Gustave Flaubert: “tenho gana por narrar a mim mesmo”
Por Emma Rodríguez
Sempre com
uma caderneta (com capa feita de pele de toupeira) em mãos. Sempre anotando ideias,
observações; sempre imaginando cenas, diálogos, personagens; sempre anotando as
sugestões que despertavam os livros que lia, sempre buscando aproximar-se da perfeição... Estamos com Flaubert, com Flaubert que escreveu obras magistrais e
que deixou de escrever muitas outras que havia planejado porque não foi
suficiente o tempo de uma só vida.
Gustave Flaubert. Cadernos, apontamentos e
reflexões é o título de uma entrega que nenhum admirador do autor de Madame Bovary nem nenhum leitor
interessado nos caminhos, nos processos de criação deve deixar de ter. Cadernos
que serviram não apenas para dar conta de sua cozinha literária, de suas
receitas e ingredientes, mas também para confessar-se, para autorretratar-se
sem disfarces, plasmando as grandezas de sua vocação, de seu talento, mas
também suas debilidades, como se houvesse querido descer do pedestal ante uma
posteridade que, de algum modo, sempre intuiu que acabaria julgando-o.
“Lembro que
antes de completar dez anos escrevia e sonhava já com os esplendores do gênio:
um salão cheio de luzes, aplausos e coroas de flores... Hoje em dia, se bem
conservo a certeza de minha vocação ou a plenitude de um imenso orgulho duvido
cada vez mais. Se você soubesse qual é minha vaidade. É como um abutre selvagem
que me morde o coração. Ah, como estou só, isolado, desconcertado e rastejando,
ciumento, egoísta e cruel!”, anotou um joveníssimo Flaubert na etapa em que
começou a observar o mundo além das paisagens de Rouen, seu povoado natal, um
lugar imortal no mapa da literatura.
É
precisamente esse período inicial, de formação, o mais revelador e assombroso,
porque não é necessário ser um estudioso, um especialista em Flaubert, para
perceber de que maneira vai se forjando o caráter do homem e a armação de
escritor que constrói em torno de si mesmo com afã de experiências, com desejos
de descobrir o amor, a paixão, os mistérios da vida. A ambição está presente
desde muito cedo, assim como uma surpreendente maturidade. Custa crer que em
torno de 1840, com apenas vinte anos, escreveu: “Tenho gana por narrar a mim
mesmo. Tudo o que faço é para dar-me um gosto. Se escrevo, é para ler-me. Se me
visto, é para ver-me bem. Se sorrio para mim no espelho, é para sentir-me
agradável. Esta é a intenção de todos meus atos. Existe melhor amigo que você
mesmo? Mas assim como me julgo de maneira favorável, também me julgo sem
piedade alguma. Pois há dias em que ambiciono a reputação do mais pobre autor
de comédias simples, dias em que me elevo e caio. Portanto, nunca estou à minha
verdadeira altura”.
Apreciar a
evolução do escritor desde seus escritos mais antigos, aos dezesseis anos, é um
presente sem preço que oferece esta edição que, além de uma ampla mostra de seus
cadernos de notas, oferece um par de textos jovens de caráter reflexivo,
páginas de seus diários, esboços e rascunhos de obras diversas, incluindo as
notas preparatórias do que ia ser o segundo volume de Bouvard e Pécuchet, o romance que deixou incompleto.
Para quem
decide se aproximar do território literário de Flaubert são muitos os aspectos
que merecem a atenção; surpreende o modo como o autor se mostra crítico e
implacável consigo mesmo, declarando-se miserável, sabendo-se orgulhoso,
egoísta, vaidoso (“a vaidade, como eu acredito, é o que há no fundo de todas as
ações humanas”, anotou). Surpreende comprovar até que ponto essa dureza, esse
conhecimento das próprias misérias acaba sendo passado a muitas de suas
personagens. Cético, pessimista, o escritor percebeu desde muito cedo as
máscaras, as mentiras do círculo social. Desde muito cedo desenhou o mundo com
cores escuras, consciente das injustiças, das imoralidades, das desgraças dos
desfavorecidos, da brutalidade do ser humano.
O Flaubert
iniciante, é o de reflexões como as contidas sob o título de “Agonias”: “A
tirania esmaga os povos. É tão belo quando estes se libertam. Sinto que meu coração se desafoga com a palavra
liberdade, do mesmo modo que o coração de uma criança bate transbordante de
terror ante a palavra fantasma. Nem um nem outro são verdadeiros. São outra
ilusão destroçada e outra flor murcha”.
