Nelson Rodrigues contra a moral e os bons costumes: "Álbum de família"
Por Alfredo
Monte
Após o sucesso, em 1943, aos 31 anos, com
a montagem clássica de Ziembinski de Vestido de noiva, Nelson
Rodrigues (1912-1980), no mesmo período em que produzia folhetins de
galopante sucesso (Meu destino é pecar, Escravas do amor, Núpcias de fogo), sob
o pseudônimo Suzana Flag, escolheu um caminho suicida, por assim dizer, no
teatro, escrevendo quatro peças desafiadoras e radicais1, das quais
só uma não foi interditada pela censura (Doroteia). Das outras três (Álbum de
família, Anjo Negro, Senhora dos Afogados), a que permaneceu censurada por mais
tempo foi a primeira. Escrita em 1946, foi liberada apenas em 1965 (e
montada apenas em 1967)!
Não era para menos, se atentarmos para a
“moral” da época. Num horizonte dramatúrgico, onde avultavam as comédias e
dramalhões edificantes, e no qual Vestido de noiva já representava
uma experiência audaciosa e revolucionária, uma peça em que todos os
personagens são incestuosos, e abertamente, era uma dose forte demais!
Sejamos sinceros: dada a “moral”, sempre
com aspas, renitente da classe média, ainda o eixo da nossa sociedade, até hoje Álbum
de família causa espécie. Ou talvez não. Devido às peculiaridades do
estilo de Nelson Rodrigues, e do tipo de atuação a que se está acostumado no
Brasil, é muito difícil encontrar o “tom” para suas peças mais radicais, e
dependendo de como sejam encenadas (ou adaptadas), elas se transformam num
produto estranho decerto, bizarro até, mas não inquietante ou perturbador,
porque se abeiram do cômico e do autoparódico, quando não chanchadesco. Veja-se
o caso da horrenda versão cinematográfica (1981), de Braz Chediak, um dos mais
empenhados estupradores das obras rodriguianas nas telas (o outro é Neville
d´Almeida).
Ao contrário da perfeição da estrutura e
das deixas poéticas de Anjo negro & Senhora dos afogados,
Nelson não foi muito feliz na concepção das “ligas” de Álbum de família,
não obstante elas justificarem o título: é tosco o recurso das fotografias
formais e hipócritas do clã familiar e a narração do “speaker” com informações
de coluna social.
Mas, isso é um mero detalhe num texto no qual a ação dramática
é despudoramente alucinante: enquanto uma adolescente sofre as dores de um
parto interminável e doloroso, ficamos sabendo que foi o patriarca da família
respeitável, Jonas, quem a engravidou, deflorador que é de todas as mocinhas da
região («Eu gosto de mulher novinha, novinha»). Casado com D. Senhorinha, ele
já não tem mais desejo algum pela mulher. Seu desejo é pela filha, Glória («Desde
que Glória começou a crescer, deu-se uma coisa interessante: quando eu beijava
uma mulher, fechava os olhos, via o rosto dela!»), e por não poder
satisfazê-lo («Glória, não! Glória é a única — compreendem? — A ÚNICA que escapou!
Glória é um anjo de estampa» — no entanto, o “anjo de estampa” é quem abre a ação
no palco, numa cena de experimentação lésbica adolescente com uma colega de
internato, que acarreta sua expulsão e volta ao lar, num momento crucial),
abusa de todas as que estão ao seu dispor na região (senhor que é), com a
conivência alcoviteira da cunhada, Rute, que odeia a irmã (por não se sentir
desejada: «…toda mulher tem um homem que a deseja, nem que seja um crioulo,
um crioulo suado. MENOS EU!»; Senhorinha replica: «E eu tenho a culpa? Se
você não é mais bonita, eu que é sou culpada?»; e Rute: «Desde menina,
tive inveja de sua beleza. Mas ser bonita assim é até imoralidade porque nenhum
homem se aproxima de você, sem pensar em você PARA OUTRAS COISAS!») e o serve
de forma aviltante.
