A cidade, os cachorros, o militarismo e o tempo
Por Rafael Kafka
Em Conversa no catedral, Mario Vargas Llosa desenvolveu, por meio de
uma narrativa brilhante, única, um processo de investigação existencial e
estética do período fascista peruano. A ditadura de Odria foi muito bem
representada nas idas e vindas temporais das conversas entre Ambrosio e
Santiago em um bar com nome de local sagrado, por meio de uma narrativa a qual
não se preocupa apenas em promover um enredo de forma meramente verbal, mas
desde o começo se compromete em prender o leitor por todos os seus sentidos, e
em todos os sentidos de leitura possíveis, em uma experiência arrebatadora de
leitura.
Já em A festa do bode, sem tanto atrevimento, mas ainda assim com
genialidade, vemos a ditadura que tomou conta da República Dominicana por
diversas décadas retratada com riqueza de detalhes em três planos narrativos os
quais visam a dar conta da figura do ditador Trujillo, da tentativa de
derrubá-lo do poder arquitetada por alguns civis insatisfeitos e da história de
uma pessoa cuja vida foi profundamente transformada pelo regime militarista.
Llosa, somente por essas duas
obras lidas por mim, transforma-se em um autor muito indispensável no tocante a
entender o processo de memória, mesmo que ficcional, para entendermos os abusos
sofridos por determinado povo em determinado período de sua história. Além
disso, com o grande autor peruano, percebemos como a filosofia militarista pode
ser nociva no sentido de piorar demais as mazelas de um sistema social extremamente
coisificador dos seres, em especial das mulheres. (O que muito me causa
perplexidade em de parar com a atual posição política de direita do autor, algo
que ainda preciso investigar mais para um dia tecer comentários acerca.)
Nestes dois textos, Llosa expõe
de forma mais social o problema do militarismo e de sua formação intelectual,
se podemos falar assim, que desumaniza, endurece os seres, para torna-los
criaturas aptas a respeitar qualquer tipo de ordem. Em A cidade e os cachorros, já vemos essa filosofia em germe, no
laboratório pedagógico de uma escola militar, a Leôncio Prado, que, reza a
lenda, realizou um verdadeiro ritual de queima de mil e quinhentos exemplares
do romance de Vargas com o intuito de expurgar dali a marca desse autor bastante
persona non grata ao que parece.
Em A cidade e os cachorros, temos a mesma preocupação de Llosa em
fazer os seus leitores envolverem-se profundamente com a leitura. Para isso,
ele cria três planos narrativos para narrar as vidas dos personagens que compõem
a trama do enredo. Por meio do recurso do flashback constante, com dois dos
focos narrativos em primeira pessoa, Llosa vai, no melhor de seu estilo,
criando enredos que se entrecruza e se complementam, exigindo do leitor atenção
e paciência para encontrar as pistas que complementam os fatos vistos e
narrados na história. Dessa forma, descobrimos apenas no decorrer da história
quem são os personagens que narram em primeira pessoa a mesma e descobrimos
também que uma mesma mulher pode estar envolvida em um assassinato,
supostamente causado pela denúncia de um crime dentro da escola, ao mesmo tempo em que se configura um
triângulo amoroso bizarro com um dos vértices sempre se modificando.
O enredo é centrado nas figuras
de Alberto, Ricardo Arana e Jaguar. Os dois primeiros são conhecidos pelas
alcunhas de Poeta e Escravo enquanto o último não tem seu nome revelado no
decorrer do romance. Alberto tem vocação para escritor e é enviado para a
escola após se desiludir amorosamente com uma garota de nome Helena e ter uma
nota baixa que culmina com a decisão do pai em levá-lo para o colégio militar,
com a missão de transformá-lo em homem. Já o Escravo é filho de uma família
problemática e entra muito a contragosto na realidade militar. Por conta de seu
temperamento sensível, sofre diversos tipos de abusos das pessoas de sua seção
e das outras, em especial de Jaguar. Este último é o que melhor representa o
sentimento de vingança que permeia toda a realidade do Leôncio Prado e conforme
entendemos melhor o seu passado passamos a entender de que maneira a violência
da caserna apenas calcou mais profundamente todo um desejo de, pela força,
dominar os demais.
Llosa me parece um escritor
muito ambicioso no tocante à produção de seus romances. Eu o imagino como
alguém que deve ir a campo para entender os mecanismos políticos existentes por
trás dos temas os quais quer abordar em seus romances. Quando li Conversa no catedral, fiquei espantado
com a qualidade da narrativa e com a imensa quantidade de detalhes sobre os
bastidores do poder militarista peruano. Nesse sentido, creio que A cidade e os cachorros tenha dado um
pouco menos de trabalho, pois o seu enredo gira ao redor da escola e das
idiossincrasias de uns três personagens. Ainda assim, e por isso eu o acho um
autor grandioso que cada vez mais supera o carinho tido por mim em relação a
outros autores como Cortázar e Saramago e mesmo Gabo, ainda assim, eu dizia,
Llosa não se contenta em fazer algo simples, fechar-se no plano do ser para-si
dos seus personagens, procurando sempre mostrar como essa síntese viva entre
indivíduo e sociedade pré-condiciona ou condiciona os atos das pessoas.
