Charles Bukwoski e o ímpeto para a escrita
“Tinha duas opções,
ficar nos correios e tornar-me um louco... ou sair e tentar ser escritor e
morrer de fome. Decidi morrer de fome”.
O grande
poeta maldito disse, sem perspectivas e sem restabelecer o sonho destruído por
suas próprias palavras: as letras não são para qualquer um. Além de dirigir-se
a mais de uma geração de pseudo-escritores que se dispunham a gastar papel, tinta
e, sobretudo, tempo de centenas de milhares de pessoas que leriam suas palavras vazias, o
escritor também elaborou seu próprio manual daquilo que um sujeito comum devia
fazer para converter-se num grande escritor, como ele mesmo veio se tornar um dia.
Provavelmente
inspirando-se em seus anos de juventude; cheios de excessos, desilusões, sonhos
desfeitos, mulheres, incertezas e álcool, Bukowski não fez outra coisa senão
contarmos suas próprias desgraças através da literatura. E isso o terá feito, aos olhos de muitos, um escritor medíocre. Sem dúvidas.
Como muitos grandes
escritores, o estadunidense tardou encontrar seu próprio caminho. Entregue à rotina de um trabalho que o consumia, o artista recorria à literatura como
uma forma de expor sua revolta com uma sociedade que o maldizia todos os dias e
que, com bons olhos ou não, finalmente teve de se render a ele. O êxito, no entanto, só encontrou numa
idade muito avançada, longe dos anos da mocidade quando sonhava em ser
escritor, época durante a qual os embates niilistas eram constantes e quando flertava
com a morte e o álcool.
Bukowski enfrentou
a adolescência sabendo que queria ser escritor, mas depois de um par de artigos
publicados, se decepcionou com o mundo editorial. O golpe de realidade o obrigou
a buscar um novo rumo na vida, e recorreu ao modelo tradicional: depois de
pular de um trabalho para outro, finalmente conseguiu um posto nos correios da
cidade de Los Angeles. Durante o dia trabalhava e ao mesmo tempo lutava contra
o fogo interno que lhe incitava a abandonar esse modelo de hipocrisia e escravidão
moderna. Em seu tempo livre, dava forma a uma paixão que não havia abandonado
totalmente e que lhe servia como bote salva-vidas. Publicava em pequenas
revistas, escrevia poemas e bebia.
Em 1969, aos
49 anos e uma carreira marcada pelos excessos, os escritos de Bukowski geraram
interesse no editor da Black Sparrow Press, John Martin, quem se converteu numa
personagem crucial na vida de Bukowski. Foi ele quem ofereceu um salário de cem
dólares por mês para que abandonasse seu trabalho miserável e se dedicasse apenas ao exercício
da escrita. Ele, que só buscava uma oportunidade para fugir de um mundo egoísta,
obstinado e estúpido, aceitou.
Em menos de
dois anos, a editora publicou seu primeiro romance, Cartas na rua, texto que marcaria a estreia do escritor que, antes de
morrer de leucemia e em menos de vinte anos ganhou o reconhecimento devido pela
crítica especializada. Longe de mundo corrompido por falsos ideais, deixou-se
permitir ao fluxo das palavras e destruir com elas as bases de um modelo social
fadado ao fracasso desde a década de 1960.
Dezessete anos
depois de abandonar o trabalho que o tinha como miserável, Bukowski escreveu
uma carta ao homem que o pegou pela mão e levou-o a viver da escrita. Num gesto
sincero, de total humildade, o poeta maldito lhe agradece ao seu antigo editor
por lhe presentear com a oportunidade de mudar sua vida, de viver da literatura
e sobretudo de permitir ter uma “morte generosa”. A carta, que integra o livro Reach for the sun: selected letters
1978-1994, um terceiro volume que recolhe correspondências do escritor estadunidense, é um intrigante exercício introspectivo do escritor.
“12 de
agosto de 1986
Olá John:
Obrigado
pela carta. Em certas ocasiões não dói recordar de onde viemos. Você conhece os
lugares de onde venho. Inclusive as pessoas que tratam de escrever sobre ele,
ou fazer filmes, não o entendem. Chamam-lhe
“De 9 a 5”. Nunca é de 9 a 5, não existe um descanso para comer, e de
fato, em alguns lugares não se deve comer se quer manter seu trabalho. Mas existem
as horas extras, as quais nunca são registradas corretamente nos livros e se
você se queixa disso, encontrarão outro idiota que lhe recompensará.
Você conhece
meu velho ditado: “A escravidão nunca foi abolida, só se dissolveu para incluir
todas as raças”.
O que dói é
a perda da humanidade naqueles que lutam por manter trabalhos que não querem,
mas que temem ante uma alternativa pior. As pessoas simplesmente se esvaziam. São
corpos com mentes obedientes e temerosas. A cor fica fora dos olhos. Sua voz fica feia. E o corpo. O cabelo. As
unhas. Os sapatos. Tudo.
Quando era
jovem não acreditava que existiam pessoas que deram sua vida por essas condições.
Agora que sou velho, sigo sem acreditar. Por que fazem isso? Sexo? A televisão? Um carro para pagar em prestações?
Ou os filhos? Filhos que apenas farão o mesmo que eles fazem.
Antes,
quando era muito jovem e saltava de trabalho em trabalho, era suficientemente
ingênuo para dizer aos meus companheiros: ‘Olhe, o chefe pode vir a qualquer
momento e simplesmente nos demitir, você não se dá conta?’
Só me
olhavam. Eu dizia essas coisas a eles não queriam deixá-las entrar em suas
mentes.
Agora, na
indústria, há muitas demissões. Os demitidos somam centenas de milhares e seus
rostos são sempre os de surpresa:
‘Estive aqui
por 35 anos...’
‘Não é justo’
‘Não sei o
que fazer...’
Aos escravos
nunca lhe pagam tão bem como quando o demitem, mesmo que apenas o necessário para
que sobrevivam e voltem de novo ao trabalho. Eu via assim, por que eles não? Me
dei conta de que o banco do parque era igualmente bom, que ser barman era
igualmente bom. Por que não estar primeiro aqui antes de me colocarem lá? Por que esperar?
Escrevi com
ódio contra tudo. Foi um grande alívio jogar fora do meu sistema essa merda toda.
E agora estou aqui, como um ‘escritor profissional’, e depois dos primeiros 50
anos, descobri que há outros desgostos além do sistema.
Lembro de
uma vez, quando trabalhava como embalador numa fábrica de artigos de iluminação,
que um companheiro disse de imediato: ‘Nunca serei livre!’
Um dos
chefes passava por ali, seu nome era Morrie, e soltou uma grande gargalhada,
desfrutava do feito de que o tipo se referisse a ser contratado por toda a vida. Assim,
a sorte de sair finalmente desses lugares, sem importar quanto tempo me tomou,
me deu uma espécie de felicidade, a felicidade do milagre. Escrevo agora com
uma mente velha e com um corpo velho, muito tempo depois de que a maioria dos
homens pensaria em continuar com isto, mas dado que comecei tão tarde, devo a
mim mesmo ser persistente. E quando as palavras comecem a falhar e tenha que receber
ajuda para subir as escadas e não possa mais distinguir um pássaro azul de um clipe de papel,
ainda sentirei que algo dentro de mim recordará (sem importar que tão longe
tenha sido), como cheguei em meio à confusão, ao assassinato, a ter pelas letras a convicção de que me deram, ao
menos, uma morte generosa.
Não ter desperdiçado completamente minha vida, parece ser uma vitória, ao menos para mim.
Teu menino
Hank”.
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