O cobrador
Por Rafael Kafka
Ali estava ele,
em um clima úmido típico de Belém, infernal, sentado em seu local de trabalho,
com um livro de biologia nas mãos, mal dando atenção a mim quando dei-lhe o
dinheiro de minha passagem de ônibus.
Deu-me uma atenção oblíqua, quase nula, pois estava focado no que estava
a fazer: responder algumas questões de algum assunto que não consegui
identificar, mas tudo bem: biologia é a mesma complexidade para mim sempre, não
importando se o assunto em questão é genética ou qualquer outra coisa. Nada
entendo dessa disciplina, mesmo achando-o seu tema algo muito interessante. O
que me impressionava ali naquele momento era a determinação do rapaz que me
atendeu de forma tão pouco atenciosa em um livro didático, com a postura de
quem se prepara ardentemente para a prova do ENEM que é em algumas semanas.
Sentei-me e tirei
de dentro de minha mochila o livro O ventre
de Carlos Heitor Cony. Tal livro, confesso, é o que menos gostei desse bom
autor até agora. Mas evito ser tão cruel em meu julgamento, pois Cony ali ainda
era um escritor iniciante e depois ele escreveria algo poderoso como Quase memória. Eu encarava o livro da
mesma forma que Cony filho encarou o pacote mandado por Cony pai no quase
romance pensando no atual momento de leituras de minha vida.
Para algum
leitor, isso pode parecer uma besteira do tamanho do mundo, mas para mim é uma
questão muito existencial essa de ler um ou dois livros ao mesmo tempo. Desde
2011 tento manter esse hábito. De um tempo para cá, decidi-me a ler um livro
teórico e um literário, com horários específicos de leitura, para me manter
seguindo em ambas as leituras de forma satisfatória. Mas somos seres estranhos
e quanto mais tarefas nos colocamos como metas, mais cansaço projecional
sentimos, o que significa que muitas vezes devemos nos conhecer bem demais até
o ponto de saber quando nossos limites foram rompidos.
Enquanto eu me
remoía em diversas crises existenciais, entre elas a dúvida de ler ou não em um
ônibus naquele calor infernal de Belém e de me manter lendo mais de uma obra ao
mesmo tempo, enquanto eu precisava estudar para um concurso, preparar-me para a
volta às aulas da faculdade e ainda planejar toda a minha vida de professor de
rede privada, deparei-me novamente com a imagem do cobrador que me atendera de
forma oblíqua. A cada parada que o coletivo fazia por conta do trânsito, ele
olhava marotamente para a porta para verificar se alguém subiria. O horário era
nove horas da manhã e, para sorte dele, a maioria das pessoas que subia no
parco movimento de ida para a periferia de Belém a essa hora utilizava-se do
vale transporte digital, o qual não precisava de ação sua para destravar a
roleta do veículo. Por conta disso, aquele rapaz apenas precisava olhar
rapidamente para frente e logo voltar a responder as questões da apostila,
provavelmente doada, onde ele mantinha os olhos fixos.
Em dado momento,
o ônibus parou em frente a uma biblioteca a céu aberto, bem toscamente feita
pelas autoridades locais, na qual algumas pessoas de bom coração depositavam
livros didáticos para interessados em pegá-los e depois devolvê-los.
Aproveitando uma parada forçada em um sinal de trânsito, o jovem desceu do coletivo
e se dirigiu até as prateleiras e de lá pegou um livro de Filosofia.
– Posso levar
esse aqui? Perguntou humildemente a um dos rapazes que deixava naquele momento
um conjunto de livros.
– Claro que sim.
É para isso que eles estão aqui. Respondeu o outro sorridente.
Imaginei naquele
momento, em um devaneio muito lúcido, como viria a ser uma sociedade em que as
pessoas valorizassem o conhecimento como arma política e de ascensão social, de
tomada de direitos, de tomada de consciência. Uma sociedade em que livros
fossem encontrados assim, ao acaso na rua, para se pegar, se ler e depois
devolver ou passar adiante, em prateleiras bem construídas por autoridades
responsáveis e bem mantidas por cidadãos conscientes de que aqueles montes de
papeis eram sua chave para uma série de sucessos na vida: como seres humanos,
como profissionais etc.
O rapaz voltou
para o seu lugar e ainda procurou terminar as questões de biologia. Porém,
reação a qual imagino seria a mesma minha em seu lugar, ele não conseguia mais
tirar os olhos do livro de Filosofia e depois de cinco minutos de olhadas
furtivas, decidiu-se pegar o mesmo e começar a ler, desde o começo aquele
compêndio didaticamente feito do resumo das principais correntes filosóficas
ocidentais. No resto dos vinte minutos em que fiquei no ônibus, ele não teve de
tirar muito os olhos do livro por conta da subida de passageiros e nos momentos
em que não teve sua atenção interrompida e dada de forma oblíqua, ele estava
absorto na leitura do livro de Filosofia, de um modo muito similar ao meu
quando criança, momento em que, por não ter livros em casa e pais com condições
de comprá-los, eu lia os livros didáticos dados a mim por minhas tias ricas de
então, em especial os textos dos livros de língua portuguesa, que eu lia de cabo
a rabo, mesmo sem me preocupar em fazer as lições. O curioso era que eu já lia
todos aqueles textos e os entendia muito bem, todavia sempre me saía
relativamente ruim nas atividades de interpretação de texto se comparado aos
alunos mais inteligentes da sala.
