Apontamentos sobre alguns textos curtos de Tolstói
Por Alfredo
Monte
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Tolstói é um autor perigoso para os
demais. Sempre que o lemos parece que não se precisa ler mais nenhum outro
escritor. Ele parece ser o limite do que pode ser dito e representado através
das palavras.
Tomemos como exemplo A morte de Ivan
Ilitch (1886), assustadora reflexão sobre a mortalidade, que está para o século
dezenove como A metamorfose, de Kafka, para o vinte.
Mas do que morre Ivan Ilitch? Ele é um
juiz, um cidadão que leva sua vida “comme il faut”, isto é, dentro do
convencional, do decente, do respeitável, apesar de alguns aborrecimentos
domésticos. Um dia, sofre uma queda e machuca a ilharga. A partir daí,
desenvolve uma doença misteriosa que lhe provoca dores lancinantes, as quais
depois de certo ponto não são aplacadas com ópio nem com morfina.
«Por favor, queria te falar, te falar da
morte de Ivan Ilitch, da solidão desse homem, desses nadas do dia a dia que vão
consumindo a melhor parte de nós...». Nessas palavras de A obscena senhora
D (1982), momento marcante da sua
obra, Hilda Hilst coloca o dedo na ferida: ao se perceber como moribundo, uma
pessoa que já é considerada morta, mesmo em vida, Ivan Ilitch tem de enfrentar
a solidão que, em última instância, é a nossa condição. E, ao enfrentar essa
solidão, faz uma descoberta mais aterrorizante ainda: a mentira do dia a dia (esses
nadas que vão consumindo a melhor parte de nós), a qual, inclusive, quer varrer
a ideia da morte para debaixo do tapete e vê no agonizante um lembrete
incômodo. Chega um momento em que o outrora juiz se vê reduzido à mesma
condição do Gregor Samsa kafkiano: é o monstro que tem que ser escondido para
não horrorizar os outros.
É avassaladora a maneira como Tolstói faz
Ivan Ilitch defrontar-se com a morte, a partir da reminiscência do silogismo
filosófico básico que aprendera quando jovem: «Caio é um homem, os homens
são mortais; logo, Caio é mortal». Como abstração, pairando no reino das
generalidades, que coisa bonita e lógica!; só que, quando a sentimos na carne,
nenhuma angústia é maior: «Que Caio, o homem abstrato, fosse mortal, era
perfeitamente certo; ele, porém, não era Caio, não era um homem abstrato, era
um ser completa e absolutamente distinto dos demais». E, de repente, de conceito
a morte passa à evidência; mais ainda, uma vivência: «Ia para o
escritório, deitava-se novamente ficava a sós com ela. Cara a cara, e sem nada
poder fazer, salvo encará-La, enquanto o coração gelava-se no peito». Radicalizando
o processo de conceito e vivência, a Morte se torna um aprendizado, uma
tabula rasa que mostra que, de fato, a verdadeira morte estava na vida alienada
e medíocre que levara. Ao morrer, pensa:
«Acabou a Morte, a Morte já não mais existe».
Tal desfecho passa longe de ser otimista.
Muito pelo contrário, é desolador. Porque joga uma luz sombria sobre a
existência que nós levamos, assemelha-se a um veredicto inapelável sobre a
nossa maneira de viver. Lendo a obra-prima de Tolstói é que podemos ver como
são acertadas as palavras de Harold Bloom, em O cânone ocidental, sobre
a função da obra literária (e da obra de arte em geral). A alta literatura não
torna ninguém melhor ou pior, mais útil ou mais nocivo. O que nos faz e nos
traz é «o uso correto de nossa solidão, essa solidão cuja forma final é nosso
confronto com nossa mortalidade».
Com relação a isso, A morte de Ivan
Ilitch adquire um caráter de texto-limite: «Aquela mentira que lhe
era pregada nas portas da morte, aquela mentira que rebaixava o solene e
terrível desenlace ao nível das visitas sociais, das cortinas, do esturjão que
se comera no jantar… O monstruoso, o horrendo ato da morte era por todos
rebaixado ao nível de um acidente fortuito, desagradável, quase
inconveniente(mais ou menos como se trata alguém que entrasse numa sala
fedendo a catinga),e tudo era praticado em nome daquela decência que ele tanto
defendera durante toda a sua vida»1.
2
«De uma
maneira geral, a música é terrível! O que é a música? Não sei. Que efeito
produz? E por que atua deste modo? Dizem que eleva as almas. É absurdo! É
mentira! Exerce grande influência, mas não eleva a alma de maneira nenhuma.
