Steinbeck e a rua das ilusões perdidas
Por Maria Vaz
Confesso que me encontro deslumbrada pela miscigenação cultural e pela
divulgação de ‘cultura’ em pequenos nadas escondidos no quotidiano de uma
cidade que não dorme: São Paulo estranha-se mas não tarda a entranhar-se pela
diversidade, pela novidade eterna, pela oferta e pelas surpresas culturais,
acessíveis a todos que por aqui passam. Foi
assim – num misto de surpresa com felicidade literária –, que sorri, por
exemplo, enquanto comprava um livro novinho, por dois reais, na Estação de metrô
da Sé; foi assim que me perdi na variedade de livros de histórias que fizeram
parte de outras histórias, desta vez, reais; foi assim que fui introduzida no
mundo fascinante dos “sebos” desta cidade.
Destarte, perdida num dos muitos sebos daquela cidade, polvilhados por
poeiras de outros tempos, cruzei-me com Steinbeck, enquanto fui deambulando
mentalmente pela sua “rua das ilusões perdidas”. A verdade é que nunca antes
lera Steinbeck: como pode uma amante da literatura não ter lido um dos grandes
clássicos da literatura internacional? Com o pasmo essencial da ignorância, dei
por mim a juntar ao cestinho mais um livro da Agatha Christie e outro sobre o
pensamento de Pascal: tudo por 5 reais. Pensei: quando é que na Europa,
supostamente desenvolvida, isto vai acontecer? Será que a crise (ou as várias
crises que se sucedem) matarão a cultura acessível a todos? Ou os livros vão
morrer – por ocuparem espaço, por serem caros, pelas desculpas de
insustentabilidade ambiental ou pela reprovabilidade advinda do ‘status quo’ em
comprar livros usados –, cedendo lugar à quase imperativa dinastia do Kindle?
Não sei porquê – nem temos de perceber todos os porquês que nos inundam
a psique –, mas senti que, neste âmbito literário, as ilusões se encontraram:
deixaram o seu ‘quid perdido’ numa pós-modernidade envolta em eficiências e
lucros, em materialidades concretas, em que se perdem a alma e os conhecimentos
mais ancestrais, porque o que importa é o agora e a satisfação de necessidades
meramente físicas de um tempo eternamente presente.
A ilusões positivas voltaram e redensificaram-se na crença, talvez
utópica, de que pode existir uma ‘rua de ilusões’ positivamente inúteis,
imateriais, pouco lucrativas e
insusceptíveis de perda: uma rua de ilusões com capacidade para colorir
realidades sociais insustentavelmente cinzentas; uma rua de ilusões pela
capacidade de criação de uma espécie de universo paralelo em que a criatividade
e o sonho tocam as pessoas mais improváveis, acabando com qualquer ideia de
determinismos sociais sombrios ou em linha recta. Afinal, a realidade modifica-se e melhora-se
pela capacidade de sonhar: um recurso interno de todos aqueles que não se
fecham à crença – que limitam as mentes pela necessidade de se
irresponsabilizarem pela existência de um destino incontrolável ou imutável – e
de todos aqueles que não se rendem a improbabilidades certeiras ou a
redundâncias ontológicas.
Este texto, em que vos escrevo, não se volta o estilo literário
peculiar de Steinbeck, nem para a sua capacidade analítico-descritiva ou de
construção de enredos com um toque de realidade em que as ilusões vão morrendo
pelas desgraças. Não. Este pequeno texto é um elogio a Steinbeck por me fazer
perceber a capacidade que todo o ser humano tem em se superar, a si mesmo ou a
qualquer circunstancialismo material que gere abundância ou desgraça. Fez-me
mergulhar em buscas filosóficas daquilo que seria a felicidade: em pensamentos
que, inarredavelmente, passaram por Aristóteles ou por Séneca. E tudo se deveu
a Mary Talbot, a personagem que me arrebatou com a sua cabeça nas nuvens e o
seu optimismo radiante, que não deixava espaço a sofrimentos motivados por
adversidades.
Posto isto, resta-me deixar-vos as palavras de Steinbeck acerca daquela
personagem carismática. Resta-me isso e o desejo de um mundo povoado de pessoas
como ela: um mundo em que as ilusões sombrias se perdem e se trocam pelo
optimismo ensolarado de uma ou outra ilusão colorida e imperdível. Afinal, quem
sabe objectivamente o que é a realidade?
