Fibrilações, de Ana Hatherly


Por Pedro Belo Clara




Dado o recente desaparecimento da autora em epígrafe citada, é justo que a presente edição sirva de palco à apresentação de uma das suas obras; no caso, poética. Embora reconheçamos a singeleza do acto, não deixa o mesmo de intentar, junto da visada, o préstimo da devida homenagem.

Ana Hatherly, nascida na cidade do Porto em 1929, foi uma profícua autora que, para além das produções literárias, desempenhou o papel de professora catedrática em Lisboa, revelando-se ainda uma artista plástica de reconhecido mérito e louvor (actividade essa iniciada um pouco mais tarde, já durante a década de 60). Licenciou-se em Filologia Germânica e obteve o seu doutoramento em Estudos Hispânicos na Universidade de Berkeley, Califórnia, possuindo ainda um diploma em Cinema, emitido pela London Film School. Os trabalhos que dentro da área desempenhou ainda hoje se encontram guardados nos principais arquivos do género.

A partir estas escassas linhas concluímos como os interesses artísticos de Ana Hatherly se espraiavam por caminhos bastantes distintos, ainda que um igual destino, às mais variadas forma de arte, possa ser atribuído. Uma prova desse empenho encontra-se no crucial papel que desempenhou na fundação do P.E.N Clube Português (Poesia, Ensaio, Novela), entidade que ainda hoje atribui anualmente diversos prémios dentro das categorias contempladas.

O facto de possuir uma personalidade virada para o artista em geral e o seu árduo ofício, levar-lhe-ia a um lugar de direcção na Associação Portuguesa de Escritores. A própria arte, como não poderia deixar de ser, também mereceu todos os seus esforços de divulgação, defesa e investigação. Daí a fundação de revistas literárias como a Incidências e todo um processo de fincado apoio à difusão da literatura portuguesa barroca.

Sem surpresa, o público em geral reconhece em tais personalidades as virtudes que sustentam a atribuição de distinções meritórias. No Rio de Janeiro, em 1978, foi agraciada com a Medalha Oskar Nobiling, e em 2003, em França, recebeu o prémio de poesia Evelyne Encelot. No seu país natal ser-lhe-ia outorgado o Prémio de Poesia do P.E.N (1999), que ajudou a fundar, e, um ano antes, o Grande Prémio de Ensaio Literário, pela A.P.E, associação que, como vimos, em tempos dirigiu. Contudo, a honraria maior surgiria em 2009, por ocasião das celebrações do Dia de Portugal e das Comunidades (10 de Junho): eleição como Grande-Oficial da Ordem do Infante D. Henrique.

Depois de Sophia, não tememos afirmar que a literatura portuguesa perdeu um dos seus maiores vultos femininos, embora a escolha do verbo não pareça propriamente acertada. Poderá um país efectivamente “perder” um dos seus poetas aquando da sua morte? Ou não ganharão as nações uma renovada fragrância com o brotar dessas tão raras flores, nascidas tantas vezes do lodo e forçadas a florescer no seio de mil espinhos? Os poetas acrescentam sempre algo de positivo, pela via da luz ou da sombra, ao país que os acolhe, por mais ostracizados que possam vir a ser. Não contribuirá aquilo a que os Homens designam por “cultura”, sendo os poetas somente uns dos seus maiores arautos, para o engrandecimento do espírito humano, fazendo-o sonhar, como se a cada dia ostentasse um sol no próprio peito, com o fruto dos novos dias?

Ultrapassada a introdução da autora e o explanar do seu percurso sumariado, sobre o livro propriamente dito, ao qual nos focaremos agora com a atenção que nos merece, poderemos sublinhar, em primeira análise, as breves imagens que cristaliza e as também breves reflexões que amiúde expõe.

Em poemas curtos e despojados, que raramente ultrapassam os quatro versos, sobressai deste livro a exactidão da linguagem, brilhando como estrela bordada em pano de veludo. O gosto, se não mesmo anseio, pelo concreto destaca-se dentro da preocupação sempre presente em aproximar o poema da imagem. De facto, não nos poderemos esquecer das incursões feitas por Hatherly nas áreas do cinemas e, principalmente, das artes plásticas, curiosamente, ou não, duas disciplinas onde a imagem assume um papel preponderante – e onde a palavra pode perfeitamente ser dispensada ou reduzida à sua mínima utilização. Portanto, não se estranha o modo natural como no espaço artístico poema e imagem captada coabitam, isto é, palavra e gravura (quase que dizemos: palavra e silêncio), sem diminuição de valor, de carácter ou de individualidade. O poema, aliás, parece ganhar uma outra profundidade quando exposto a essa influência, muito próxima da tradição poética oriental, a esse transporte da realidade captada para o espaço físico onde o poema se desenvolve. E para que os ritmos se pautem e toda essa intenção se harmonize, também não se estranha a quase completa ausência de pontuação.

