré o
que Llosa possa dizer contra seu antigo mestre); também os heróis e heroínas de Os
mandarins (Simone de Beauvoir); Sem olhos em Gaza (Huxley); O
jogo da amarelinha (Cortazar); O carnê dourado (Doris Lessing); O
lobo da estepe (Hesse), só para ficar em alguns poucos exemplos notáveis.
Mas voltemos ao nosso amigo Zavalita, que
começa a participar nem sabe bem por que das reuniões clandestinas do Partido
Comunista peruano quando se torna amigo de Aída e Jacobo (o caso é que
ambos são apaixonados por Aída e Jacobo utiliza as reuniões clandestinas para
separá-la de Zavalita e se aproximar dela).
Vejamos algumas passagens:
«Tinha sido
nesse segundo ano3, Zavalita, ao ver que não bastava aprender
marxismo, que também fazia falta acreditar? Provavelmente o tinha fodido a
falta de fé, Zavalita. Falta de fé para crer em Deus, menino? Para crer em
qualquer coisa, Ambrosio… O pior era ter dúvidas, Ambrosio, e o maravilhoso
poder fechar os olhos e dizer Deus existe, ou Deus não existe, e acreditar…
Então a vida se organizaria sozinha e a gente já não se sentiria vazio,
Ambrosio»;
«e isso o preocupava tanto, Zavalita? dizia Aída. E Jacobo, se de
todas as maneiras ele tinha que começar acreditando em algo era preferível crer
que Deus não existe a crer que existe. Santiago também o preferia, Aída, ele
queria se convencer que Politzer tinha razão, Jacobo. O que o angustiava era
ter dúvidas, Aída, não poder estar seguro, Jacobo… As dúvidas eram fatais,
dizia Aída, paralisam-no e você não pode fazer nada, e Jacobo: passar a vida
esmiuçando será verdade? torturando-se será mentira? em vez de agir… Para agir,
era preciso acreditar em algo, dizia Aída»;
«Sempre mentindo, a vida toda
fingindo… No colégio, em casa, no bairro, no Círculo, na Facção, em La Crónica.
Toda a vida fazendo coisas em que não acreditava, toda a vida dissimulando… E
toda a vida querendo acreditar em algo. E toda a vida mentira, não acreditando»;
«Tinha se dedicado furiosamente a ler, a trabalhar no Círculo, a acreditar no
marxismo, a emagrecer»;
«Eu já invejava as pessoas que acreditavam cegamente em
alguma coisa, Carlitos»;
«E se você tivesse se inscrito naquele dia, Zavalita,
pensa. A militância o teria arrastado, comprometido cada vez mais, teria
dissipado as dúvidas e em alguns meses ou alguns anos teria se tornado um homem
de fé, um otimista, um obscuro e puro herói a mais? Teria vivido mal, Zavalita,
como Jacobino e Aída, pensa, entrado e saído da cadeia algumas vezes, sendo
admitido e despedido de sórdidos empregos e, em vez de editoriais em La Crónica
contra os cachorros raivosos, escreveria nas páginas mal impressas de Unidad,
quando tivesse dinheiro e não fosse impedido pela polícia, pensa, sobre os avanços
científicos da pátria do socialismo e a vitória no sindicato dos
panificadores de Lurín… ou teria sido mais generoso e entrado para um grupo
insurrecional e sonhado e atuado e fracassado nas guerrilhas e estaria na
prisão, como Héctor, pensa, ou morto e decomposto na selva, como o cholo
Martinez, pensa, e feito viagens semiclandestinas a Congressos da Juventude,
pensa, Moscou, levando saudações fraternais a Encontros de Jornalistas, pensa,
Budapeste, ou recebido treinamento militar, pensa, Havana ou Pequim. Você
teria se formado em Direito, teria caso, teria sido assessor de um sindicato,
deputado, mais desgraçado, a mesma coisa ou mais feliz? Pensa: ai, Zavalita».
2
Creio que se trata da obra-prima de
Vargas Llosa, apesar da quantidade de títulos impressionantes4.
Tenho lido intensamente durante estes últimos trinta anos a ficção de
Vargas Llosa (também admirável ensaísta) e creio que posso afirmar com
segurança: CONVERSA NO CATEDRAL é um romance “total”, um
daqueles livros absolutos, uma visão caleidoscópica e assombrosa da
ditadura do general Odría, que deu o golpe no Peru no finalzinho dos anos 1940
e impôs um regime ditatorial por boa parte da década de 50. E Vargas Llosa o
publicou em 1969, quando tinha apenas 33 anos!
É claro que já tinha dado uma medida da
dimensão do seu talento porque os seus dois primeiros romances, A cidade e
os cachorros (durante anos, conhecido no Brasil, e foi assim que eu o li, como Batismo
de fogo), em 1962, e A casa verde, de 1965, eram
empreendimentos ciclópicos e singulares (A casa verde ainda se
desdobraria em outros, devido ao personagem Lituma). Mesmo assim, há algo de
incomparável no fôlego e no apetite de totalidade que nos dá o seu terceiro
romance. O único caso similar das últimas décadas que eu conheço é Fado
Alexandrino (1983), um dos grandes romances de António Lobo Antunes.