“Mary Talbot – ou seja, a sra. Tom Talbot – era adorável. Tinha cabelos
vermelhos, com reflexos esverdeados. A pele era dourada, os olhos muito verdes.
O rosto era triangular, com as faces largas, olhos bem separados, o queixo
pontudo. Tinha pernas compridas de bailarina e pés de bailarina, parecia jamais
tocar no chão quando andava. Quando estava excitada, o que acontecia com
bastante frequência, o rosto adquiria um brilho dourado. Sua tatatataravó fora
queimada como feiticeira.
Mais do que qualquer coisa no mundo, Mary Talbot adorava festas.
Adorava oferecer festas e adorava ir a festas. Como Tom Talbot não ganhava
muito dinheiro, Mary não podia oferecer festas constantemente. Por isso,
costumava persuadir as pessoas a dar festas. De vez em quando telefonava para
uma amiga e indagava bruscamente:
– Já não está na hora de você dar uma festa?
Mary tinha normalmente seis aniversários por ano e organizava festas-fantasia,
festas-surpresa, festas de feriados. A véspera de Natal em sua casa era uma
noite emocionante, pois Mary resplandecia. E ela empolgava o marido com o seu
excitamento por festas. (…) Não possuía lindas roupas e os Talbot não tinham
qualquer dinheiro. Na maior parte do tempo, estavam à beira da miséria total. E
quando se encontravam realmente nas últimas, Mary sempre dava um jeito de
promover uma festa. E era bem capaz de fazê-lo. Podia contagiar a casa inteira
com a sua alegria e usava o talento como uma arma contra o desânimo, sempre à
espreita, aguardando a oportunidade de se lançar sobre Tom. Mary estava
convencida que essa era a sua missão, impedir que o desânimo total desse o bote
sobre Tom, pois todos sabiam que ele seria um dia um grande sucesso. De um modo
geral, ela era bem sucedida em manter as coisas sombrias longe de sua casa.”
***
Maria Vaz nasceu em Mirandela a 19 de Setembro de 1990, muito embora tenha vivido toda a infância e início da adolescência em Vila Flor. Aos 11 anos, apaixonou-se pela poesia ao encontrar, por mero acaso, um livro de Alberto Caeiro. A par da poesia e da literatura, é uma apaixonada pelas artes em geral, de entre as quais ressalta a música, dado que tocou clarinete entre os 11 e os 21 anos. Publicou o seu primeiro poema em Março de 2015, numa antologia de poetas portugueses contemporâneos e escreve regularmente no seu blog (“The philosophy of little nothings”). É agora colunista do ‘Letras in.verso re.verso”. Além da escrita, é doutoranda em ciências jurídico-criminais, na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, desde finais de 2014.
Comentários
Embora Steinbeck tenha sido, dentro de muitos círculos, imensamente criticado, ao ponto de o considerarem um 'génio limitado' e até mesmo o detentor do Nobel cujo merecimento pareceu ser dos mais duvidosos de sempre, a verdade é que foi um autor muito acarinhado pelo público americano, tornando-se indubitavelmente uma das suas maiores figuras literárias.
Compreendo as críticas, confesso, mas não deixo de apreciar o seu estilo... Sabes que a minha natureza é essencialmente poética; logo, o romance é um género que só raramente me convence. É uma questão de gosto pessoal, nada mais. No entanto, Steinbeck merece a minha preferência: aprecio romances com fundamentos históricos, mesmo que contenham lampejos de uma escrita mais jornalística... O traço realista é sempre bem definido e a luta por causas sociais, através da sua denúncia, são outras virtudes a apontar. E mais: detinha um humor muito peculiar que só em certos livros se permite captar. É pena...
Espero que o Cannery Row te alimente apetites por outros trabalhos seus... Vinhas da Ira, o grande clássico, O inverno do nosso descontentamento, A lesta do paraíso ou A um deus desconhecido (o meu preferido), entre muitos outros.
Parabéns pelo teu trabalho.
Beijos.
Quanto ao resto, parece-me inolvidável que Steinbeck tenha transcendido uma crítica sempre em busca de perfeições, que realisticamente serão sempre imperfeitas. Na linha do optimismo de Talbot, foquemo-nos no melhor, que o pior já há muito quem avulte. Com certeza, "A um deus desconhecido" constará das minhas próximas leituras.
Uma vez mais, muito obrigada e um beijo!