Como explicar isso? A música obriga-me a esquecer a minha existência, a minha
situação real, transformar-me. Debaixo de sua influência parece-me sentir
aquilo que não sinto, compreender o que não compreendo, ser capaz daquilo que
na realidade não sou… Na China, a música é dirigida pelo Governo. Devia ser
assim em toda parte. Como permitir que um homem qualquer, um músico, sobretudo
se é uma criatura sem moral, hipnotize as pessoas e faça delas tudo quanto
quer? Poderá, por acaso, tocar-se num salão, entre mulheres decotadas, o presto da Sonata
a Kreutzer, por exemplo? Como será possível ouvir esse presto, aplaudir um
pouco e depois bebericar e comentar a última fofoca? É preciso, depois de ouvir
a música, fazer aquilo que ela nos inspirou. Não pode deixar de ser prejudicial
provocar um sentimento que não possa manifestar-se».
Esse é um trecho crucial de A sonata a
Kreutzer (1889), onde o personagem principal, Pozdnichev, conta a um
desconhecido (o narrador), no decorrer de uma noite, em meio a uma longa viagem
de trem, como praticou o uxoricídio por suspeitar que a esposa o estivesse
traindo com um violinista.
A diatribe contra a música associa-se a um
tom inquisitório que ataca o casamento, as relações carnais, o divórcio, a
medicina, as mulheres, os judeus, os ingleses, o ócio e a superalimentação,
tudo colocado numa mesma apocalíptica condenação moral. Isso não seria problema
se estivesse restrito apenas à psicologia de Pozdnichev como personagem, o qual
expõe suas ideias e a si mesmo, um pouco como os personagens ressentidos de
Dostoiévski, por exemplo o narrador de Memórias do subsolo. O problema de Sonata
a Kreutzer (e que o torna um dos textos mais irritantes da literatura) é
que Tolstói incluiu um pós-escrito, no qual encampa as teses centrais de
Pozdnichev. Como se sabe, o grande escritor russo encaminhou-se para um
evangelismo radical e antiocidental, com o qual procurou criar uma religião, o
tolstoísmo. E, assim, A sonata a Kreutzer empaca na fronteira entre a representação
ficcional e a pregação saneadora dos costumes. Tolstói chega a afirmar, no seu
pós-escrito, que a união entre um homem e uma mulher, sob qualquer forma,
institucional ou não, é «uma finalidade indigna de um homem», similar a
engordar pelo excesso de alimentação.
É certo que o casamento burguês foi um dos
maiores alvos da literatura oitocentista, inclusive do próprio Tolstói no
soberbo Anna Kariênina (1875-77). É certo que o príncipe Bolkonski
(com quem Tolstói ficará cada vez mais parecido, antes de mergulhar no seu
avatar final de rei Lear de Iasnáia Poliana), pai de Andriêi, um dos
protagonistas de Guerra e paz (1865-69), afligia-se com a
educação das mulheres e sua predisposição às frivolidades românticas, motivo
pelo qual atormentava a filha Maria (o que não a impedirá de apaixonar-se tola
e romanticamente e de casar-se desastrosamente).
Mas nunca a pregação moral fora tão
evidente, mesmo sabendo que Tolstói passara a renegar suas realizações
artísticas anteriores. Basta ver a sua visão da música para perceber como sua
concepção artística resvalou para a severidade e a seriedade ridículas. Aliás,
é a música que fará com que o demonismo e degradação latentes no casamento de
Pozdnichev venham à tona, com a entrada em cena do violinista Trucachevski.
Três anos antes da história do uxoricida
Pozdnichev, Tolstói já chegara a um patamar irretornável de denúncia do egoísmo
e da vaidade humana em Ivan Ilitch. E, a partir de então, resolveu pregar
ao invés de ordenar artisticamente a realidade e a experiência, com suas
contradições e impasses. Contudo, assim como o destino de Pozdnichev representa
uma vendeta moral contra sua fatuidade inicial, o Tolstói escritor genial
vinga-se do pregador moralista ao longo de A sonata a Kreutzer. É só ir lendo e
reparando como, após as páginas iniciais, de diatribes e arengas, a força da
ficção vai se impondo, a história vai se enriquecendo, os detalhes vão
sombreando o quadro maniqueísta proposto e vão surgindo ambiguidades dignas do
Machado de Assis de Dom Casmurro; ao fim e ao cabo, temos uma tela tão
vívida da sociedade como os melhores momentos de Guerra e paz, e um
retrato da alma humana quase tão dilacerante e devastador quantos os grandes
momentos de Dostoiévski.
