O caminho estreito para os confins do norte, de Richard Flanagan
Por Pedro Fernandes
Dos seis
romances publicados por Richard Flanagan, este é o terceiro a ser publicado no
Brasil. Os primeiros foram O livro de
peixes de Gould (Companhia das Letras, 2001 e reeditado em 2015 pela
Biblioteca Azul / Globo Livros) e A
terrorista desconhecida (2009). Este é também o seu título mais recente
apresentado em grande parte das várias entrevistas que o escritor australiano
concedeu como uma das obras mais difíceis de escrever (teria levado doze anos
de trabalho com algumas extensas sessões de isolamento do mundo comum); nessas
mesmas conversas, Flanagan ressalta que o ponto final da narrativa coincidiu
com a morte do pai, figura de quem sugou muitas informações para composição do
romance, sobretudo, no que se refere às descrições do campo de prisioneiros. O
pai do escritor foi um dos poucos que sobreviveram a um desses campos e aos
horrores da Segunda Guerra Mundial – era o prisioneiro 335 conforme está
lembrado na dedicatória, em que seu nome é designado pela forma como foi
identificado pelos japoneses.
A Austrália
ingressou na guerra por apoio a Inglaterra; no primeiro grande conflito, o
país, pelo mesmo motivo, tomou a linha de frente e foi malsucedido. Entre 1940
e 1941, as forças australianas participaram de importantes operações, entre
elas, a do Mediterrâneo, a dos Balcãs e a campanha Síria-Líbano; batalhas que
serão mencionadas ao longo do romance de Flanagan, que, apesar de designado por
boa parte da crítica como mais uma narrativa sobre a guerra, não é. O
romancista prefere falar dos horrores desencadeados por uma série de outras
atividades talvez mais cruéis que o conflito de trincheiras e bem mais
interessante que as jogadas políticas costuradas nos gabinetes dos países
envolvidos nos confrontos. E faz um mergulho no lado mais sombrio da capacidade
humana de destruição do seu semelhante. Também se dedica ao exame do que se
passou pós-conflito.
Dos dois
lados da guerra, com o desmantelamento das frentes de combate, deu-se a formação
de extensos campos de concentração para prisioneiros. Na Tailândia, o mais
conhecido foi o destacamento que terá abrigado algo em torno de cem mil
pessoas, entre australianos, britânicos, neerlandeses, canadenses e
estadunidenses, todos condenados ao trabalho forçado na construção da Estrada
de Ferro Thai-Burma (que ficou conhecida como Ferrovia da Morte) entre Bangkok
e a Birmânia (hoje Myanmar).
Este foi um
dos empreendimentos faraônicos erguidos apenas para cumprir o gosto de expor o
poder imperialista. Basta dizer que os 415 quilômetros de linha foram erguidos
à força num território e tempo inóspitos e por homens tomados por toda sorte de
doenças tropicais; por vezes a extensão do horror descrita por Flanagan nos
coloca em relação com a condição brasileira que alçou o sonho igualmente
imperialista de construção da Ferrovia Madeira-Mamoré no início dos anos de
1920.
O panorama
histórico aproveitado por Flanagan, no entanto, não é inédito. O leitor deverá
lembrar do filme A ponte do Rio Kwai,
cujo roteiro foi baseado no romance de mesmo título de Pierre Boulle; além da
extensa quantidade de relatos históricos, como o de Stanley Willner em seu
livro A ferrovia da morte. Pois bem,
é neste imaginário que se inscreve O
caminho estreito para os confins do norte, título que foi vencedor do
importante Man Booker Prize em 2014.
Outra
questão que precisa ser desfeita – porque tem sido martelada pela crítica tal
como a ideia de ser este um romance sobre a guerra – é que se trata de uma obra
cujo centro da narrativa é a personagem Dorrigo Evans. Assim, como esta é
narrativa sobre um dos horrores específicos da Segunda Guerra Mundial e o que
se passou depois deles, é um romance sobre os trabalhadores que deram o suor, o
sangue e as vidas para dar forma a um empreendimento alimentado apenas pelo
interesse de satisfazer um gesto megalomaníaco do imperador japonês. Isso está
justificado não apenas na grande parte do romance, integralmente dedicada ao
dia-a-dia de sofrimento dos prisioneiros e ainda nos desdobramentos, com o fim
da guerra, das prisões ou condenação dos acusados de manutenção dos campos de
trabalho forçado; e, claro, o tema encontra-se referido desde a própria
dedicatória do romance.