Há momentos
em que o jovem se enraiva ante a maldade que observa ao seu redor e nos comove;
há outros em que rimos ao comprovar quanta razão tinha: “Dentro de quarenta
anos será impossível viver sem deixar de se preocupar com o dinheiro como se fôssemos
um banqueiro; me parece que (para a alma) isto equivale a uma espécie de
escravidão”.
Há também
passagens em que detectamos as angústias de qualquer ser humano incapaz de
falar de amor. O homem que não parava de fazer anotações em seus caderninhos
necessitava encontrar uma mulher que o quisesse, “uma amante, um anjo”, chegou
a dizer, mas também deixou a certeza de seu desdém pelo sexo oposto,
criticando, sobretudo, o afã das mulheres de seu tempo pela classe, o renome, o
lugar social, assim como as provocações daquelas que ousavam atirar contra a instituição
do casamento ou fumar, caso de George Sand, a quem se refere numa anotação e quem
pelos costumes e os registros não nos custa nada associar a Emma Bovary. “Quem
nunca fala das mulheres não as ama em absoluto, pois a maneira mais honesta de
sentir algo é sofrer por ele”, argumentou quem foi capaz de criar um das personagens
mais completas e contraditórias da literatura.
Ao seguir Flaubert neste trajeto, observamos
sua fixação por temas com o adultério, a ruína econômica, a traição e a
mentira; percebemos seus diversos registros, a mistura dos altos pensamentos
com as mais sensíveis observações sobre o cotidiano, a convivência da transcendência
com o apontamento humorístico, com a afiada ironia. Ao ser testemunha de suas
rotinas, de sua metodologia, comprovamos também o perfeccionista que era com
seu trabalho, as minuciosas buscas e investigações que fazia antes de escrever
suas histórias.
Quantas listas,
quantos detalhes, quantas anotações sobre pensamentos e costumes – muitas delas
sobre as diferenças na conduta de homens e mulheres –, quantas ideias de outros
autores que lia. E, junto a tudo isso, planos, esquemas de orientação, mapas...
Flaubert necessitava visualizar os territórios da ficção. Flaubert se
preocupava e refletia permanentemente sobre seu ofício. “A Literatura não é uma
coisa abstrata. Se dirige ao homem em sua totalidade; certa palavra que nos
parece arriscada ou certa passagem imoral (libertina) que por acaso tenha é simplesmente
a culpa a alterar nossos nervos. Isto explica a raiva de algumas pessoas contra
certos livros (e as reações da imprensa?): nunca é o fundo o que o escandaliza,
mas a forma”, anotou o autor num de seus cadernos de trabalho.
“O
verdadeiro escritor é aquele que sem sair de um mesmo tema pode fazer em dez
volumes ou em três páginas, uma narração, uma descrição, uma análise e um diálogo.
Fora disso estão os farsantes ou de gente de bom gosto; duas categorias de medíocres”,
argumentou quem, supostamente, foi um leitor atento, consciente, que teve entre
seus ídolos literários, autores como Montaigne, Chateaubriand, Rabelais, Victor
Hugo, Goethe, Lord Byron ou Cervantes do Dom
Quixote.
São muitas
as surpresas com as quais nos deparamos na leitura deste Flaubert tão íntimo, tão
próximo. Este Flaubert que nem sempre é tão simpático em sua falta de modéstia,
em seu tom desdenhoso em muitas ocasiões. Mas, se alguma coisa apreciamos em
seu legado é a sinceridade, a faltar de pudor na hora de falar de si mesmo. E,
sobretudo, a maneira na qual, como Virginia Woolf tempo depois, nos faz partícipes
de sua luta, de seu desejo de fazer livros excitantes, de provar que “a felicidade
está na imaginação”, como escreveu no esboço de um romance que não chegou a
escrever e na qual queria contrapor a infelicidade da realidade frente a
felicidade que proporcionam os sonhos. Não é isso, na realidade, a literatura? –
nos perguntamos. E perguntamos a Flaubert, ampliando esse diálogo que deixou
aberto para seus leitores futuros, para a posteridade. “O que é a glória?”, se
questionou uma vez ou outra. Pois, “alcançar que se digam muitas loucuras sobre
alguma coisa”. Simplesmente.
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