Teus pés toco na sombra, de Pablo Neruda


Pablo Neruda sai da tumba

Por Manuel Vilas



A publicação do livro Teus pés toco na sombra e outros poemas inéditos, de Pablo Neruda, levam-me a reflexões que espero sejam do século XXI e não do século XX. A primeira que ninguém atenta é que Neruda é uma marca. O segundo é que uma marca não pode deixar de produzir pelo fato de que o fundador da empresa está morto. O terceiro é que a ideia de “obra inédita não publicada em vida do autor” tem que ser reformulada.

Na verdade, Pablo Neruda, assim como Cervantes, Shakespeare ou Dante, é inédito e seguirá sendo inédito para a maioria das pessoas. Poderia reeditar-se Residência na terra sob as mesmas premissas: aparece um livro inédito de Pablo Neruda intitulado Residência na terra, magnífico título, e para noventa por cento dos quinhentos milhões de falantes do espanhol seria uma notícia aceitável. A doença do livro inédito pertence aos fetichismos da alta cultura, mas são irrelevantes para o leitor popular. O que não é irrelevante é a necessidade midiática de voltar a colocar em funcionamento um produto já antigo.

A aparição de um suposto inédito é uma forma de voltar a colocar no mercado uma obra literária que já está no mercado. Os célebres arquivos pessoais do escritor antigo passam agora para o computador que deixou o defunto pós-moderno. Papelaria e tinta de caneta frente aos arquivos de um bom HD. Mas qual é a maneira de revalorizar uma mercadoria que não produz novidades por algo tão anedótico e prescindível como a morte do fundador da empresa. A maneira é meter a mão nos arquivos ou do HD. Pronto. Neste momento, toda a cultura ocidental está comentando através dos meios de comunicação, principalmente, estes inéditos de Pablo Neruda e a consequência é clara: Pablo regressa às páginas dos jornais e sua obra ressuscita.

Um escritor contemporâneo, antes de morrer, deve deixar um fértil HD, claro, se ama seus herdeiros. Quem herdou os direitos de Neruda? Quem vai ganhar dinheiro com esta reaparição de Neruda? Essa é a pergunta, na verdade, a ser feita. E essa é a pergunta que ninguém irá fazer e portanto as palavras contundentes como as que Pere Gimferrer conclui o prólogo em que qualifica estes poemas inéditos de “definitivos e irrefutáveis” valem como nota de valor simbólico para obra. E alguém se pergunta que diabos é um “poema irrefutável”. Quando o crítico quer se colocar pomposo e solene, a adjetivação da literatura é orgástica. E não há muitas opções: “poeta verdadeiro”, “poeta da intensidade”, “poeta da beleza incandescente”, “poeta da inteligência”, “poeta da transcendência”, ou neste caso “poemas irrefutáveis”. Não há mais. E não há ironia nisto, porque todos sabem perfeitamente que a literatura, na atual conjuntura, necessita de campanhas. O capitalismo necessita de campanhas.

Esclarecido isto, direi mais adiante que os versos nerudianos contidos em Teus pés toco na sombra e outros poemas inéditos são literariamente excelentes. Como se vê, sou alguém que tampouco sabe ir muito longe na hora de fazer suas próprias campanhas. Deveríamos saber adjetivar a vida, e isso já bastava.



O livro contém vinte e um poemas inéditos, escritos entre 1952 e 1973, ano da morte do poeta chileno. Darío Oses, diretor dos arquivos da Fundação Pablo Neruda, explica nas palavras de introdução ao livro. A explicação tem seu ponto de intriga. Parece ser que estes poemas “escaparam às revisões de Matilde Urrutia” e que sua edição obedece a um minucioso trabalho de catalogação e revisão filológica, tudo para fazê-lo integrante do rol dos objetos literários e finda por formar uma espécie de afresco mitológico: a viúva do poeta relendo seu companheiro morto com o coração na mão e estes poemas com pernas escondendo-se em alguma caixa da casa do poeta em Ilha Negra, enquanto o porco de Pinochet queria destruir a memória de um escritor universal.

Se Lorca teve Franco, Neruda teve Pinochet. Os dois poetas mais universais das letras espanholas aparecem nas iconografias históricas ao lado de um porco político: isso é a marca hispânica. O mundo anglo-saxão (que é quem concede a fama universal, através de profetas sucessivos, como Harold Bloom, último profeta até a data de estabelecer os cânones internacionais da literatura) necessita, para dar fama definitiva à literatura em espanhol, a aparição de um porco ao lado do poeta. E isso tem sua graça. É original. Oh, poetas em espanhol, busca um porco político se quereis ser universais!