Mas, a fim
de que a narrativa não se converta num extenso relato sobre o horror do campo
de prisioneiros, Flanagan constrói como dorsal ou linha que trança o relato em
toda sua extensão, o passado histórico, o presente e certos lapsos do futuro
(estamos ante um narrador em terceira pessoa que conhece bem os tempos e o
interior de seus indivíduos) de um
dos sobreviventes do campo de prisioneiros Thai-Burma; sim, a figura de Dorrigo,
alcança um relevo considerável pela forma como sua história é um tanto mais
detalhada, medida que não o faz, entretanto, centro do romance.
Dorrigo até
poderia preencher o requisito de um herói, e no sentido de dizer talvez o faça,
embora todo o biótipo, digamos assim, não faz parte de seu papel. Há somente um
grande feito que o aproxima dessa possibilidade que é salvar a família de um
incêndio já um pouco próximo do desfecho da trama. Mas, em linhas gerais, ele
não é responsável por nenhum grande feito em nome de uma coletividade; mesmo
tendo se tornado mais tarde, como muitos foram, a figura do sobrevivente ou do
herói de guerra, Dorrigo é / foi apenas um prisioneiro como os outros que tem a
sorte (talvez pela profissão, ele é médico cirurgião) de não ser condenado aos
trabalhos na ferrovia mas recebe uma espécie de patente figurativa para
organizar os trabalhadores.
E, não é
nenhum pouco o sujeito bom-moço, açucarado de bom-caratismo (em certa passagem
do romance, a personagem é vista por John Menadue como “um mulherengo
desprezível quase feio, um solitário que se escondia nas multidões, um homem
avesso a todo tipo de autoridade, exceto aquela por ele exercida devido a
alguma insultante graça de Deus”); aliás, Flanagan joga com a diversidade de
posições assumidas pelos sujeitos, não fazendo com que suas personagens
definhem numa só face ou exemplos bem-acabadas de uma outra representação
específica. E aqui é suficiente recordar o contínuo envolvimento de Dorrigo com
uma quantidade sem fim de mulheres. Como estudante recém-formado tem pretensões
de casar-se com Ella, sua namorada, mas, no intercurso de ser convocado para a
guerra envolve-se numa paixão arrebatadora com a mulher do tio, a misteriosa
Ammy. Isso no passado; que no presente como importante figura histórica está
finalmente casado e entregue ao rodopio das amantes, enquanto tenta alinhavar a
grande parte dos anos negros de sua biografia ou conviver com essa paixão sobre
a qual nunca terá possibilidade de reatá-la.
O que mais
chama atenção dessa obra está na capacidade com que Flanagan se reaproxima do
grande romance; e aqui vale citar desde O
vermelho e o negro, de Stendhal, a Guerra
e paz, de Liev Tolstói e Doutor
Jivago, de Boris Pasternak. Mas, o romancista busca readequar sua estrutura
aos eixos da narrativa contemporânea, visivelmente na construção de sua
estrutura (três partes interceptadas pela poesia haikai japonesa), sem um fio
que denote uma dimensão princípio-meio-e-fim, mas tomada de volteios como se se
tratasse de uma forma memorialística ou um relato em primeira pessoa fortemente
interessado em esclarecer o desfecho de várias personagens que constituem esse
passado interceptado pela narrativa.
Esse
interesse por que fim levaram algumas das figuras referidas na extensa
confecção do horror dos trabalhos forçados não tem a ver com uma completude ou
arredondamento das personagens, mas uma compreensão acerca dos malogros
produzidos pela exposição contínua desses homens a um mundo sobre o qual nunca
conseguiriam imaginar, mesmo nos piores relatos sobre a insanidade humana.
Aqui, faz sentido recobrar o primor do realismo com que Flanagan descreve as
situações, formas, obsessões e a degeneração do corpo e da psique dos
indivíduos; o extremo e brutal realismo com que arma a vida desses
trabalhadores, requer do leitor fôlego e estômago. Somos arrastados para o
interior desse círculo de horrores. Flanagan não perde a ocasião de se munir do
exercício quase naturalista da escrita; nem podia ser diferente. Para expor
esse vale de desenterrados a única maneira é recriá-lo através de um conjunto
de imagens de forte cunho sensorial. O centro de O caminho estreito para os confins do norte é um grande painel
sobre o horror. Voltando ao trabalho de figuração entre o passado e o presente,
eis a oportunidade melhor encontrada de reforçar a leva de unidades colocadas
em relação no texto: além do passado e presente, amor e ódio, juventude e
velhice, tradição e modernidade.
