Rebentar, de Rafael Gallo

Por Pedro Fernandes

Rafael Gallo. Foto: Wilian Olivato


Quando criança, em casa, sempre me contavam histórias sobre um papa-fígado e, com alguma variação, sobre um velho do saco cujo interesse, de um e de outro, era o de enganar e raptar crianças. Nunca soube de alguma família próxima da minha ou distante que tenha sido vítima de uma das personagens dessas histórias. Mas, carreguei comigo para onde fui desde quando andava acompanhado dos pais, e mesmo depois quando sozinho, o medo de ser raptado. Não sei se isso é um medo comum a todas as crianças que, por mais dadas que sejam, sempre têm mais confiança ao lado dos pais. 

Muito tarde descobri que essas histórias poderiam ter sido inventadas ainda no tempo da Ditadura e o papa-fígado ou velho do saco era ninguém menos que um comunista interessado em usar crianças para serviços de má-fé. Claro, a história continuou sendo mal contada porque os raptores não eram comunistas, mas os próprios militares; sabe-se que desde sempre houve um comércio clandestino de crianças para casais que não conseguiam ter filhos e sabe-se ainda (um horror maior) que muitas foram raptadas e submetidas à tortura a fim de entregar culpados de tramar contra o regime e, as que não morreram foram levadas para fora do país ou abandonadas à própria sorte.

O livro de Rafael Gallo não consta um motivo possível sobre o desaparecimento do menino de cinco anos Felipe roubado da mãe depois de um leve descuido numa galeria de lojas; mas, pelo jogo da matemática, o tempo antigo é bastante possível de ser conjeturado pelo leitor como esse tempo da Ditadura, visto que, apesar de precisar por uma indefinição temporal, as descrições sobre a natureza do tempo encontra-se entre um passado aparentemente de tranquilidade e atrasado e um presente cada vez mais tomado de transformações como tem sido desde meados dos anos 1990.

A ideia do romance me parece muito original. Ainda que tenha o perfil de um leitor mediano e pouco conhecedor da extensa quantidade de obras literárias publicadas no Brasil, sobretudo às contemporâneas ao escritor paulista e também a mim, uma vez que eu e Gallo estamos afastados por um curto tempo de idade, não conheço nenhuma obra literária com esse tema. Claro construído da maneira como ele construiu: o drama de uma mãe que depois de trinta anos de buscas pelo filho desaparecido resolve não investir mais em alimentar essa ânsia possivelmente incapaz de ser realizada (não vou, evidentemente, revelar em como acabará esse extenso exercício de abdicação, afinal, o leitor tem o direito de trilhar os passos que trilhei até o fim da trama para descobrir o que eu descobri).

A memória mais imediata que me veio quando li sobre Rebentar foi a do filme Philomena, a mãe que teve, na Irlanda de 1952, o filho recém-nascido roubado pelas próprias freiras num convento para o qual a moça grávida foi deserdada pelos pais. A história é baseada em fatos reais e tem um desfecho surpreendente e aposta numa denúncia explícita sobre a extensa ordem de crimes cometidos pela Igreja Católica tendo como marca, novamente o rapto e o comércio de crianças, tal como fez a Ditadura Militar. Gallo prefere não acusar ninguém; coloca-se pelo ponto de vista único da mãe Ângela e não tem quaisquer informações sobre a causa do desaparecimento de Felipe.



