Junichiro Tanizaki

Por Ednodio Quintero



Se tivéssemos que eleger um autor emblemático e representativo do romance moderno japonês, aquele que melhor expressa mediante o uso estético da linguagem as diversas transformações que aconteceram no século XX em seu país e no mundo, muitas delas induzidas por razões históricas, econômicas, políticas e culturais, este seria, sem nenhuma dúvida, Junichiro Tanizaki (1886-1965). Embora no Japão se considere que o escritor clássico por excelência é Natsume Soseki (1867-1916), quem soube dar à língua falada um lugar próprio na literatura e que segue sendo lido com fervor e interesse, Tanizaki leva ainda algumas vantagens em razão da amplitude e variedade de sua obra, além dos atributos decididamente modernos, audazes, vanguardistas e em ocasiões geniais.

Tanizaki, um escritor multifacetado e dotado de um talento excepcional, se manteve ativo durante quase seis décadas, realizando uma viagem vital – expressada numa obra vasta e inesgotável – em paralelo com a série de acontecimentos que marcaram a vida do laborioso povo japonês num século convulsionado que mudou para sempre o rosto do país. A relevância da obra de Tanizaki não reside tanto na longevidade do autor nem nas milhares de páginas que escreveu, se fundamenta na consciência hipercrítica que lhe permitiu questionar, mudar (e numa mudança espetacular) a sua escrita em momentos-chave, mantendo sempre esse caráter arriscado, experimental, reflexivo e inovador que é próprio da modernidade.

Junichiro Tanizaki nasceu em 24 de julho de 1886 em Nihonbashi, um distrito comercial próximo à Baía de Tóquio. Nihonbashi foi durante os séculos XVIII e XIX da época do Shogunato de Edo um centro muito importante do Ukiyo-e, isto é, das representações gráficas (desenho e pintura) centradas nas cenas da vida cortesã e cotidiana, sobretudo com um alto conteúdo erótico. A família de Tanizaki era dona de uma gráfica fundada por seu avô, e se supõe que os materiais do Ukiyo-e eram de uso comum na empresa familiar. O menino Junichiro cresceu durante seus primeiros anos num ambiente de prosperidade, mantido pelo avô e aprendendo os valores da tradição. Muito cedo se apaixonou pelo teatro, que frequentava na companhia de sua mãe. Logo vieram maus tempos para a economia do lugar e os Tanizaki tiveram que se mudar para um bairro mais modesto.



Tanizaki começa os estudos em Literatura na Universidade de Tóquio, mas logo abandona por negar-se, num ato de rebeldia, a cancelar a matrícula por não pagar as mensalidades na instituição. Também durante esses anos se consagra à vida boêmia numa cidade cosmopolita que oferecia muitas oportunidades de diversão.

De forte vocação literária, em 1910 quando tem 24 anos, publica um de seus melhores contos breves, “Shisei” (“O tatuador”), no qual se nota a forte influência de Edgar Allan Poe e Oscar Wilde. Justamente por esse período traduz O retrato de Dorian Gray, o famoso romance do escritor inglês. O tema da beleza feminina unido às preocupações éticas e a uma sorte de tragédia pessoal na qual o elemento masculino se converte em vítima, são os eixos essenciais que caracterizam seus primeiros contos. As obsessões eróticas destrutivas, a busca da beleza no corpo da mulher e a contradição entre tradição e modernidade num país permeável e ao mesmo tempo reacionário às mudanças, marcaram a obra de Tanizaki desde então até os últimos escritos.

É curioso que, logo depois de haver publicado com êxito que se poderia qualificar como estrondoso, “O tatuador”, um tipico conto à Poe, Tanizaki não continue utilizando estes modelos e recursos da literatura ocidental, nos quais a brevidade, a tensão, uma linguagem direta e eficiente e a inconfundível surpresa final formam parte da rígida estratégia narrativa. Diferente de seu contemporâneo Ryunosuke Akutagawa (1882-1927), que permanece fiel às formas breves e à tradição adquirida do Ocidente, Tanizaki começa a fazer uma escrita transbordante, que, preservando as grandes diferenças culturais, poderíamos chamar de barroca. Sua prosa é ao menos reiterativa e rizomática, e não nos atreveríamos de qualificá-la de analítica, pois na reiteração não quer deixar nada de fora: e assim cada relato se converte para Tanizaki numa profunda indagação sobre os motivos que movem a psique humana.

