A imaginária, de Adalgisa Nery
Por Pedro Fernandes
Adalgisa Nery. Arquivo: Candido Portinari |
Adalgisa
Nery pertence, por uma razão sobre a qual tentarei descobrir ao longo dessas
notas, ao panteão dos nomes esquecidos da nossa recente literatura. Esquecida
não no sentido de ser uma escritora menor ou porque deixe de figurar entre as
principais távolas literárias (sobretudo as antologias poéticas); esquecida porque,
entre os estudantes de Letras, público para o qual a literatura é (ou pelo
menos deve ser) convívio constante, a obra da escritora é totalmente desconhecida.
Essa afirmativa, apesar de não ter passado
pelo crivo de uma pesquisa com o público sobre conhecer ou não conhecer a
escritora carioca, tem seu ponto de partida em três situações concretas: a
primeira, pela própria experiência como estudante de Letras. Na época nunca sequer o
nome de Adalgisa foi mencionado numa aula de Literatura Brasileira. A segunda,
pela escassez de estudos acadêmicos sobre a obra. É óbvio que esse dado é
significativo para reforçar a primeira constatação em relação a outros cursos
de Letras país afora. E a terceira, foi levantada pelo Affonso Romano de
Sant’Anna num texto de 1988 (reproduzido na reedição agora publicada em 2015
pelo selo José Olympio / Grupo Editorial Record). “É muito estranho que as
histórias da literatura brasileira não façam qualquer menção a Adalgisa Nery
(1905-1980). Nem como poetisa nem como ficcionista”, abre o crítico o seu
texto. Afirmação, aliás, que renova o silêncio em torno da obra da escritora conforme denunciado no primeiro ponto, visto que, grande parte dos compêndios de história da
literatura datam da época (ou são anteriores) ao texto de Romano de Sant’Anna.
Pelo meu
espírito de curiosidade ou pela síndrome de rato de biblioteca que nutri desde
quando entrei no curso de Letras (tema sobre o qual citei diversas vezes desde
os primórdios do Letras in.verso e re.verso) escapei da estatística do
desconhecimento pelo contato que tive com uma antologia de poesia, entregue às
intempéries do tempo, de 1962, editada pela mesma José Olympio. Era Mundos oscilantes. E pelos dados
bibliográficos recolhidos na edição de A
imaginária noto que vinha com texto de Geir de Campos (a edição que
consultei já estava nua dele) e a reprodução de um retrato de Adalgisa feita
por Candido Portinari. Era a única imagem que tinha dela e na web mal pude encontrá-la o que levou, depois
desse encontro, e de copiar um texto com informação biográfica sobre a
escritora, não conseguir ter nenhuma reprodução de imagem sua aqui no blog (era
2008 / ver final do texto). Em nenhum momento encontrei com outra obra de Adalgisa e a reedição,
tanto tempo depois, de A imaginária,
logo chamou-me atenção porque era um duplo reencontro: um, com aquela escritora
que conhecia esparsamente sua face poética e sobre a qual continuo em preferência em relação à face de romancista; outro, o de constatar sua obra em
prosa.
Não há
qualquer esforço de elaboração estética que possa servir de empecilho à leitura de A imaginária, mas a leveza do texto não
pode, de maneira nenhuma, ser confundida com uma narrativa simplista. Talvez
seja a simplicidade do texto e o modo como a escritora constrói uma narradora
de forte apelo intimista, naquele fluxo de exposição do acontecido e
levantamento de uma opinião sobre uma diversidade de temas sobre os quais se vê
impedida de opinar publicamente, aquilo que prende a atenção do leitor e o leve
a relevar algumas passagens um tanto repetitivas e enfadonhas. Não falta no
desenvolvimento dessa narrativa segmentos que eu chamaria, influenciado pela
força de uma Clarice Lispector, de instantes de pura epifania, ou
instantes-síntese, únicos, produzidos pela exegese da reflexão que enforma a narração.
O título A imaginária funciona como se um
designativo que substitui o nome da personagem principal, a que vivencia e
conta os acontecimentos de sua vida desde a infância à morte de seu
companheiro. Berenice é a imaginária; termo que não deixa de se relacionar com
a ideia comum ao tempo de Adalgisa, quando ainda muito das atividades sociais
eram negadas às mulheres, e à elas sempre foi crível que a característica de ser mais
imaginativa a diferenciava da escrita dos homens. Cito o tempo da escritora, mas tanto
depois de as mulheres alcançarem certo espaço social (e a própria Adalgisa
esteve à frente de algumas dessas conquistas), ainda é uma medida vez ou outra
recorrente num comparativo (ao meu ver desnecessário) entre uma literatura feminina e uma literatura
masculina.
