O paraíso são os outros, de Valter Hugo Mãe
Por Pedro Belo Clara
Muito
provavelmente, a escolha do presente título como mote da discussão promovida
mensalmente neste espaço de literatura causará alguma estranheza entre os
leitores mais versados no trabalho de Valter Hugo Mãe. Afinal, a nossa opção
não recaiu sobre A Desumanização, a máquina de fazer espanhóis ou o remorso de
baltazar serapião, que ao dito autor rendeu, em 2007, o Prémio José Saramago.
Esperamos, no entanto, que ao longo desta “conversa” consigamos elucidar melhor
os nossos estimados leitores no que à opção tomada diz respeito, consolidada
sobre os parâmetros de um nítido critério de diferenciação.
Na
verdade, O paraíso são os outros é uma obra que, em primeira impressão, não
escapará ao rótulo de “livro infantil”, já que se trata de um trabalho
ilustrado em aparência dirigido aos leitores mais jovens. A percepção adquirida
não se poderá afirmar totalmente errada, é um facto, mas tornar-se-ia redutor
restringi-la a um público reduzido. Vejamos porquê.
À
medida que a curiosidade do leitor se for saciando nas linhas deste livro,
imergirá o seu imaginário no pueril universo duma jovem discorrendo sobre um
sentimento de tão nobre expressão como o amor. Sublinhe-se, contudo, o
seguinte: a anterior afirmação em nada visa desprimorar a visão que as crianças
guardam do mundo e demais elementos, pois bem se sabe o quão sábias estas se poderão
revelar no auge de toda a sua inocência e simples modo de ser.
Essa
menina de apurada percepção, portanto, que usa «óculos desde os cinco anos de
idade» e sofre de um «problema de sossego», guiar-nos-á ao longo de toda a
narrativa e suas peripécias, apesar de se encontrar quase sempre «por detrás de
uma janela de vidro». Mas uma personalidade observadora dota-se de grande
qualidades, como em breve se concluirá.
O
texto encontra-se escrito na primeira pessoa e não guarda espaço para diálogos.
A única personagem, além da narradora, que surge no desenrolar do mesmo é a mãe
da dita criança, embora a sua intervenção seja sempre indirecta – dado o
carácter ausente da mesma. Por isso, o livro encerra um conjunto de considerações
sobre o amor, suas variantes, elementos e praticantes, sejam eles gatos,
jacarés ou meros seres humanos. Dentro do cariz meditativo que apresenta, donde
advém o veio criativo mais forte que confere à obra uma digna substância,
poder-se-á até aceitar a ideia de um “livro confessional”, ainda que a ínclita
personagem, a menina que tudo observa, seja fictícia.
O
excerto que agora apresentamos é um simples exemplo seleccionado dentre um rol
de muitos outros que ao longo do livro se poderão encontrar, sendo naturalmente
um auxiliar de elucidação de muitas das ideias que, mesmo sumariadas, foram até
agora expostas:
«O amor constrói. Gostarmos de alguém, mesmo
quando estamos parados durante o tempo de dormir, é como fazer prédios ou
cozinhar para mesas de mil lugares.
Mas amar é um trabalho bom».
Um discurso poético, poderemos dizê-lo, que
não deixará o leitor indiferente à substância que transporta em si, jovial e
leve, não ocultando uma translucidez néscia que os adultos parecem ter já
esquecido. E será certamente essa uma das maiores valências deste trabalho.
Podemos ser levados a considerar, com o
desenrolar da narrativa, um certo enredo ou até um desfecho de peso, isto é, de
significado profundo, capaz de silenciar o leitor ou de simplesmente o deixar a
braços com uma miríade de reflexões, dada a funda implicação, meramente hipotética,
dos argumentos finais. Importa, assim, desfazer já qualquer tentativa de erguer
uma ilusão, pois tal, a seu tempo, não se verificará.
O livro comporta, como antes referimos, um
conjunto de reflexões sobre o amor e as suas variadas formas de expressão,
assumidas pela visão descomprometida de uma criança. Logo, não veremos
desfechos improváveis ou desenlaces de cortar a respiração. Não é esse, de
todo, o género do livro em causa. Apenas ficaremos a braços com a própria
dúvida da jovem narradora, quando confrontada com aspectos sobre os quais nada
sabe graças à sua lacuna existencial – típica da tenra idade que ainda possui,
aspecto esse perfeitamente aceite pela protagonista: «Tenho tudo para ouvir e
ver. Ainda não sei nada».
Portanto, sem prejuízo revelamos que a
promessa de vida que a aguarda num futuro talvez já não muito distante pairará no
desfolhar da derradeira página. Evidentemente, dada a sua juventude, todo um
novo mundo, dotado do seu saldo de rosas e de espinhos, estará ainda por se abrir
diante do seu curioso olhar.
Tenho muitas dúvidas. Quando me apaixonar,
dizem-me, fico logo esclarecida. Aguardarei desconfiada. Não aceito as coisas à
pressa. Preciso de pensar.
Acrescentamos, sem querer desfazer o
entusiasmo na obra, que o excerto anterior apenas conclui o que em determinados
momentos a nossa simpática narradora, sempre imersa no seu fértil mundo de
pensamentos e observações, vai introduzindo na marcha do discurso. Não granjeia
muito sentido, é claro de se ver, um raciocínio que aplica ou extrai os seus
fundamentos de realidades exteriores à nossa.
Um dia, eu e essa pessoa desconhecida vamo-nos
encontrar por algum motivo e uma intuição talvez nos diga que chegámos à vida
um do outro. Eu nem sempre acredito nisso. Mas não posso deixar de estar
atenta.