É preciso então distinguir nesta primeira etapa da obra do escritor (1910-1923) caracterizada por um lado por sua paixão pela literatura ocidental, os temas de seus múltiplos contos – é uma produção vulcânica e incontida – e por outro centrado nas técnicas e procedimentos nos quais poderíamos encontrar momentos de originalidade, que vistos com os olhos do passar do tempo, respondem a uma tradição muito japonesa inaugurada pelo mestre Natsume Soseki. Sem nos demorarmos nessas considerações, basta lembrar que as duas narrativas ou novelas (“Jotaro, o masoquista”, de 1914 e Tristeza de herege”, 1917) pertencem justamente à etapa juvenil de Tanizaki. E embora conservem essa atualidade, marcada por certa qualidade de seu tempo e centrada naquilo que se propunham os clássicos, devem ser lidas colocando-as em seu tempo histórico, isto é, com a perspectiva de pelo menos um século de distância e entre uma cultura situada nas antípodas da nossa.

Para os estudiosos da vida e obra de Junichiro Tanizaki é curioso e instrutivo observar a espetacular mudança, própria de um acrobata, que dá nosso autor em seus escritos posteriores a 1923. Da paixão pelo ocidental salta ao extremo da exaltação nacional, convertendo-se num crítico acérrimo da fascinação dos japoneses pelos valores recém-chegados do Ocidente: modismos, roupas, penteados, culinária, expressões idiomáticas e a concepção mesma de beleza. Durante esses anos, Tanizaki escreve numerosas narrativas nas quais predominam os temas relacionados com a sensualidade, a busca pela beleza, os costumes de uma sociedade refinada e cosmopolita e alguns diretamente escabrosos que vão desde o fetichismo (que, de fato, perpassa sua obra), certo animalismo e inclusive a necrofilia com um toque de gourmet.

O terremoto que devasta Tóquio e Yokohama em 1923 tem uma influência determinante na vida e na obra posterior de Junichiro Tanizaki. Por causa do terremoto, Tanizaki, que morava uma zona mais chique da Yokohama, povoada em sua maior parte por estrangeiros, abandona sua família e se muda para a região de Kansai (Kyoto, Osaka, Kobe), onde, diferentemente da moderna e destruída Tóquio, se conservam os mais antigos valores da tradição japonesa. Aí se estabelece e muda novamente de maneira radical a escrita com o que vai se firmando como uma repentina reavaliação do que já produziu ou uma revelação que o levava a sofrer uma mudança em sua visão de mundo. Na sua nova residência começa a etapa mais intensa e prolífica de sua carreira literária.



Um de seus primeiros romances dessa época é Amor insensato (1924), na qual faz um retrato magistral, preciso e cheio de humor, de Joji, um engenheiro de meia-idade apaixonado loucamente por joveníssima mulher fatal obcecada pelos signos mais banais da cultura ocidental. Não seria arriscado dizer que Naomi é uma ilustre antecedente da Lolita de Nabokov. Depois segue a extraordinária Há quem prefira urtigas (1929), que aloja, dentro de uma contida tragédia familiar (a constante e absurda postergação do divórcio) os conflitos de uma sociedade em vias de transformação. Inspirado no dialeto de Kansai, Tanizaki publica em 1931 Suástica (que em japonês tem uma conotação ligeiramente religiosa, muito diferente da adotada pelo nazismo) onde explora a fundo o tema do lesbianismo. Em 1933, Tanizaki surpreende o estamento cultural de seu país com seu esquisito ensaio Elogio da sombra, considerado pela crítica japonesa como o ensaio mais importante de qualquer época publicado no Japão, e que é uma visão do ser essencialmente japonês em todas suas dimensões.