O título vem do reencontro entre Santiago
Zavala, o Zavalita, com o antigo chofer da família, Ambrosio. Santiago vai ao canil
municipal porque homens da carrocinha pegaram seu cão, Batuque (como eles
ganham uma miséria e por número de apreensões, às vezes não se furtam de roubar
animais, ou mesmo de tirá-los à força dos donos, como aconteceu com a mulher de
Santiago). A ironia é que ele, editorialista, vem escrevendo uma série a
respeito da raiva e pedindo medidas das autoridades para conter o número de
cães na capital. No canil, ele testemunha uma espantosa e bárbara execução de
um cachorro (mas consegue resgatar o seu): dois funcionários enfiam-no num saco
e o matam a pauladas. Um deles é Ambrosio. No começo do capítulo, saindo do
serviço, Santiago (que acabou de fazer 30 anos) se pergunta “em que ponto se
fodeu”, “em que ponto o Peru se fodeu”. E verá em Ambrosio um espelho, mais
velho, numa escala social diferente, um outro tipo de derrota, de embotamento,
de sensação de ter sido vencido pela vida. Aquela sensação de logro existencial
que se abate sobre os personagens de Educação Sentimental (do autor
predileto de Vargas Llosa, Flaubert, a respeito do qual ele escreveu o
magistral ensaio A orgia perpétua), no final de suas trajetórias pelas
aventuras da sua geração. A má consciência de Santiago Zavala como homem de
imprensa, como marido, como peruano (depois conheceremos os sonhos de sua
geração) já aparece logo no princípio de CONVERSA NO CATEDRAL.
“Catedral” é o nome do boteco, uma espelunca5,
em que ele e Ambrosio bebem durante horas, numa conversa que permeará as centenas
de páginas do romance. Um nome significativo, uma vez que o começo da revolta
de Santiago contra sua classe social e sua família foi o anti-clericalismo, a
repulsa pelos padres e pelo catolicismo.
3
Como afirmei acima, a conversa entre
Santiago e Ambrosio (em torno da qual ronda um segredo bombástico sobre o pai
de Santiago, que está no cerne da trama do romance), ambivalente e exasperante,
permeia o romance inteiro. Mas, como é seu hábito, e uma das marcas do seu
virtuosismo técnico, Llosa faz com que duas ou várias situações fiquem
sobrepostas em cada passagem da narrativa. Um exemplo: no capítulo VII da
primeira parte (são quatro ao todo), Ambrosio conta a Santiago como conheceu
seu pai, Trifulcio; ao mesmo tempo, vemos Trifulcio no seu longo tempo de
prisão (há uma cena em que ele e seus companheiros, atirando pedras, conseguem
matar uma ave de rapina e toscamente assá-la, havendo uma disputa feroz pelos
pedaços; também vemos como sua força é lendária, tanto que Dom Melquíades,
possivelmente o diretor da prisão, traz um dos pilares do governo Odría,
Emilio Arévalo, cujo filho, Popeye, será muito amigo de Santiago e casará com
sua irmã, para uma demonstração), depois a libertação (ele trabalhará para
Arévalo), em diálogos que se intercalam com as diligências do homem forte do
governo Odría, Cayo Bermúdez para dominar os serviços de inteligência do regime
e esmagar os “subversivos”; vemo-lo primeiro com militares, depois num diálogo
com o homem que o chamou para fazer parte do governo (e o qual ele está
visivelmente solapando e colocando em posição subalterna) e depois com civis
poderosos (entre eles, Arévalo e Don Fermín, o pai de Santiago); também vemos
torturadores em ação (e um dos torturados, ficamos sabendo, é Trinidad, o
companheiro de Amália, a empregada da casa dos Zavala, a quem Santiago e
Popeye, como autênticos playboyzinhos, tentaram seduzir numa noite em que
a família estaria ausente, causando a demissão dela; ela será o grande amor da
vida de Ambrosio; parte da trajetória de Amália, a mais ligada a Trinidad,
tínhamos acompanhado num capítulo anterior, contudo parecia que era mitomania
de Trinidad a perseguição política e sua morte misteriosa parecia indicar mais
que ele era “ruim da cabeça” do que maus-tratos nos chamados “porões da ditadura”);
vemos como é o encontro entre Ambrosio e Trifulcio (em que o pai tenta roubar
dinheiro do filho, ameaçando-o com uma faca), vemos como Ambrosio saiu de sua
cidade natal, e tendo ajudado o jovem Cayo Bermúdez a raptar sua futura esposa
(que se tornou uma virago), ir à capital pedir um emprego ao poderoso
Robespierre do regime Odría, como ele se transforma no chofer de Bermúdez e
como se envolve com os profissionais de repressão e tortura.
Tudo isso sem grandes necessidades de
explicações e de narrativas muito longas e descritivas. Não, tudo através do
intercalamento magistral de diálogos; tudo puxado (no referido capítulo) pelas
reminiscências de Ambrosio com relação à sua mãe…
O
romance como exercício de virtuosismo e como cosmovisão. Como afirmou Simone de
Beauvoir a respeito de suas leituras favoritas, «a recriação de um mundo
que envolve o meu e que lhe pertence, que me desambienta e me ilumina, que se
impõe a mim para sempre com a evidência de uma experiência que eu teria vivido».
Notas:
1
Editado em 2011 pela Panda Books.
2 No
original, Conversación en La Catedral (1969). Temos três traduções
brasileiras: a de Olga Savary (ed. Francisco Alves & Círculo do Livro); a
de Wladir Dupont (ARX) e a de Ari Roitman & Paulina Wacht (Alfaguara).
3
Na universidade San Marcos.
4
Basta lembrar de A guerra do fim do mundo, Lituma nos Andes, Os filhotes,
A casa verde, Tia Júlia e o escrevinhador, A cidade e os cachorros, livros
que ficam pouco atrás de CONVERSA NO CATEDRAL; tem também os
deliciosos (no mais pleno sentido do termo) Pantaléon e as visitadoras,
Elogio da Madrasta. E como esquecer dos surpreendentes e inusitados História de
Mayta e O falador?
5
A edição da Alfaguara é a única a indicar isso, embora a meu ver, a tradução
literal (Conversa NA catedral), adotada pelas anteriores, acentue o teor
irônico e dessacralizante.
Comentários