Receio que o interesse do escritor – com certa indeterminação temporal e sem se ater ao outro lado da história, isto é, aquilo que se passou com Felipe, que poderia ter usado da premissa pelo fato de preferir um narrador em terceira pessoa, quem normalmente tem a capacidade de saber o aquém, o presente e o além – seja o de construir uma história universal. E integrar Ângela no rol das personagens femininas com uma conduta que a torna não um retrato sobre a mulher entregue de corpo e alma ao exercício imposto pela natureza (e mantido pela cultura) da mãe que abdica da própria vida em honra ao filho. Nisso, o romancista é também inovador: não construir um romance sobre o drama da busca (embora ele perpasse toda a narrativa como instantes de iluminação para que o leitor não acuse a personagem principal de desrespeito à memória do filho), mas um romance sobre o drama de se desapegar da obsessão pelo reencontro de uma criança cujo traço alimentado pela memória só encontra relação direta com as várias fotografias espalhadas pelo aparador da sala de estar. Aqui, Rafael expõe ainda uma mãe que busca se desapegar das possibilidades desse rosto que, trinta anos depois, lhe é um desconhecido.

Ao citar sobre os instantes de iluminação sobre o passado e ao extenso processo de adaptação de Ângela sem o filho único, cobro que Rebentar poderia se aventurar mais nos regressos de tempo que faz (e falo da construção mesma da narrativa); digo que, apesar da inovação do tema, o autor poderia se desvincular do medo de perder o prumo da coesão temporal da narração. Mas, compreendo que, ao construir um narrador em terceira pessoa (caso pouco comum na literatura contemporânea) limitado ao campo de visão da personagem principal inviabiliza essa possibilidade que melhor se realizaria se o romancista tivesse optado pela narração em primeira pessoa. Nesse caso, o romance possivelmente ganharia novas camadas de tensão e densidade dramática e exigiria um maior trabalho da parte do leitor na construção de um fio narrativo. Isso, no entanto, não acontece e não é nenhum defeito; é que nos primeiros exercícios com uma narrativa mais complexa qualquer escritor consciente se sentirá impelido a praticar certas aventuras. Mas, se é para se aventurar na construção de uma obra como se buscasse reinventar a roda e nesse processo caísse em falso, coisa que acompanho com certa pena nos jovens escritores, Gallo está certo em construir uma obra ‘nos trilhos’. Terá toda uma vida pela frente para sentir-se mais seguro com essa teia escorregadia que é a escrita.

Há ainda uma série de pontos positivos que gostaria de ressaltar com o intuito de dar ao leitor a chance a Rafael Gallo. Rebentar não se descuida de ser um documento (sem o ofício do mero registro) de denúncia social. E cito, não a perda de Ângela, mas da amiga Dora, fundadora do grupo Mães em Busca, que teve o filho também raptado, mas por quem a polícia pouco ou nada fez nas buscas e prefere eleger a desculpa do envolvimento do menor com o crime e em momento algum tem zelo ou consideração pela dor da mãe, uma negra, moradora da periferia, que não tem a quem recorrer se não à polícia. Note que esse episódio funciona como contraponto à história principal – que é sobre um crime que parece ter levado certa comoção social porque foi acompanhado de perto, no início das buscas, pela mídia, mas, escolhido pelos jornais possivelmente porque o caso-Felipe preenche alguns padrões sociais pré-estabelecidos para os dramas expostos pela mídia: é menino branco bem criado por uma família de classe média.

Na construção dessa travessia, Rebentar não se esquiva do exercício simbólico e metafórico (posso ser redundante, afinal toda metáfora é simbólica, sim?); as dimensões de tempo, mesmo sendo um texto que suspende as suas fronteiras históricas, mas não se desvincula das medidas criadas pelo homem para marcá-lo (o relógio que este está em toda parte, os calendários, mesmo as partes do livro estão assinaladas com os meses do ano) e o ir e vir da decisão de Ângela desenhado pelo ir e vir das ondas do mar. O tempo é uma das obsessões contemporânea e confunde-se como significação para o tempo de espera (também uma obsessão) dessa mãe. 

O oceano é metáfora para o oceano de dores; a liquidez da água como o que está em passagem e não é capaz de se apreendido (o que se relaciona, por sua vez, à ideia de tempo tal como deixa transparecer na correta e bem situada epígrafe de Jorge Luis Borges em que converge água e tempo como metáforas sobre a vida). Alguém interessado nessa leitura quase-litúrgica (é assim que compreendo os que se dedicam a pescar símbolos numa obra literária) terão muito o que esmiuçar no texto de Rafael Gallo porque é construído com uma precisão, diria, quase milimétrica entre os acontecimentos e aquilo que os evocam.

