Memórias de Aldenham House, de Antonio Callado
Por Pedro Fernandes
Este é um
romance que coroa a obra de Antonio Callado. A afirmativa não é minha; nem é
gratuita. É recorrente nas apresentações sobre Memórias de Aldenham House e justamente por isso deve ter nascido
no interior de uma conjuntura na qual tenha sido considerada a leitura integral
da obra do escritor. E há uma série de características presentes neste romance
que acompanha aquilo que a crítica define acerca de sua literatura, sobretudo a
pujança de uma cultura letrada, o forte interesse por colocar em pauta uma
preocupação com o Brasil e a América Latina, ser um romance-denúncia ou crítica
sobre a cultura e a organização desses grupos de nações solapadas pelo extenso
processo de colonização europeia.
O livro
publicado em 1989 foi o último romance de Antonio Callado que terá ficado reconhecido
pelo grandioso Quarup (1967); aqui, o
romancista volta a um dos períodos mais conturbados da nossa história: a
Ditadura de Getúlio Vargas, a ditadura paraguaia de Morínigo Martínez e a
Segunda Guerra Mundial. Os três contextos são representados no romance pelas
figuras de Perseu Blake de Souza, Facundo Rodríguez e sua companheira Isobel,
os três fugidos do estado ditatorial para abrigar-se em Londres, onde vão
trabalhar nos estúdios da BBC destinada a programação para os ouvintes de
língua espanhola, num projeto de expansão da emissora depois do ataque sofrido
por bombardeios alemães na ofensiva de setembro de 1940. E é aí que encontram
Elvira, uma chilena apaixonada pela literatura de James Joyce e entretida na
tradução sem fim do recém-publicado Finnegans
Wake (romance que constrói relações muito próximas com a própria narrativa
de Memórias) e os ingleses, responsáveis por essa equipe de latino-americanos
ou os arquirrivais Moura Page e Herbet Baker.
É preciso
dizer que, exceto Facundo, legítimo paraguaio que tem no histórico o fato de
ter sido combatente durante a Guerra do Chaco, todos os outros têm alguma ligação
com a Bretanha: Perseu tem o pai de ascendência inglesa (figura com quem se
encontra depois de um longo período sem vê-lo, desde quando fugiu do Brasil num
episódio não muito claro para ele, de alegada perseguição da Ditadura, mas que
o filho tem como um abandono do lar); Isobel (nome-ressonância do livro de
Joyce) é filha de ingleses; e Elvira de irlandeses, o que em parte explica sua
atração pela obra de Joyce.
Exilados,
todos vão para Aldenham House, um grande casarão à moda inglesa, onde funciona
os estúdios do novo ramo da BBC; a tarefa de todos, construir a programação que
vai ao ar diariamente. Para que o leitor tenha compreensão que, apesar de
lidarmos com um grupo que aparentemente se safa do braço de ferro da Ditadura,
os embates vividos entre essas personagens rearticulam em miniatura a base do
que se passa num contexto mais amplo; importa aqui não apenas a variedade de
culturas envolvidas no grupo, mas de compreensão sobre o mundo, fatores
determinantes para se reproduza com a mesma intensidade os movimentos de tensão
causados pelo constante bombardeio porque passa os arredores de Londres com a
Inglaterra integralmente envolvida diretamente na guerra. Dessa situação,
Callado constrói mesmo uma espécie de bolha para construir a narrativa de Memórias ou demonstra que é nas situações-limite
quando melhor pode observar os volteios da condição humana: eis, então mais um
elemento caracterizador da catedral literária do autor do romance.