Poderá ser um livro para crianças, mas na
verdade não se poderá dizer escrito para crianças ou que os “mais crescidos”
não possam dele tirar o devido proveito. Compreende-se isso através da presença
de certos vocábulos que soarão de modo estranho ao ainda restrito léxico da
maior parte das crianças, o que obrigará à inevitável explicação por parte dos
pais ou de quem lhes estiver a ler a dita história. No entanto, ao situar-se
este trabalho numa espécie de “caminho do meio”, isto é, entre adultos e
crianças, qual sólida ponte entre dois universos tão díspares, louve-se o
carácter amadurecido, por um outro lado, com que o livro se apresenta diante do
público mais jovem. Certas palavras poderão ser de difícil pronunciação ou de
sentido ainda oculto, mas não vemos na presente obra um tratamento, digamos,
infantil reservado às crianças. E isso merece o nosso sincero aplauso.
Por debaixo da linha condutora da narrativa,
que como já sabemos apresenta contornos reflexivos sobre um tema em particular,
palpita ao de leve aquela que será, muito provavelmente, a essência genesíaca
deste trabalho. É, aliás, seguindo a sua condução que encontramos a harmonia do
título da obra com a substância que a compõe. Para auxiliar a sua compreensão,
o próprio autor, em nota final, revela a intenção que o assistiu na hora da
criação. Então, descobrimos como este trabalho deveu a sua origem à famosa
expressão de Jean-Paul Sartre: «o inferno são os outros». Ora, lembrando o
título do presente livro não se adivinha complexa a relação entre ambos, ainda
que Valter Hugo Mãe tenha escrito no avesso da sua fonte de inspiração.
edição brasileira de O paraíso são os outros. |
Apresentemos agora parte da explicação que aos
leitores concede: «Este livro surge depois de, no romance intitulado A
Desumanização, reflectir acerca da popular expressão de Sartre. Como acontece
ali, decidi que também esta história seria narrada por uma menina». Pouco
depois, transcreve a passagem que agora reproduziremos de modo também parcial:
«O inferno não são os outros, pequena Halla. Eles são o paraíso, porque um
homem sozinho é apenas um animal».
Compreender-se-á, enfim, um pouco melhor a
substância do mar onde o rio do discurso que constrói a narrativa acabará por
desaguar. Empreendem-se diversas reflexões sobre o amor, sim, e como o mesmo é
sentido e praticado por um número sem fim de seres vivos, tendo por base a
visão de uma jovem bastante expedita mentalmente, mas agora aclareia-se a dúvida
primordial: só, e sem amor, que espécie de ser é o Homem? Será essa a questão
fundamental levantada em surdina por este livro, sendo que a meditação final
certamente debruçar-se-á sobre o tipo de existência que é levada a cabo por
entes destituídos de tão preciosa valência. Pesando todas estas variantes, é
natural que se conclua algo de muito idêntico à premissa lançada em poema, anos
atrás, pela mão de Eugénio de Andrade: é urgente, o amor.
O amor precisa de ser uma solução, não um
problema. Toda a gente me diz: o amor é um problema. Tudo bem. Posso dizer de
outro modo: o amor é um problema mas a pessoa amada precisa de ser uma solução.
Constituirá, para muitos, este livro uma
agradável surpresa. Não se estranha a incursão de Valter Hugo neste tipo de
literatura, dadas as diversas ocasiões em que no passado já o fez, mas a madurez
do trabalho, a determinados momentos, revela-se capaz de despertar o que cada
um de melhor tem adormecido em si. Principalmente, a inocente criança que um
dia foram e agora, graças às estranhas artes da vida, não mais sabem ser.
Falámos em momentos e ressalvamos agora a
palavra escrita. Afinal, trata-se de um modo adequado de encarar a obra: por
momentos, passo a passo, como quem degusta uma prazerosa caminhada por palavras
prenhes de sentido. Embora o discorrer da narradora não apresente quebras
significativas, encontra-se dividido por “momentos de reflexão”, se a tal ordem
quisermos conceder um nome. A própria organização do trabalho também propicia o
efeito, estando o texto disposto de modo fragmentado em sua aparência,
intercalado com páginas exclusivamente reservadas às ilustrações. Ou seja: nas
páginas pares, uma ilustração; nas ímpares, o fluxo do texto apresentado.
Façamos também a devida referência, antes de
encerrarmos a discussão, dizendo que a parte gráfica esteve ao cargo de Esgar
Acelerado, um artista que nos brinda com diversos desenhos de traçado muito
original – donde exala, como não poderia deixa de ser, o amor entre os casais
mais improváveis (haverá fronteiras para o amor?): gato e cadela, lobo e
coruja, pinguim e tigre (entre muitos, muitos outros) –, expostos numa jovialidade totalmente
condizente com o carácter do trabalho que ilustra.
Não tomando esse facto como impeditivo à
expressão da ideia que já antes expusemos, se consideradas todas as vertentes
da obra é justo que se conclua: O paraíso são os outros é muito mais do que um
simples livro infantil. A todos os que se disponham a explorá-lo, a sós ou na
companhia dos mais novos, só nos restará endereçar os pertinentes votos de uma
óptima leitura.
Estou cada vez mais certa que o paraíso são os
outros. Vi num livro para adultos. Li só isso: o paraíso são os outros. A nossa
felicidade depende de alguém. Eu compreendo bem.
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Mães, pais, filhos, outra família e amigos,
todas as pessoas são a felicidade de alguém, porque a solidão é uma perda de
sentido que faz pouca coisa valer a pena.
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