O austero evangelizador encontra o solerte
diabo fabulador (que tanto arrenegara) no meio do redemunho, rende-se e sela o
pacto. E é por isso que A sonata a Kreutzer, esse texto exasperante, perturbador
e feroz, resiste até hoje, mudem-se os tempos, mudem-se as vontades.
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Muito antes, em 1859, aos 31 anos, ele
escrevera uma belíssima novela sobre o casamento, instituição que ele
anatematiza tão apocalipticamente em A sonata a Kreutzer: A felicidade conjugal,
um tour de force em que ele exercita uma narrativa em primeira pessoa sob
o ponto-de-vista da esposa, a jovem Macha, que se apaixona e se casa com um
homem quase vinte anos mais velho.
É através das impressões e reflexões de
Macha que o leitor acompanha uma
profunda e alquímica transformação de sentimentos, mas que ocorre em filigrana:
temos as diversas nuances que constituem a “realidade” dos sentimentos. O amor
romântico de Macha e Sierguei Mikhálitch morre e, como ela diz, «não tem
mais força nem suculência».
O que sobrou? «Sobrou o amor», isto é,
a felicidade conjugal, como conclui a narradora, num dos mais belos finais já
escritos: «…terminou o romance com meu marido; o sentimento antigo
tornou-se uma recordação querida, algo impossível de trazer de volta, e o novo
sentimento de amor aos filhos e ao pai dos meus filhos deu início a uma nova
vida, de uma felicidade completamente diversa e que ainda não acabei de viver».
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É
póstumo o admirável O Diabo, embora Tolstói começasse a escrevê-lo em
1889. Nele, a obsessão sexual opõe-se à obsessão ética: Ievguiêni Irtiêniev,
para não ficar “na mão” em sua vida rural, transa com uma camponesa casada, sob
os olhares complacentes de todos (afinal, é o patrão), interrompendo a ligação
ao se casar. Irtiêniev percebe, porém, que não consegue se livrar do seu desejo
por Stiepanida: «Não conseguia parar em casa e, estivesse no campo ou no
bosque, no jardim ou na eira coberta, não só o pensamento, mas a imagem viva de
Stiepanida o perseguia de tal forma que só raramente ele a esquecia. Mas isso
não era nada; talvez pudesse superar esse sentimento, mas o pior era que antes
ele passava meses sem vê-la e agora a via a cada instante».
Temos dois finais para essa contrapartida
de Felicidade conjugal: num deles, Irtiêniev se mata; no outro, assassina
Stiepanida. Seria muita ousadia minha ter a convicção de que dificilmente
Tolstói publicaria a segunda versão, por ser ela inconvincente? Da maneira como
nos é apresentado, Irtiêniev é do estofo moral de Andriêi Bolkonski (Guerra e paz), de Liêvin (Anna Kariênina) e de Stiepan Kasatski, protagonista
de Padre Sérgio, o qual, por orgulho, é capaz de mutilar-se (corta o
indicador com um machado) para não pecar e destruir sua reputação como eremita.
Diante do dilema que se apresenta para Irtiêniev, e com o sentimento de orgulho
que o domina (como aos outros), a única saída lógica e verossímil é o suicídio.
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Kholstomér (terminado em 1885)
e Falso cupom (1904) são duas obras-primas relativamente longas,
romances encapsulados, por assim dizer.
Em muitos trechos da obra tanto de Tolstoi
como na de Dostoiévski (basta lembrar de Crime e castigo), cavalos são
maltratados ou esgotados até a morte. Em Kholstomér conta-se a
história de um cavalo velho que mistura decadência e majestosidade. Esse rei
Lear equino é contrastado a um antigo dono, outrora belo e riquíssimo, agora
arruinado e repulsivo. Tolstoi faz o próprio cavalo contar sua vida, que serve
como um comentário ao mundo humano, cheio de crueldade, egoísmo e sobretudo
inutilidade.
Após narrar o horripilante esfolamento de
Kholstomér, mostra-se a morte de Siepukhóvskoi, o ex-dono: «Depois de muito
andar pelo mundo, comer e beber, o corpo morto de Siepukhóvskoi foi recolhido à
terra. Nem a pele, nem a carne, nem os ossos serviram para nada» (ao
contrário do cavalo, embora a descrição detalhada dessa “serventia” só instigue
no leitor um sentimento de repulsa pelo ser humano).