Para exemplificar essa captação de imagem e consequente transposição para a palavra, seleccionámos dois poemas onde a imagem absoluta e a crua realidade cintilam nos versos que as traçam:

Olha:
a fluidez das lágrimas nada vale
Os olhos secam rápido
no veludo do sangue

Olho
uma rosa vermelha
numa jarra vermelha
Vejo
o absoluto vermelho
da absoluta rosa

Eis assim a imagem absoluta, sem mácula de pensamento, de julgamento ou rotulagem: a imagem captada, somente ela, brilhando num fundo tão vazio quanto um abismo sem fim que se conheça ou adivinhe.

Numa primeira e descontraída leitura, os poemas poderão passar uma imagem de frugalidade capaz de desinteressar alguns intelectos. Porém, essa simplicidade é a porta de entrada a um universo surpreendentemente profundo. Por dispensar o intelecto e os artifícios da mente, de tão despojado que é, o registo dos poemas poderá então causar tal sensação, eles que se querem degustados pelos sentidos, não por sucessivas racionalizações.

No entanto, relembramos algo que atrás frisámos: os poemas de Fibrilações contêm um determinado reservatório de imagens, mas não são exclusivamente visuais. Nalguns, o elemento cristalizado não é uma determinada realidade, mas o pensamento. No entanto, também o mesmo poderá constituir um óptimo trampolim para o domínio da imagem. Na verdade, esses dois aspectos parecem fortemente entrelaçados a dado momento, ainda que a virtude da imagem pareça dominar. Afinal, “pensar” é «pesar / montanhas de espuma», «entrar de rastos / numa profusão de escuros». Mesmo presente, o peso do dito acto não deixa de ser frisado.

As origens das reflexões expostas ao longo do livro são perceptíveis e desde logo compreensíveis. Trata-se de um mero e muitíssimo natural exercício de amadurecimento daquele que é o fruto da própria vivência, alimentado por fundas e atentas observações (uma vez mais, temos presente a componente da imagem). De uma delas, exposta no poema Às vezes, a autora retira uma das mais poéticas conclusões que o leitor poderá saborear ao longo do livro – poética e, como é comum  em poemas de alto calibre, dotada do grau certo de obscuridade: «viver é uma hemorragia calculada».

Teremos, portanto, diversas páginas onde retalhos da percepção da vida e suas incidências e elementos, plasmados na realidade poética a partir da experiência do “eu”, são passíveis de apreciação. São disto exemplo os seguintes poemas:

A ameaça do receio
paira sobre o meu peito
Fibrila insistente
como pálpebras sem sono.

Quero parar e não posso
o coração não deixa
Com enorme diligência
quer continuar
(pertence a outro limiar)

Dois retratos breves que pela captação do instante em que floresceram dão-nos a imagem do pensamento e do pensador, as suas sensações no momento do registo e, ao mesmo tempo, o espaço vazio que permite o devido preenchimento por parte do leitor. Neste caso, as razões para o receio que o “eu” refere, primeiro, e depois o desfasamento entre a personalidade e o coração, ambos dispostos a seguir em direcções díspares: a força das paixões combate a fadiga dum corpo de sofrimento, questão essa que de modo bastante curioso é proposta, já que em regra é o coração a querer parar e, com isso, a desprover de vida o corpo que comanda.