Por citar a
intersecção com o haikai japonês, não custa lembrar que o próprio título do
romance – O caminho estreito para os
confins do norte – é a cópia de um poema de Bashô publicado depois do
percurso de mais de 2 mil quilômetros feito pelo poeta a pé pela ilha japonesa
de Honshu. A citação da poesia do Japão não é, entretanto, elemento solto no
interior do romance, que bem recupera um núcleo oriental muito forte, mas uma
referência ora ao personagem que tem certo destaque na narrativa: Dorrigo é um
apaixonado pela poesia clássica e tentará não sucumbir aos horrores do que
assiste quase impossibilitado de agir pela constante aproximação com o universo
da arte.
A arte é outro
fio que alinhava toda a tessitura do romance, desde os versos da poesia
japonesa (Bashô, Issa), às menções a Virgilio, Homero, Rudyard Kipling, Tennyson,
Paul Celan, ao contato com a encenação teatral tão logo os prisioneiros chegam
ao campo de Tai-Bhurma. As personagens, australianas ou japonesas, são tragadas
pelo que há de melhor da literatura clássica. Vale recordar o diálogo fervoroso
entre os coronéis japoneses Nakamura e Kota, este último apaixonado pela
estranha arte de degolar pessoas por uma atração que nutre por pescoços, numa
estampada referência ao gosto do japonês pela violência, tema recorrente ainda
quando se refere aos serões públicos de tortura ou no interesse do soldado pelo
suicídio a se entregar como refém-prisioneiro.
Embora esse
traço seja recuperado pela obra, é válido constatar que Flanagan não imprime
uma luta entre o bem e o mal, nem dispõe o romance a tomar partido sobre o
desfecho da guerra ou a busca errônea, se o fizesse, de um culpado ou mesmo de
um vencedor dos conflitos. Tudo não passa de insanidade humana – e numa condição
dessa natureza, em que todos têm de lutar com mais força que o normal pela
existência, não há ninguém são. É o caso do coronel Nakamura, apresentado como
o terrível pelas ações de impiedosa tortura, mas, quando perscrutado pelo seu
interior, é uma alma submissa à condição para a qual foi designado, não para
qual foi criado. Insuficiente a sondagem do narrador, é no pós-guerra que
reencontramos o coronel entregue a um estilo de vida pautado no amor e dedicação
ao próximo.
Estaria
nesse gesto uma reflexão romantizada de que, no final de contas, todos somos
bons e o meio é que nos corrompe? Ou ainda que, mesmo passando pelas piores
tragédias, nada justifica o homem deixar-se entregue ao horror? Possivelmente
não. Pensar assim, não seria apenas reflexão romantizada, mas pura ingenuidade.
O que Flanagan quer deixar claro, e essa é uma das marcas orientais dessa obra,
é a compreensão sobre a volatilidade da natureza dos indivíduos – ninguém é
totalmente bom, mas também não é tão mau. As duas condições são inerentes à
formação de qualquer sujeito. Trata-se de um relativismo que responde ainda por
outra inquietação suscitada por este romance: os dois lados dos conflitos são
corresponsáveis pela marca trágica que ousaram imprimir na história da
humanidade.
Com o fim
dos campos de trabalhos forçados e a megalomania tragada pela corrente insofismável
do tempo, o escritor australiano não deixa de expor que a batalha inaugurada
nos tribunais em busca da punição dos culpados pelas atrocidades da guerra (o
outro lado da situação) foi mascarada por uma série de interesses escusos ou acordos
firmados no calor de manutenção meio-quente-fria que ainda seguiria martelando
sequelas muitos anos depois. No final, todos poderiam ter se sentido
envergonhados pelo esforço em vão, travado apenas pela impossibilidade
irracional do diálogo. Mas, não. Ficou da rixa da louca uma fagulha qualquer
adormecida e talvez capaz de, como a memória atormentada de Dorrigo, sem saber
ao certo o que foi feito de si ou o que poderia ter acontecido se passado fosse
outro, reaparecer quando menos alguém espere.
Sobre isso,
Flanagan compreende que não há triunfalismos ou nada a comemorar, mas há uma
memória que, por mais cruel que seja o tempo (essa é outra das lições de O caminho estreito para os confins do norte)
não pode deixar cair no esquecimento. Daí a importância de uma cena que também
é como uma dorsal do romance, da publicação do caderno de desenhos de um dos
prisioneiros, álbum para o qual Dorrigo é convidado a escrever um prefácio que
nunca sai com a autenticidade que ele gostaria de imprimir ao texto. Ante o horror
qualquer palavra que se use é vã e o silêncio é talvez a maneira mais significativa
– tal como a precisão quase inalcançável do haikai japonês. De certo modo é essa
precisão o que busca o romancista na escrita desse livro. E alcançou. Fez o
tema não apenas um retorno à memória que nunca deve ser apagada, como
potencializou-o numa complexa metáfora sobre outro front, eu-mundo.
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