Falso cupom2 também joga o
leitor num mundo de corrupção, violência e degradação, só que com a
contrapartida evangelizante que norteou a fase final de Tolstói. Assombra a
perícia com que ele movimenta um imenso número de personagens (a partir da falsificação
do cupom por dois adolescentes), que se estendem por toda a Rússia e cujas
vidas vão se entrecruzando num enredo no qual abundam condenados dos mais
diversos tipos (por sublevação, assassinatos, roubos, terrorismo). Quem acha
que a violência extrema é uma chaga da atualidade, basta ler Falso cupom para
se curar dessa ilusão: poucas vezes se concentrou em tão poucas páginas tanta
barbárie.
Há, por exemplo, a figura aterradora de
Stiepan Pielaguiêiuchkin, que viveria muito bem na nossa época em que se
incensam os serial killers: «a lembrança daquele assassinato não só
não era desagradável, como ele ainda recordava a chacina várias vezes ao dia.
Agradava-lhe pensar que podia fazer a coisa tão bem-feita, com tanta
habilidade, que ninguém descobriria nem lhe impediria de repeti-la com outra
pessoa. Sentado à mesa de uma taberna e tomando chá e vodca, observava os
transeuntes com um só pensamento: de que maneira matá-los».
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Três mortes (1858) e Depois do baile (1903) são curtos e mais facilmente enquadrados como “contos”. O
segundo apresenta uma estrutura típica dessa época: numa roda de discussão,
alguém narra uma anedota que tem a ver com o que está sendo discutido (o homem
é produto do meio?). Um dos membros da roda, Ivan Vassilievitch, mostra como se
libertou do meio que faria dele um militar e marido de sua amada, Várienka.
Depois de entusiasmar-se com a figura do pai dela (um coronel) num baile
memorável, Ivan presencia a maneira como tal pai encantador manda açoitar um
desertor. O problema é que a amada e o pai associam-se inapelavelmente na sua
mente, como já acontecia no baile: «Pelo pai dela… de sorriso amável
parecido com o dela, eu sentia naquele momento uma espécie de sentimento misto
de enlevo e ternura»!!?? O título dá bem a medida da reversibilidade irônica
que sustenta a história.
Três mortes é um dos marcos da
obsessão de Tolstói com a morte, um dos aspectos capitais da sua obra. Temos a
morte de três seres: uma dama da sociedade, um cocheiro e uma árvore. A árvore
é cortada numa solitária manhã na floresta, o cocheiro morre em meio à
indiferença da isbá de uma estação do posto de carruagens, com gente entrando e
saindo, a cozinheira trabalhando, e mesmo cercada por parentes, médico e
sacerdotes, isto é, por todos os signos de seu status social, a dama enfrenta a
mesma solidão diante do “acontecimento supremo”, ou melhor, uma solidão
pior, porque reforçada pela inautenticidade.
O conto também revela sua aversão
fisiológica à morte, reiterada várias vezes. Nenhum outro autor foi capaz de
dar uma ideia tão física da extinção pessoal: «Na mesma noite, a doente
era só corpo, e este corpo jazia no caixão, na sala do casarão…A luz viva das
velas caía dos altos candelabros de prata sobre a fronte cérea da morta, suas
pesadas mãos de cera sobre as pregas da coberta que delineavam espantosamente
os joelhos e os dedos dos pés».
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Em 1980, quatro anos antes de morrer,
quando todo mundo esperava o aparecimento do mais-que-anunciado romance, Preces
atendidas, Truman Capote lançou a inesperada coletânea Música para Camaleões,
em cujo prefácio afirmava que gostaria de «ser simples, claro com um riacho no
campo», e ao mesmo tempo estava perseguindo uma forma nova de texto literário,
onde pudesse combinar tudo o que aprendera praticando seu ofício, como
prosador, roteirista, jornalista, ensaísta: «Um escritor precisa ter
todas as suas cores, toda a sua habilidade disponível na mesma paleta para
misturar e aplicar simultaneamente. Mas como?».
Sem desmerecer Capote (um grande escritor),
esse seu dilema já fora solucionado no derradeiro opus de
Tolstói, Khadji-Murát, na qual ele trabalhou anos a fio, levando os
manuscritos para todos os lados, inclusive na fuga patética, que ocasionou sua
morte, aos 82 anos, em novembro de 1910.