É ainda notório o espaço que sobeja para registos mais luminosos, ou seja, para instantes de maior leveza onde a experiência, fruto do acumular da vida vivida, se mistura com a captação do momento, traduzindo-se num conselho sensato. Particularizando a ideia, encontramos um convite ao pleno saborear dessa extraordinária jornada a que chamamos “vida”. Reproduzimos agora na íntegra o poema ao qual nos referimos, escrito de modo a lembrar um qualquer epitáfio de sapientes implicações:

Viaja sem qualquer bagagem:
Entre o que te salva
e o que te mata
nada substitui a aventura

Mas porque tratamos de vivências, a memória, esse lugar «onde os sonhos adormecem», é uma vertente inculcada no poema de modo irreversível, uma presença indiscutível sobre qual se constroem poemas assim:

A pálpebra desce
o joelho dobra
o coração dói
quando recorda

Notemos como o coração retoma o papel de protagonista, ele que é definido como «maré nocturna» palpitando no âmago de uma personalidade feita de «ecos» – «O surdo palpitar do eu / é um eco de ecos».

Sobre ela, a personalidade, esse estranho “eu” que se subentende a cada verso lido, pouco ou nada se poderá saber de concreto. Somente sobejos do seu lampejar aqui e acolá são recolhidos pelo ser que, perplexo, os ergue como um espelho quebrado onde não se obtém reflexo. Na base de certas percepções encontram-se princípios ilusórios, daí que o Homem seja ainda o maior estranho aos seus próprios olhos: «Meu coração e eu / vivemos juntos / mas não lado a lado / e nunca nos vemos». Mas a respeito dessa assumpção, talvez o poema mais conseguido, no sentido de completo, seja o seguinte:

Meu coração é como um fruto
plantado num esquisito pomar
O meu peito é a cortina que esconde
o seu tumulto

Tão perto e tão longe… Tem sido esse o conflito mais premente do ser humano, tanto na procura de uma divindade da qual foi criação como no encontro consigo mesmo, com o ser que é – ainda de obscuras formas à sua cega percepção.

No entanto, a presente obra abre espaço à reflexão, exposição ou apresentação de outros elementos e temas além daqueles já abordados. Logo na sua abertura, por exemplo, deparamo-nos com uma acurada definição da poética de Ana Hatherly: «Os meus poemas são / o inaudível grito de um sonho». Embora exista uma referência a Sapho, temos uma vez mais a revelação da poesia como um exercício profundo, isto é, remetido ao primeiro silêncio donde todas as palavras nascem. Daí irromperão recordações, anseios, esperanças, lamentos – enfim, toda a substância com a qual o poeta moldará o seu trabalho. Nos versos que antecedem os expostos, em jeito de prelúdio, a autora concede-nos um vislumbre da tensão entre o real e o imaginário, entre a criação e a vida sobre a qual tão pouco controlo detemos, dada a liberdade extasiante de uma e o cru determinismo da outra: «Como saltar dos meus versos / para os teus braços?». Uma questão, certamente, que assombrou outros poetas ao longo dos séculos, mesmo sabendo da fantasia comportada por um dos lados e do sempre inevitável retorno à realidade circundante.



Sucedendo a esse poema surge um outro que encerrará uma possível justificação para alguns traços do trabalho poético de Hatherly: o desejo pelo silêncio aliado à depuração dos versos, o gosto pelo objectivo e pelo concreto, a constante criação de espaços poéticos desprovidos do máximo ruído. Ei-lo:

O verdadeiro poema
não se pode ler
É um tiro no escuro
inaudito e cego

Muitos poetas têm-se esforçado por aproximar a palavra do silêncio, ainda que o exercício pareça condenado logo à partida. O poema supremo seria, assim, um instante de silêncio; logo, jamais poderia ser lido, já que qualquer palavra que o comportasse, mesmo escrita, traria consigo o efeito do som. No entanto, a urgência em atingir essa forma final parece, pela substância do poema seguinte, crucial:

As palavras pesam
os sinais excedem
O poema é um nó
simulado

Tudo porque «o poeta caminha por palavras / bate em duros muros» e como refém de um terrível destino «enterra-se no pó da língua». A transmutação das causas e dos efeitos impõe-se, daí que o indivíduo seja necessariamente o alvo primeiro. É preciso «construir pontes / destruir secretos recessos», já que «a nossa tarefa é entender o mundo». É claro que aqui o pronome possessivo tanto se poderá referir aos poetas em particular como ao ser humano em geral, ainda que as ambas as “espécies” não estejam propriamente desassociadas. No entanto, a incumbência não deixa a sua atribuição em mãos alheias: a missão deve ser cumprida por cada um, já que «o jogo somos nós». É curioso salientar como o burilado dos poemas acompanha a necessidade de lapidação do indivíduo, numa tentativa de aproximar, primeiro ao nível da forma, depois da substância, o criador da criação.