Como é
esperado, alguns leitores terão logo o interesse em aproximar o paraguaio
Facundo ou o brasileiro Perseu como experiências autobiográficas do próprio
escritor, por razões justificáveis pela sua biografia: Antonio Callado, também
casado com uma inglesa (Facundo), esteve como jornalista nos anos negros na BBC
de Londres e trabalhou entre 1941 e 1947 (Facundo / Perseu) no projeto
brasileiro de Radiodiffusion Française, ligação específica, que se apresenta na
sexta parte do romance. A aproximação com a segunda personagem se confirma
ainda pela forma como se apresenta no interior do romance: é Perseu quem inicia
a escrita de um diário sobre os tempos de estadia fora do país e nele revela
seu ponto de vista sobre os acontecimentos vividos, textos que mais tarde
poderão ser lidos como especulações de memória, memória que a forma do próprio
romance agora desenvolvido; disso, o leitor extrai uma explicação sobre o
título, visto que, é este o único traço memorialístico, por assim dizer, que
conforma o romance.
Mas,
especulações à parte, a inserção do diário de Perseu, ainda que seja dada de
maneira muito identificada (sempre está apresentado pelo epígono “do diário de
Perseu”) revela a estruturação de primeira qualidade para uma narrativa, uma
das precursoras da forma moderna no Brasil e mais que isso: busca integrar o
romance nacional numa perspectiva mais grandiosa. Em parte, essa constatação
guarda uma resposta para a aproximação que o romancista faz com o Finnegans Wake, de Joyce, considerado o
suprassumo da narrativa moderna seja pela complexa construção formal seja pela
reinvenção linguística operada pelo escritor no limite de fazê-lo obra
intraduzível.
É verdade
que Callado poderia ter ousado mais, não construindo as indicações que colocam
o leitor muito à vontade para precisar quando está diante de uma narrativa em
terceira pessoa e quando o ponto de vista deixa para ser o da primeira, por
exemplo. As razões para isso talvez possam ser encontradas na própria
compreensão do romancista sobre a relação escrita-público leitor. Habitante de
um país até então entregue a índices alarmantes de miséria e analfabetismo ser
intelectual, como terá sugerido algumas vezes, era praticamente um atentado
contra essa condição; condição que era grande parte político-social, mas que não
eximia qualquer um engajado a ter consigo certo receio ou culpa por ficar no outro
lado da margem. É por isso, aliás, que no retorno ao Brasil, depois de
constatar o desprezo que Europa nutria pela América Latina, que Callado procurará
mergulhar numa verdadeira radiografia de seu país e parte do continente para
sublinhar nosso poder ante o imperialismo.
De todo
modo, Memórias de Aldenham House é
uma narrativa inovadora – até por essa condição de fazer chegar ao leitor mais
comum certa parte dessa radiografia do escritor sobre nossa história e a relação
conturbada de um continente num contexto onde as veias da exploração ainda são
alimentadas com quase a mesma pujança que nos idos tempos da colônia. Mas, é
inovadora porque se apresenta como forma redefinidora de alguns gestos postos
em prática na moderna literatura brasileira, como a oscilação do ponto de vista
que, constitui, por fim noutra maneira de se compreender a ideia de memória
(patente no título); isto é, a memória deixa de ser o apenas o vivido por alguém para
ser a própria experiência de narrar, como se dissesse a fórmula protestada por
alguns escritores contemporâneos de que toda ficção é memória.
Por tratar dessa
subversão proposta pelo romance, é preciso lembrar sobre outras sugeridas pela
narrativa de Memórias de Aldenham House,
título que ao destituir a forma comum
para o termo memória logo se afirma,
portanto, como as reminiscências de um lugar. A certa altura, quando a equipe
de latino-americanos trabalha para dar forma a uma novela radiofônica que
resgataria a história de um dos líderes da revolução paraguaia, chega-se a uma
parte da fundação desse lugar misterioso que guarda semelhanças como os
cenários de crime a Sir Arthur Conan
Doyle. E é aqui que se insere outra subversão proposta pelo romance ora lido.
Enquanto o
consenso entre esses jornalistas de Aldenham House está em pleno desacerto, um
dos membros da equipe é encontrado morto próximo ao lago que compõe o figurino
do cenário desse antigo casarão. É aqui, que Antonio Callado depois de
experimentar toda sorte de observações críticas sobre a história de formação da
América Latina e desenhar bem suas personagens, bem como o lugar da trama (que
depois de solucionar o crime ainda continuará a fazê-las), coloca um crime que
dará forma a um suspense responsável por segurar ou reanimar a atenção do
leitor em pelo menos metade da trama.