O cobrador
absorto me fazia pensar na quantidade de pessoas que lia apenas as páginas de
esporte, as páginas de polícia, os vídeos íntimos de alguma garota, as passagens
recortadas da bíblia, os Best-Sellers mais água com açúcar do momento, leituras
mastigadas e nada mais, leituras que podem e devem ser lidas em um momento
inicial de nossa vida leitora, mas às quais nunca devemos nos prender enquanto
sujeitos leitores sob o risco de limitarmos demais nossa vida a um rol muito
restrito de temas tranquilizadores que nos ocultem o absurdo da vida e nos
alienem ainda mais de nossa responsabilidade enquanto ser. Aquele jovem, negro,
pobre e trabalhador me passou uma imagem de motivação tão grande que eu mesmo
não vejo em mim hoje e nunca vi, para falar a verdade, mesmo que algumas
pessoas me achem extremamente determinado. O cobrador, naquele momento, fazia-me pensar em uma frase
de uma amiga minha dita há uns seis anos, quando conversávamos em frente a sua
casa:
– Em todos os
contextos da vida, as pessoas tentam sempre fazer o melhor.
– Não acredito
muito nisso. Eu disso com minha mente meritocrática de então. – Acho que as
pessoas são por demais conformadas e acabam se isentando da responsabilidade de
seus atos.
– Eu sou mais
otimista. Acho que dentro de um determinado contexto, sempre as pessoas
procuram o melhor para si, para os que estão perto delas. O que pode ocorrer é
que sua possibilidade de escolha seja pequena e acabemos ignorando isso
pensando que elas têm a mesma possibilidade que nós nos julgamos ter.
Hoje, em meus
debates políticos, eu vejo muitas pessoas se utilizando de frases como a dita
por mim nesse diálogo com a amiga de então. Pessoas as quais não olham para o
que as rodeia e julgam-se detentoras de um esforço que de nada adiantaria se
elas não tivessem aqui e ali alguma ajuda a mais, alguma política reparadora ou
uma condição econômica melhor. No momento em que proferi a frase acima citada
por mim, eu não entenderia o poder da imagem de um cobrador lendo no ônibus em
um sol de achar, úmido, parecido com o sol de Camus em O estrangeiro (enlouquecedor!). Eu julgaria essa imagem como uma
ode à meritocracia, ao fato de que todos nós na miséria em que estamos devemos
nos esforçar, pois assim chegaremos à glória. Hoje entendo apenas que nós devemos
nos esforçar, pois é de nosso instinto, como disse minha amiga, sempre procurar
o melhor para nós mesmos.
Conforme a viagem
foi chegando ao final, pensei em meus próprios alunos e em muitos outros com os
quais cruzei em minha carreira de professor e em minha estudantil. A palavra a
qual descreve a maioria dessas pessoas é “desmotivação”, é uma descrença na
educação enquanto ferramenta de mudança, é uma visão do saber pragmática
demais, apenas focada no sucesso individual. Faço parte de uma geração sem
sonhos, preocupada apenas em obter seu sucesso pessoal, seus bens de consumo e
despreocupada, em sua generalidade, em dar retorno ao mundo social.
Aquele cobrador,
talvez, se torne uma dessas pessoas. Espero que não. A motivação dele pode ser
canalizada para algo maior. De repente, ele se torne um advogado que lute por
causas humanitárias ou médico que atenda a pacientes carentes sem cobrar nada
ou ainda um professor o qual alfabetiza adultos de forma gratuita. Talvez ele
se torne apenas mais um tecnocrata. Não sei. O que eu sei é que naquele
momento, sob o sol, no calor, enquanto eu me detinha em uma série de tolas
crises existenciais e em uma terrível falta de objetividade, aquele rapaz me
mostrou como o ser humano sempre tenta se superar, sempre tenta romper e mudar
a realidade ao seu redor. Que a revolução está em nossos menores gestos, mesmo
que não nos percebamos disso nunca. Não fomos feitos para o conformismo.
Mesmo que no
futuro tudo aquilo se torne nada, ver aquela cena de uma pessoa se esforçando
em ler em um cenário tão desconfortável, em uma rotina tão massacrante, fez-me
sentir esperançoso. Acabei ignorando o amargor do personagem de Cony e sua
saída equivocada de um ventre equivocado para me entregar a pensamentos
agradáveis.
***
Rafael Kafka é colunista no Letras in.verso e re.verso. Aqui, ele transita entre a crônica (nova coluna do blog) e a resenha crítica. Seu nome é na verdade o pseudônimo de Paulo Rafael Bezerra Cardoso, que escolheu um belo dia se dar um apelido que ganharia uma dimensão significativa em sua vida muito grande, devido à influência do mito literário dono de obras como A Metamorfose. Rafael é escritor desde os 17 anos (atualmente está na casa dos 24) e sempre escreveu poemas e contos, começando a explorar o universo das crônicas e resenhas em tom de crônicas desde 2011. O seu sonho é escrever um romance, porém ainda se sente cru demais para tanto. Trabalha em Belém, sua cidade natal, como professor de inglês e português, além de atuar como jornalista cultural e revisor de textos. É formado pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará em Letras com habilitação em Língua Portuguesa e começará em setembro a habilitação em Língua Inglesa pela Universidade Federal do Pará. Chama a si mesmo de um espírito vagabundo que ama trabalhar, paradoxo que se explica pela imensa paixão por aquilo que faz, mas também pelo grande amor pelas horas livres nas quais escreve, lê, joga, visita os amigos ou troca ideias sobre essa coisa chamada vida.
Comentários