Manuscritos de Pablo Neruda


Estes vinte e um poemas inéditos de Pablo Neruda são acompanhados de algumas cópias fac-similar: folhas que saíram de cardápios e programas musicais dos barcos em que viajava, porque Pablo viajava muito de barco. Os poemas da edição fac-similar estão escritos com tinta verde, a cor que o poeta tanto gostava. Há um poema que leva a seguinte anotação com a letra de Matilde Urrutia: “Dia 29 de dezembro de 1952, 11 da manhã, voando a 3500 metros de altura entre Recife e Rio de Janeiro”. Muito baixo voava esse avião, pensei no instante em que recordava do pobre Carlos Gardel.

Todos os manuscritos empregados nesta edição estão guardados em caixas especiais desenhadas para a conservação do papel. E essas caixas estão depositadas numa estrutura blindada da Fundação Pablo Neruda. Isto tem um toque futurista e de assepsia científica que faz pensar que enfim a custódia do legado dos escritores em espanhol já é tão eficaz ou mais eficaz nos países hispano-americanos que nas universidades estadunidenses, onde desgraçadamente foram parar os arquivos literários que podiam estar muito bem conservados na América Latina. Nesse sentido, a Fundação Pablo Neruda tem um grande mérito. Quanto guarde esse lugar blindado são as palavras de um homem que acreditava no amor. Talvez, essa seja a fascinação que exerce a poesia de Neruda sobre o leitor: uma assombrosa fé no amor humano. Não era uma fé abstrata, mas concreta; a poesia de Neruda está baseada nas mulheres reais que com ele viveu.

Matilde Urrutia morreu em 1985 e, segundo testemunhas muito próximas, morreu feliz porque ia com Pablo. Pode-se acreditar no amor aos vinte anos, inclusive nos trinta. Mas crer no amor aos sessenta ou aos setenta dá o que pensar.

Teus pés toco na sombra e outros poemas inéditos volta a arejar a vida de Pablo Neruda. Foi uma vida dividida entre o amor de três mulheres, embora a gente saiba que foram muitas. Com a primeira, María Antonieta Hagenaar, teve uma filha, que se chamou Malva Marina, e que morreu aos oito anos. Com a segunda, Delia del Carril, compartilhou quase vinte anos de vida. E na presença da terceira, que foi Matilde Urrutia, ganhou o Prêmio Nobel em 1971 e morreu em 23 de setembro de 1973.

Por trás desses poemas ora publicados se desenham mais incógnitas que ultimamente têm expandido a biografia do poeta, como a história de que sua morte não foi devida ao câncer mas a um crime por envenenamento a mando da ditadura de Pinochet. Ignoro que aspecto teriam os restos de Pablo Neruda, mas tenho intuição de que no futuro haverá exumações de celebridades com privilégio privado para a imprensa e escritores VIP e espero que me convidem para de Jorge Luis Borges ou a de Gabriel García Márquez, dado que os ossos de Federico García Lorca são impossíveis de encontrar e seguem sob o escuro solo da Península Ibérica numa aventura underground com final desconhecido. É possível que nunca encontrem veneno nos restos de Neruda, mas, ainda assim creio que Pinochet matou Neruda, lentamente.

Também foi exumado as obscuras situações passionais do último Neruda e vieram a luz os amores que o velho Neftalí Reyes teve com a joveníssima Alicia Urrutia, sobrinha legítima de Matilde. Contam que esta uma vez flagrou os dois na cama. E mais camas deveriam sair na poesia de Neruda, menos que nuvens e oceanos, penso algumas vezes. Talvez, por detrás de algum destes vinte e um poemas não esteja Matilde e sim Alicia e seja isso o que explica terem sobrevivido às escondidas. O que sabemos é que Alicia ainda está viva e confessou publicamente seu envolvimento com Neruda. 

É bom que as lendas acompanhem os grandes poetas. Sem lendas épicas não há mitologia; sem mitologia não há fé nos escritores. Neruda tem dois grandes mitos: o amor e a luta política. Isto é, o amor e a História. Há muitos poetas em espanhol e em exercício que batem na poesia de Neruda. Bom, que escrevam, se eles sabem. Não é fácil construir uma marca. Que construam, se sabem. E não saberão, por uma sensível razão: porque se soubessem não se meteriam com a obra de Neruda.

Este é um livro com poemas que não mereciam ficar guardados. Não é uma recuperação de materiais de segunda. Há um poema especial, o poema 4, muito bonito, muito transatlântico, muito pré-colombiano. Pere Gimferrer, que também o destaca em seu prólogo que é em si mesmo outro poema, um poema que por sua vez é uma rara e misteriosa nota de leitura, que se move entre a filologia e a ficção.

O poema 4 deste livro, poema sem título, mereceria ter um. Tampouco está mal chamar-se o “poema 4”, tem um toque distópico que lhe favorece. É um poema abruptamente nerudiano, é um poema sobre a fundação da matéria. Está cheio de energia, de viscosidade nas palavras, parece uma fornicação com a língua espanhola.  