O retorno ao passado, a
reconstrução das memórias dos personagens, leva-nos a um resgate da existência
de tais seres e nos ajuda a entender de que forma o passado que os levou à
escola se mostra presente em cada gesto deles em sua rotina na escola. O
romantismo de Alberto, que fez seu pai achar um defeito em sua conduta escolar
e mandá-lo para o colégio militar, manifesta-se nas cartas de amor e nas
novelinhas feitas sob encomenda dos colegas que procuram impressionar as
namoradas. A sensibilidade do Escravo, que sempre procurava fugir dos conflitos
com o pai que abalou a sua sólida relação com a mãe, manifesta-se no
comportamento passivo, sempre procurando não ser notado, para evitar ser
pisado, humilhado e ofendido pelos companheiros. A violência de Jaguar, que
desde cedo teve de se envolver com o crime, manifesta-se no modo cheio de
agressividade com o qual ele se impõe em relação aos demais estudantes. O
passado em Llosa adquire uma atmosfera viva, como algo que mesmo tendo ocorrido
já nunca deixa de reviver em cada gesto do ser presente.
Se nos dois romances citados por
mim no começo da história, há um panorama social de dois países marcados pela
ditadura, aqui vemos como tal personalidade nasce. A caserna é o ápice do
universo patriarcal tão bem explorado por Llosa, que mostra com maestria como a
heterossexualidade masculina é um conceito frágil, com a necessidade de ser a
cada minuto auto afirmada. Ademais, mesmo não sendo o seu foco aqui, vemos uma
bela crítica ao modelo tradicional de família, com pais modelos que querem
fazer dos filhos homens, mas os abandonam em dado momento de sua vida enquanto
os mesmos, os viris pais, saem pelo mundo em suas inúmeras aventuras.
Há no romance dois elementos que
muito me tocaram e me levaram a pensar em outras duas leituras minhas. A
pequena cadela Malcruzada, vira-lata que sofre diversos maus tratos dos alunos
e mantém uma estranha relação de amor com Jibóia, um dos alunos da seção de
Alberto, lembrou-me demais a pequena Baleia, de Graciliano Ramos em Vidas secas.Tive até receio de ler outra
cena trágica como a presente ali pelo quinto capítulo do agridoce romance de
Ramos, pois, da mesma forma que Baleia, Malcruzada é um ser que se encontra de
forma absurda em um contexto que não é o seu e ela, ao mesmo tempo que a citada
em diversas partes vicunha, são os elementos mais humanizados, em diversos
momentos, de um ambiente cheio de sentimentos cinzentos e miseráveis.
Outro
elemento é o personagem Gamboa, tenente que cuida da seção dos personagens
citados neste texto e que parece ser um dos poucos que realmente acredita na
missão do exército em ajudar o país a se erguer. Gamboa me fez lembrar de Nascimento,
o capitão de Tropa de elite, o qual realmente acredita que “matar vagabundo” é
o que basta para salvarmos a humanidade do crime. Gamboa acredita no que faz e
isso o torna nobre, mesmo havendo muito de duro em seu modo de agir. Ao menos,
isso o tira do mesmo rol de bandidos fardados que vemos por aí, cuja sede de
sangue e poder são maquiadas com belos discursos de proteção e amor à pátria.
Recomendo a leitura de Llosa a
todos aqueles os quais procurem entender os motivos de por que o militarismo e
a pedagogia não serem bons companheiros. O primeiro quer cidadãos servis,
enquanto a segunda, ao menos em tese e em alguns segmentos, acreditam na
autonomia do sujeito e mesmo em sua rebeldia no sentido de melhorar a realidade
em que vivemos. Além disso, A cidade e os
cachorros, fora a bela experiência estética que contém em si, permite-nos
entender melhor como contextos sociais criam cidadãos pacatos ou criminosos
perigosos e que muitas vezes o tornar alguém mais homem é apenas a
intensificação de um perigo iminente. Por mostrar isso tão bem Llosa,
conseguiu-me, ao final do texto, fazer-me sorrir com a declaração de amizade
fiel de um cara que, algumas páginas antes, confessara ter matado friamente um
colega de seção, por um motivo que a princípio parece óbvio, mas, se prestarmos
atenção, é na verdade mais um trágico final de histórias de amor mal contadas.
***
Rafael Kafka é colunista no Letras in.verso e re.verso. Aqui, ele transita entre a crônica (nova coluna do blog) e a resenha crítica. Seu nome é na verdade o pseudônimo de Paulo Rafael Bezerra Cardoso, que escolheu um belo dia se dar um apelido que ganharia uma dimensão significativa em sua vida muito grande, devido à influência do mito literário dono de obras como A Metamorfose. Rafael é escritor desde os 17 anos (atualmente está na casa dos 24) e sempre escreveu poemas e contos, começando a explorar o universo das crônicas e resenhas em tom de crônicas desde 2011. O seu sonho é escrever um romance, porém ainda se sente cru demais para tanto. Trabalha em Belém, sua cidade natal, como professor de inglês e português, além de atuar como jornalista cultural e revisor de textos. É formado pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará em Letras com habilitação em Língua Portuguesa e começará em setembro a habilitação em Língua Inglesa pela Universidade Federal do Pará. Chama a si mesmo de um espírito vagabundo que ama trabalhar, paradoxo que se explica pela imensa paixão por aquilo que faz, mas também pelo grande amor pelas horas livres nas quais escreve, lê, joga, visita os amigos ou troca ideias sobre essa coisa chamada vida.
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