Quer outro exemplo? Depois da decisão de não mais buscar pelo filho desaparecido Ângela tem de vender a casa que conservou durante esses trinta anos com o zelo de deixá-la tal como Felipe a conhecera quando pequeno; como os compradores, apesar de se interessarem pelo imóvel, vão desistindo um a um pelo mesmo motivo, a casa precisa de uma reforma, os proprietários decidem pelos retoques que possam tornar o ambiente com a cara dos tempos modernos (olhe, novamente a interposição passado-presente como elemento de tensão narrativa e mesmo poderíamos ter). Essa reforma da casa se confunde com o tempo de reaprendizagem com a vida comum e é interessante o modo como Rebentar constrói essa confluência entre o desapego forçado pela circunstância entre a casa do passado e o desapego do convívio com a ideia do retorno iminente do filho; tudo isso produzido pelo simples gesto de assentar um novo piso na casa – processo de dentro para fora tal como é de dentro para a fora o trabalho de se "conformar com a ausência do roubo da criança".

A reforma, esconde-se sob o drama principal, outro drama, o de um mundo que apesar de todos os apetrechos tecnológicos não consegue estar nos eixos pela invasão constante da desconfiança – isso está na construção do muro que encontre a nova fachada da casa tornada um mausoléu branco sem a visão exterior daquilo que está no interior; está nos seguranças da galeria quando trinta anos depois Ângela retorna a ela, no retorno à escola onde lecionava e a encontra igualmente cercada de seguranças. Isto é, reforça-se a ideia de transição nociva entre um mundo tido inocente, mas de relações mais fiáveis e um mundo controlado e regido pela desconfiança.

Cito, nesse jogo de paralelos, mais uma coincidência que apresenta o rico jogo de interseções do romance. A gravidez da sobrinha de Ângela, quase da idade atual de Felipe que significa a chegada de vida novo no âmbito de uma família há muito encerrada na dor da perda. De certo modo, o filho de Isa significa não apenas uma espécie de sinal da vida (como se dissesse, tal como em Morte e vida severina, de João Cabral de Melo Neto, apesar de tudo o maior dos milagres ainda se repete continuamente), mas uma reafirmação do sonho desfeito de Ângela.

E, gosto particularmente da maneira como Rebentar nos mostra como o trânsito entre uma fronteira e outra do tempo, a depender de qual seja esse trânsito, não é uma via de acesso fácil. No caso específico desse romance o processo é lento e doloroso. O romancista, propositalmente, insiste na dilatação do tempo para que possamos sorver todo exercício de dor dessa mãe em relação ao filho perdido. Até o limite que o próprio narrador em terceira pessoa se vê forçado a abrir mão de sua atuação integral para que apenas possamos ouvir a própria voz de Ângela que irrompe a narrativa e se detém confessar com suas próprias palavras o drama narrado. 

De um ponto a outro dessa travessia, Rafael se beneficia ainda de uma já clássica estrutura da narrativa, que é a forma circular: isto é a abertura do romance é também o seu desfecho e aquilo que o leitor precisa saber está durante o desenvolvimento (ou desenrolar) da trama. Por isso e pelas poucas questões estruturais que elaborei nestas notas é que digo: Rebentar é um objeto arquitetonicamente muito bem construído e só por isso tem seu lugar entre as boas promessas do novíssimo romance brasileiro. Que o escritor tenha fôlego agora é para, como Ângela, desapegar-se dessa história, e, sem a pressa e pressão editorial, e no tempo devido nos trazer outras boas narrativas; apesar de muitos escritores, temos uma extensa parte de aventureiros que, primeiro queimam a chance de largada pela aventura. Rafael Gallo, não.    

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