Enquanto o parto se demora, volta a casa um
dos filhos homens, Edmundo, expulso pelo pai. Os dois também se detestam («Você
sempre teve ódio de mim — desde criança. Você sempre quis, sempre desejou minha morte»),
são rivais no sentido mais edipiano da palavra, pois Edmundo ama a mãe («O céu,
não depois da morte; o céu, antes do nascimento — foi teu útero»), e é
correspondido. Ele propõe a ela a fuga das humilhações a que é submetida pelo
desprezo e desfaçatez de Jonas (principalmente depois que ela teve um amante).
Mas ela ama igualmente um filho com problemas mentais, que vive em estado
selvagem, nu, pelas terras da fazenda, Nonô (caracterizado na lista de
personagens como “o possesso”):
«D.
Senhorinha – Nunca terei coragem de deixar Nonô! Impossível! Não imagina como
ele fica, sempre que me vê, de longe! É uma coisa!
Edmundo –
Você vê muito Nonô? Olha para ele?
D.
Senhorinha – Às vezes, quando saio. Ou, então, da janela!
Edmundo – Eu
não queria que você visse, que olhasse para ele!
D.
Senhorinha – É meu filho!
Edmundo – Ele
anda sem nada… E ele tem um corpo que impressiona até um homem — quanto mais uma
mulher!
D.
Senhorinha – Eu gosto que seja assim — BONITO! queimado de sol! Perdeu o juízo — mas
a beleza do físico ninguém lhe tira. Nasceu com ele!
Edmundo –
Você gosta mais de Nonô do que de mim!»
Ao
saber que a mãe teve um amante, Edmundo (que nunca tocara a esposa, Heloísa)
lança várias vezes na cara dela uma imprecação ultrajante no universo
rodriguiano: “Fêmea”.
Há
ainda outro irmão e que também retorna no mesmo dia: Guilherme, cujo desejo se
dirige à irmã (e tentou fugir dele seguindo carreira no seminário) e que vai
tomar uma atitude extrema (castrar-se), obcecado pela PUREZA.
Bem, acho que não devo nem preciso contar
mais nada de Álbum de família, só adianto que há ainda muitos
acontecimentos cabeludos espalhados nos seus três atos. Contudo, o rápido
resumo das relações familiares, dos motes da ação dramática, e as citações já
feitas, com certeza já deram ao meu leitor uma boa ideia do terreno onde
estamos pisando.
E é um terreno nu, calcinado, terra de
ninguém: é o território da primordialidade, corporificado na figura de Nonô,
que com seus lamentos irracionais representa bem o que a sexualidade e as
pulsões primitivas fazem conosco apesar da casca civilizatória.
As pessoas que não gostam de Álbum de
família (e, em geral, do teatro de Nelson Rodrigues, ou pelo menos dessa
fase da sua obra teatral) afirmam que tudo é caricatural. Pelo contrário, penso
que ele atingiu um registro (muito raro e muito feliz) quase de pintura
rupestre, de inscrição econômica e despojada de traços essenciais das relações
humanas, das estruturas elementares do parentesco. No palco, estão seres
genéricos, ainda que tenham nomes próprios, ainda que pertençam a uma certa
casta social bem típica de nosso país, aí está o patriarcalismo judaico-cristã
em sua forma mais indisfarçada e autoexplicativa. E, no entanto, por causa do
texto rodriguiano, das falas exclamativas e exageradas, insolitamente
lapidares, o efeito final não é alegórico nem abstrato, mas carnal, sanguíneo.
É como se, de repente, para o leitor e/ou espectador um dente doesse
fortemente, um membro latejasse. É o inconsciente mandando lembranças, o
retorno do reprimido, o arcaico brilhando rupestremente nas dobras da couraça
do nosso caráter racional e socialmente aceitável. Mais Lévi-Strauss do que
Freud, todavia.
Álbum de família é o cru, não o
cozido.
Notas:
1
Hoje rotuladas como míticas, denominação dada por Sábato Magaldi, organizador
do Teatro Completo, em quatro volumes, em edições diversas pela Nova
Fronteira.
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