Se a sua atenção ainda não se dispersou, caro leitor, é provável que tenha já notado como determinadas palavras se repetem e, assim, sobressaem dentro das demais. Na verdade, o livro é atravessado por diversas “palavras-chave”, diremos assim, que reforçam a essência da sua própria reflexão. Poema, poeta, pensar, sangue, palavra e coração são os exemplos mais evidentes. Naturalmente, pelo que já expusemos, esta última adquire um significativo destaque dentro das demais. Mesmo que o sangue seja «uma rosa líquida» que «nunca chega ao fim / só pára de correr» ou a palavra uma «íntima aventura», o coração é esse «essencial rubor», uma «rosa viva», mas «sem futuro». No entanto, não propriamente desprovido de virtudes: também ele é uma espécie de fruto.

Eis a sua maior dádiva, então: «cresce / amadurece / mas não cai / Se alguém o quiser / não morre».

Contudo, a agitação que sempre o habita será o prelúdio da sua própria noite. Tanto sobressalto, ao longo de dias a fios, leva invariavelmente o órgão ao momento da sua cessação final. Diante do rosto da morte, há ainda tempo para uma derradeira pergunta, talvez elaborada no seio de uma esperança em expurgar a inevitável condenação a que fora sentenciado logo no momento do seu nascimento: «desaparecer porquê?». A vida não poderia existir sem a morte, é questão factual, mas no máximo esplendor da vida ao coração não poderá a morte parecer tão absurda e destituída de qualquer sentido? Esta ideia leva-nos a um dos mais belo poemas do conjunto apresentado pelo livro em discussão:

Que mundo desmaiado é esse
onde o final é
um branco esquecimento?
Com tímida audácia
florimos em nada

Fibrilações são oscilações, ténues ou abruptas, que culminam no registo desses impulsos dum coração tão vivido como qualquer outro, rumoroso de sangue e de momentos que, juntos, criam a estrada percorrida pelo passar do tempo. E daqui se extrapola facilmente para outro campos, nomeadamente o do pensamento, registado em digna arrumação, donde as emoções desabrocham no topo do caule pela razão erguido. Mas talvez seja o contrário. Colocando de parte a eterna dualidade, Razão e Emoção, este breve livro compila poemas representativos da poesia mais apurada que Ana Hatherly soube produzir. Embora não se deixe de recomendar a leitura do Poesia, livro que antologia vinte anos de produção poética, estão à disposição de cada leitor poemas de imagem cristalizada, seja por observação directa ou por pensamento, discorrer esse que muitas vezes desagua no capítulo do conselho – a derradeira cristalização da experiência vivida. Mesmo sendo diverso ao nível de determinados temas, este livro compacto em termos de unidade certamente abrirá o apetite dos leitores mais interessados.

Resta-nos acrescentar, antes de concluirmos a nossa discussão, que Fibrilações foi um livro que, aquando do seu lançamento, em 2004, circulou numa edição clandestina, isto é, “fora de mercado”, de apenas 100 exemplares, mas numerados. Só no ano seguinte, em 2005, a Quimera Editores realizou a sua primeira edição comercial com a capa do mesmo a ser realizada pela própria autora. O texto não sofreu alterações, mas procedeu-se à tradução dos poemas para castelhano, trabalho esse levado a cabo por Perfecto E. Cuadrado.

***

Pedro Belo Clara é colunista do Letras in.verso e re.verso. Por decisão do editor do blog, nos textos aqui publicados preservamos a grafia original portuguesa. Nascido em Lisboa, Pedro é formado em Gestão Empresarial e pós-graduado em Comunicação de Marketing. Atualmente centrado em sua atividade de formador e de escritor, participou, com seus trabalhos literários, em exposições de pintura e em diversas coletâneas de poesia lusófona, tendo sido igualmente preletor de sessões literárias. Colaborador e membro de portais artísticos, assim como colunista de revistas e blogues literários, tanto portugueses como brasileiros, é autor dos livros A jornada da loucura (2010), Nova era (2011), Palavras de luz (2012) e O velho sábio das montanhas (2013) – sendo os dois primeiros de poesia. Outros trabalhos poderão ser igualmente encontrados no blogue pessoal do autor – Recortes do Real (artigos e crônicas diversas).


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