Nesse
percurso, Callado apresenta-se como um profundo leitor de um gênero que compôs
todo o imaginário do povo inglês antes da Segunda Guerra Mundial e se utiliza
dele para a construção de um romance que não quer ser policialesco, pela
própria condição depreciativa a que o gênero é reduzido. Se o crime e a
investigação entram como estratégia formal na condução obra-mundo – afinal
estamos em território inglês e todo o tempo uma das personagens zomba do gosto
dos ingleses por encontrar um cadáver no tapete da sala – serve ao escritor
para romper com a possível arquitetura para um romance histórico, como parece
se assumir as duas metades de Memórias:
o imbróglio policial encontra-se no centro do romance. Propositalmente o
escritor funde, duas formas romanescas, a do romance de cunho histórico e a do
romance policial e não se define nem por um tipo nem por outro, mas busca uma
ficção que bebe na fonte de duas tradições, uma, latino-americana e outra de
britânica, claro, com o forte intuito de universalização da primeira ou construir
uma ponte entre a tão próxima geograficamente, mas tão distante na cultura
literária os países do continente. E Paraguai, Argentina, Bolívia estão
representados no romance.
Compreenda o
leitor que não estará diante de um romance dividido em duas formas, mas construído pela intersecção das formas:
basta dizer que, já durante a viagem de travessia feita pelos latino-americanos
pelo mar até chegar a Londres, sempre assinalada pelo suspense de um ataque por
submarino alemão, o elemento que constitui base para a novela policial, por
exemplo, o mistério ou suspense, se apresenta pelo sentido de Isobel que sempre
imagina algo de trágico por acontecer e pela presença de William Monyghan, um
inglês que trabalha no Brasil e está de retorno a Inglaterra por alegado motivo
de saúde. Esta personagem, aliás, além de constituir uma materialização da
hostilidade a que todos estão submetidos direta ou indiretamente (afinal deixam
um contexto de perseguição da ditadura por outro da guerra) é uma espécie de
olho do poder porque está em toda parte; é singular a reaparição dela, por
exemplo, quando, depois do desfecho do crime, parte do grupo agora desfeito
voltam a se encontrar em Paris.
Apesar de
ser um romance leve, marcado por humor ora despachado e bonachão do
latino-americano ora negro e sisudo do inglês, nem tudo são mistério ou flores
em Memórias de Aldenham house.
Antonio Callado imprime aqui uma posição muito descrente acerca dos rumos
tomados pela humanidade no contexto
que toma para esta narrativa. Terá, com isso jogado fora as fichas sobre a
crença de levantamento do continente e de seu país? Uma vez distante dos
arroubos da juventude e ainda cercado por uma infinita quantidade questões sociais
e políticas colocadas sempre na direção contrária da utopia de um novo mundo, é
possível que sim.
O leitor poderá comprovar pela leitura do desfecho trágico
assumido para cada uma dessas personagens citadas nesta trama. Se Carlos Drummond
de Andrade exprimiu esse tempo em A rosa
do povo como um tempo ainda de fezes, Callado, não terá arredado o pé dessa
compreensão; afinal o que poderia se esperar de um tempo em que depois da
guerra ter arrasado nações inteiras no extenso espaço de quatro anos, ficaram
as reproduções do triste germe implantado por Adolf Hitler? As ditaduras. Para
o leitor refletir sobre esse desencanto, basta dizer que o ano de publicação de
Memórias era o ano em que pela
primeira vez avistava-se uma fresta possível de democracia no Brasil, mas o
país e América Latina ainda teria muito a percorrer, tanto que, pelos
crescentes retrocessos, era sempre mais crível esperar que nunca sairíamos
desse fosso. Tantos anos depois, ainda é necessário perguntar: e saímos? Ou a
ditadura não deixou disperso seus filhotes, os produtores da hostilidade entre
os que arremedam pensar numa nação?
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