Publicado postumamente, esse romance tem
cerca de 200 páginas, mas foram encontradas mais de duas mil páginas de rascunho
e versões preliminares. Trata-se de um Guerra e paz em ponto
minúsculo e no entanto todas as cores da paleta tolstoiana foram misturadas e
aplicadas simultaneamente. E ainda assim temos a impressão de um texto simples
e claro, onde se parece ter atingido uma primordialidade bíblica ou de tragédia
grega. Há uma atordoante referencialidade no texto, uma materialidade do mundo
gritante na representação, porém há também algo descarnado, um sentimento de
que tudo é simbólico, eu diria mesmo emblemático, pois se avizinha do essencial
ou que entendemos como tal.
A ação se passa em 1851-52 na Chechênia,
na mítica região do Cáucaso, dominada pelo império russo, o qual tem de
enfrentar a resistência e insurreição da população muçulmana, motivada, como
sempre, por uma noção de “guerra santa” (no texto, khazavát). Khadji-Murát,
por desavenças com o líder supremo, Chamil, que mantém sua família como refém,
bandeia-se para o lado dos russos. E esse homem façanhudo, célebre pela sua
valentia e engenhosidade, e pelo orgulho feroz, de repente é um aliado com o
qual não se sabe muito bem o que se fazer e como utilizar.
A “traição” de Khadji-Murát
aciona também um caleidoscópio que percorre os mais diversos estratos sociais,
do czar até o mais humilde soldado, de uma forma quase inacreditável se não conhecermos
a obra final de Tolstói e se pensarmos também nas vastidões narrativas
de Guerra e paz e Anna Kariênina. Mostra-se de forma
contundente a estupidez da guerra, a maneira insensível e insensata através do
qual Nicolai I (que Tolstói desprezava) impõe sobre os costumes e a fé de
outros povos a tirania russa (o que nos faz lembrar outro império tão arrogante
quanto, em nossos dias). Para isso, o czar não se detém ante o desastre
ecológico, ordenando o desmatamento deliberado e contínuo da região chechena
como forma de expor os focos de rebelião. As variegadas cores da paleta
de Khadji-Murát também revelam o sofrimento dos animais à mercê da
humanidade e de suas necessidades bélicas.
Um dos momentos mais pungentes e
reveladores do relato se dá quando Tolstói nos apresenta um dos inúmeros
personagens da sua pequena narrativa, o oficial Butler, mostrando-nos sua
alegria de viver (apesar de uma tendência fatal para o jogo), seu senso de
camaradagem e o estímulo proporcionado pela “aventura caucasiana”. Só que a
companhia do alegre Butler, sem que ele se dê conta, assola, massacra e
conspurca (no sentido religioso) uma aldeia na sua passagem.
Assim, através de pequenos incidentes e da
figura grandiosa e trágica, mas basicamente ambígua de Khadji-Murát, que pode
ser tomado como um traidor ou um herói, como no conto "Tema do traidor e do herói", de Borges (só que este nunca teve energia e vivacidade suficientes
para compor um relato como o de Tolstói, malgrado tenha orbitado à volta desse
universo épico em vários de seus textos), o maior de todos os escritores que já
existiram, na sua obra-prima derradeira consegue um efeito mágico: o Cáucaso
vira o cosmo. Nada mais nada menos.
Notas
1 Senhores e
servos (o título seria melhor traduzido no singular, Senhor e servo ou
Amo e criado) é, em certa medida, o contraponto ao tenebroso Ivan Ilitch ao
abordar a morte de uma forma mais redentora.
Trata-se da história de um ganancioso
proprietário que deseja fazer um negócio da China e sai num dia de nevasca com
seu servo para efetivá-lo. Perdem-se no caminho e, com a chegada da noite e o
frio intenso, a morte é certa. Temos, mais uma vez, uma situação-limite:
Vassili, o senhor, morre aquecendo com seu corpo Nikita, o servo: «Compreende
que é a morte e não se sente desolado. Lembra-se de Nikita, que está debaixo
dele, aquecido e vivo! Parece-lhe que ele, Vassili Andréitch, é Nikita, e que
Nikita é ele, e que sua própria vida não está com ele e sim Nikita… E lembra-se
do seu dinheiro, do seu armazém, da sua casa, das vendas e compras…É incompreensível
como aquele homem que se chama Vassili dava tanta importância a tais bagatelas».
2 Já
traduzido, também, como A cédula falsa e Nota falsa.
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