É possível que, privada do exercício da palavra, as mulheres
tenham sido as precursoras de uma narrativa de cunho mais introspectivo, mas
daí reduzir-se nesse esquema é, como toda forma de redução (termo usado aqui
com o sentido de diminuição, rebaixamento), mais um dos preconceitos enraizados
numa cultura desde sempre administrada pelo macho. Assim, se Adalgisa recorre ao lugar comum
atribuído ao termo imaginário também o ultrapassa, recobrando que a forma
literária é (e sempre) vivência e imaginação; isto é, não é um mero atributo da
mulher e nem é o imaginado algo menor no panteão das formas literárias porque,
afinal, toda obra artística tem aí seu lugar. Também utiliza o termo-título
para designar seu propósito de autorreinvenção (“Sou uma desassociada de mim
mesma”) construído por um romance de forte inclinação autobiográfica.
Assim, vale
muito a recorrência de uma narradora sempre atraída para um mundo, não diria
distanciado, mas formado não apenas por aquilo que se deixa visível ao olho
comum, mas é produzido de uma inquietação frente a natureza – temperamento
presente na vida de qualquer criança e que vai aos poucos sendo desfeito pelo
mundo desprovido de imaginação dos adultos ou o mundo que se quer regrado
apenas pela sisudez da razão. É contra esse mundo pobre, aliás, que a narradora
se debate e luta por preservar quando transmuta os objetos ou o mundo físico
visível pela extensa quantidade de metáforas com as quais se veste para
descrever a si e o seu entorno. É nessa ocasião que o leitor encontra a prosa
de Adalgisa Nery rarefeita de uma materialidade poética da qual não se afasta
na prática de um gênero tido como mais objetivo. Nem podia, é verdade, porque
estamos lidando com um material que é pura natureza subjetiva. Mas, quanto
dessas formas não foram tornadas em matéria sem força expressiva porque o
interesse de quem narra descamba para um território da lógica não receptível
pela subjetividade?
Mas, logo no
início do romance, essa narradora nega-se a fazer uma autobiografia. Nega e
cumpre. Porque, ainda que tudo aí se cruze na forma com um narrativa do tipo e
as ações correspondam muito proximamente às vividas pela própria escritora (a
perda da mãe quando criança; a passagem pelos colégios internos e a
insubordinação aos mandos das freiras; a convivência perturbada com a madrasta;
o casamento precoce; o nascimento do primeiro filho; a luta com os da família
do companheiro, todos entregues aos disparates da loucura geniosa; a admiração
pelo companheiro e a sua morte quase como uma alforria dos deuses para uma
mulher que esteve até então agarrada aos fiapos de seu imaginário), A imaginária é um misto de diário sem
data ou interceptado pelos tons de um memorial sobre a vida da narradora.
Só num
memorial, o autor, além de se expor também
ensaia a construção de um pensamento sobre aquilo que lhe cerca, ou, por que
não dizer, reconstrói o mundo à sua maneira. Beatriz não deixa de perscrutar
sobre uma série de temas caros ao seu tempo – há um retrato social e político
de um Brasil tomado por uma série de reviravoltas e sobre as quais a narradora
não se omite em emitir uma opinião sobre, afinal, todo indivíduo não é apenas
os fatos de sua vida pessoal, mas aquilo que se passa no interior das formações
coletivas, ainda que sua compreensão não dialogue com essa relação
eu-coletividade: “A verdade é que todos nós vivemos exclusivamente para nós
mesmos”; “O bem-estar da coletividade não depende da mudança de um grupo de
homens incompetentes por outro tão deficiente como o que foi alijado. Todos os
sistemas serão experimentados mas nenhum dará resultado compensador desde que a
pessoa humana não se aprimore na sua estrutura moral”.
Essa constatação
serviu para me desanuviar de uma certa predisposição indesejada apresentada depois
de algumas leituras sobre a relação da escritora com o regime de Getúlio
Vargas. A questão vem à superfície, claro, pelo dado de aproximação entre a
vida narrada por Berenice e a biografia de Adalgisa. Inegável, pelas confluências
acima citadas, nota-se a formação de uma compreensão política da escritora (ao
menos em A imaginária) que destoa de
uma defesa sobre um ou outro regime. Nesse ínterim, a narradora defende uma
terceira via, que é a da humanização. O propósito de que a raça humana possa
construir uma vida em harmonia com base na coletividade, desejo desde a aurora de nossa
espécie, é, na visão de Berenice algo que nunca deu certo.