O poema 4 se inicia com uma mulher que vai “repartindo cinza nos olhos do céu”. Quem é essa mulher? Uma Urrutia está claro que sim. Mas é Matilde ou é Alicia? Nunca saberemos. Também gosto muito dos poemas que relembra as Odes sentimentais. São excepcionais.

Enquanto isso, os enigmas continuarão; não sabemos ao certo por que tardaram tanto em publicar estes poemas. A introdução de Darío Oses poderia ser também uma obra de ficção. Tampouco sabemos por que Neruda esqueceu estes poemas. Acaso não tinha outra escolha que esquecê-los para que Matilde não esquecesse dele? Inclusive poderíamos pensar que estes poemas não são de Pablo Neruda.

Desconhecemos se Alicia Urrutia guarda algumas folhas com mais poemas de nerudianos. Talvez sejam centenas de mulheres chilenas que morreram e tinham entre seus papéis privados poemas de Neftalí, porque Neftalí acabou amando mil mulheres. Poemas que logo esqueceram suas donas. Todos esquecemos coisas no tempo de nossas vidas. Uns, poemas; outros, nada.

Mas, afinal, por que ler estes poemas de Pablo Neruda?

Por Pedro Fernandes

O ineditismo pode ser uma bandeira de marketing para um livro. Mas, em alguns casos, e este de Pablo Neruda é um exemplo, o leitor não deve ser enganado: o poeta jamais gostaria de ver esses rabiscos em mãos alheias. Se essa vontade não foi respeitada que, ao menos se respeite a liberdade de escolha; que o leitor decida ler a antologia não pelo ineditismo mas em busca da razão por que Neruda não publicaria esses versos. E já terá um motivo autossuficiente para a leitura da obra.

Depois, uma obra da dimensão que é a do poeta chileno, a aparição de um livro a mais é sempre, além da certeza dessa fronteira quase sem linha da sua literatura, o reencontro (ou não) com determinadas marcas ou a redescoberta ou ainda a compreensão sobre a ideia de que um poeta não se faz apenas daqueles materiais que decidiu colocar à luz dos leitores. Ainda que alguns textos nessa coletânea destoem da qualidade magistral dos versos de Neruda, há algo que, claro, nunca o destituirá o poeta que é: a possibilidade de encontrar outras chaves de acesso à sua obra, sobretudo, quando são textos que cobrem uma dimensão muito vasta de tempo.

Apesar de tudo – e volto ao encontro do impacto do inédito – sou dos que não reagem com entusiasmo descobertas do gênero porque sempre pulam da gaveta mais garatujas que uma obra de arte capaz de renovar o fôlego de uma obra que não necessita desse eletrochoque. Também tenho comigo a ideia de certo cinismo, sobretudo daqueles que convivem com o espólio do autor, quando se dizem magnificados com a descoberta, porque tenho a impressão de que, novamente estão sendo falsos com seus leitores. Isso é reação comum sempre que encontram algo de um nome famoso e repetiu-se quando foi anunciado esses 21 poemas (caso que é retomado no texto de Alexei Bueno para a edição agora publicada). Acho cínico porque me pergunto, afinal, o que faziam, enquanto catalogavam os restos de papéis. Claro que sabiam da existência dos inéditos! Claro que o leitor comum sabe que inéditos existem e sempre existirão! Não há porque a cara de espanto como quem acha ouro no lixo.

No fim, a edição de Teus pés toco na sombra e outros inéditos vem bem guarnecida; é um prato cheio para os pesquisadores na obra de Pablo Neruda que não têm condições para estar tão próximos aos seus manuscritos como têm esses que fazem cara de espanto e chamam o que viu de descoberta casual. Também para o leitor comum que poderá não encontrar valor numa reunião de poemas com temáticas diversas. Além da introdução preparada por Darío Oses e do prólogo de Pere Gimferrer vale debruçar-se sobre as notas que explicam cada poema, inclusive as condições em que foram encontrados, e que findam por constituir quase uma monografia à parte sobre a própria obra. E, claro, o gosto de rever a caligrafia de Neruda expondo o poema nascido sem ter passado pela forja e, em alguns casos, lidos e revisados, mas, carregados da certeza de que até então, não, não deviam vir a lume. 

Ligações a esta post:
Em janeiro, tão logo a imprensa espanhola divulgou a chegada dos 21 poemas inéditos de Pablo Neruda, o Letras in.verso e re.verso publicou uma matéria sobre as condições do achado e traduziu por conta própria alguns fragmentos da obra; além disso, reproduzimos alguns dos fac-símile no nosso Tumblr (inclusive de alguns não incluídos na edição brasileira). Você pode rever esse material clicando aqui.


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