Dentro de sua imersão na tradição do Japão, Tanizaki escreve romances baseados em algum feito histórico, transformados em verdadeiras obras de arte dada suas habilidades estéticas. Tal é o caso de A vida secreta do senhor Musashi (1935) publicada durante as guerras civis do século XVI e que narra uma história bizarra que mescla a vingança de uma dama da nobreza com o aliciamento das cabeças recém-cortadas, uma confusa história de amor juvenil com os costumes escatológicos (retomados anos mais tarde em A mãe do capitão Shigemoto) numa época que empalideceria um Marquês de Sade.  Na mesma linha, Tanizaki realiza uma cuidadosa tradução do monumental romance de Murasaki Shikibu, A história de Genji, que data da primeira década do século XI e que foi, desde sempre, considerada por unanimidade como a obra mestra da literatura japonesa.

Finalmente, logo depois da Segunda Guerra Mundial, quando a obra de Tanizaki foi proibida pela censura militar, se publica aquilo que é considerado seu romance mais extenso e também o mais ambicioso, As irmãs Makioka (1948), um afresco monumental, ao modo dos grandes romances russos do século XIX, centrado nos preparativos do casamento de uma das irmãs de um quarteto de mulheres, que explora com estranho gosto – não isento de nostalgia por um tempo perdido – e de uma forma por demais morosa e detalhada os usos e costumes da sociedade japonesa da década de 1930.

Já em sua maturidade, considerando-se além do bem e do mal, Tanizaki abandona a temática nacionalista e se volta para as tramas de um erotismo refinado e decante. Em A mãe do capitão Shigemoto (1949), baseado em dados históricos do século X, em plena época Heian, quando o refinamento cortesão alcançou traços de decadência. Neste romance se conta uma história muito curiosa que ilustra os vícios nada ocultos e o cinismo de certas personagens amparadas nos privilégios do poder, e ao mesmo tempo vai tecendo a edípica obsessão de um menino pela sua mãe, uma jovem beldade de uma beleza extraordinária.

A chave (1956), construída mediante o recuso de um par de diários paralelos levados por um casal de meia-idade que tenta recuperar a sexualidade perdida, se converte na encenação das paixões mais elementares e selvagens que motivam os sentimentos humanos. A história que tem um final previsivelmente trágico,  poderia considerar-se como um catálogo de perversões domésticas.



Quase no final de sua vida, Tanizaki, que não parou de escrever, nos surpreende com Diário de um velho louco (1962) que talvez represente seu testamento literário. Um velho rico se apaixona loucamente por sua nora, uma moça também meio desmiolada que segue os desejos do velho, aproveitando-se, claro, de seus presentes extravagantes apenas para levar uma vida de luxo e oferecendo-lhe apenas algumas satisfações mínimas e mesquinhas, de índole fetichista, que mantêm o velho num estado de permanente excitação.

A obra de Tanizaki é vasta e reveladora das múltiplas facetas de uma cultura com valores próprios enraizados em séculos de tradição que tenta sobreviver à avalanche tentadora das novas ofertas, adotando as mais convenientes e reivindicando seus lucros mais valiosos, aqueles que a definem como uma cultura única, refinada e autêntica. Tanizaki representa, como nenhum outro artista de seu tempo, o espírito e essência do Japão.

Pelo trabalho, recebeu ainda em vida as mais altas distinções dentro e fora de seu país; em 1949 foi ganhador do Prêmio Imperial, o máximo reconhecimento que se outorga no Japão a um artista. Henry Miller, o considerava um sólido candidato ao Prêmio Nobel; Donald Keene, provavelmente o maior especialista estrangeiro em Literatura Japonesa, escreveu que Tanizaki era o maior romancista moderno do Japão. Tinha razão.

* Este texto é uma tradução livre de  "Tanizaki, el paradigma" publicado no volume 14, n.16, em 2010 da revista Contexto.

Comentários

Alexandre Kovacs disse…
Os romances de Junichiro Tanizaki, principalmente "Diário de um velho louco" e "Voragem", revelam pequenas tragédias humanas de maneira universal e merecem ser incluídos na relação de grandes clássicos da literatura de todos os tempos.

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