Fora isso, o
romance ora reeditado no instante em que perscruta o ir e vir da memória de
alguém que está num tempo distante do rememorado, traz à superfície o contato com
um Brasil profundo, atravessado por uma cultura diversa e marcado por uma
complexa relação de classes (como é averiguado reiterada vezes pelo contato da
narradora com os vizinhos nos diversos endereços onde viveu). Se o indivíduo é
sua história pessoal, do grupo, é também as marcas indeléveis cerzidas pela
cultura; assim, é pelo contato com as histórias de assombração, por exemplo,
que a menina Berenice aguça sua já marcada sensibilidade sobre as coisas ou
compreende melhor a confusão de pensamentos sobre si e o mundo através do
atrito das diversas almas que pode carregar um homem. Ainda nesse ínterim, é a
constatação que pertence a uma condição social inferior a de um certo vizinho
abastado, o que leva a compreender a riqueza (centrada no acúmulo de coisas) como
um dos males da sociedade moderna.
A imaginária reúne ainda muito
claramente um processo de libertação da mulher de sua condição silenciada pelo
uso pleno da palavra. Várias são as passagens no romance que respondem por essa
constatação (culminando com o próprio livro); em toda parte Berenice é a
obrigada a calar, a incapaz de registrar com a fala o amor que nutre pelo pai,
a incapaz de vencer os desmandos da madre superiora, a que ouve calada o
próprio companheiro chamá-la de apêndice desprezível tão logo os caminhos
apontem para tanto. Desse modo, a escrita, no tom de um desabafo através da
qual a própria narradora se enxerga como um séquito inferior, esforçada por
vencer a condição de pouco inteligente a qual lhe foi delegada desde pequena, permite o uso
franco da contemplação ou ordenação do pensamento como prova contra a crueza da
mulher desvalida conforme reza a cartilha da cultura de seu tempo.
Com traços
de um romance de formação, Adalgisa Nery não deixa de marcar sua narrativa com
aquilo que melhor define o gênero: compreender o processo de construção de uma
mentalidade da personagem e sua percepção sobre seu lugar no mundo. Do romance,
experimentado apenas em duas ocasiões em sua carreira literária – neste A imaginária (cuja edição data de 1959)
e em Neblina (de 1979) – também não
se esquiva de construir uma história de amor. É evidente desde sua aproximação
com esse vizinho bailarino, à primeira vista de família muito regrada, mas
contra quem se manifestam pai e madrasta.
Se o casamento lhe deu a alforria da
vida que levava em casa e deu ainda a possibilidade de concretização desse amor
adolescente, é nele onde se processam suas maiores amarguras, visto toda sorte
de humilhações a que é submetida pelo companheiro em relação ao envolvimento
extraconjugal com outra mulher casada e, claro, a convivência com a loucura da
sogra e sua entrega a uma ordem religiosa sufocante. De modo que a morte do
companheiro é recebida pelo leitor (se não totalmente pela narradora que guarda
um gesto de respeito pela história do homem) como uma possibilidade de
libertação da mulher.
Autora de
uma obra tão rica e significativa para a literatura nacional, reconhecimento
que foi registrado por nomes como Jorge Amado, Jorge de Lima, Murilo Mendes (um dos que estiveram
no círculo de Ismael Nery e responsável por incentivá-la às letras), Carlos
Drummond de Andrade, entre outros, a única explicação para o silêncio em torno
da obra de Adalgisa se justifica pelo carma atribuído pelo primeiro companheiro
(e recobrado em A imaginária): o de
ser mulher. Num panteão construído por homens é evidente que o esquecimento de
um nome feminino só se justifica através dessa ordem patriarcal. Mas, e a reedição
da obra logo demonstra isso, esses esquecimentos (que são parte daqueles fingimentos
do desconhecimento, isto é, sabe-se
que a obra existe, mas é preferível acreditar que ela não sobrevive à crueldade
do tempo) logo poderão ser desfeitos. E não é porque Adalgisa é uma a mulher e
a ordem mundial está, ainda que tomada de forças opositoras, cada vez mais
abrindo-se para o lugar delas; e sim porque foi sincera na construção de uma
obra capaz de resistir às intempéries do tempo. E a boa obra sempre tem razão
sobre qualquer dicotomia.
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