E.T. e a atualidade significante da sétima arte
Por Maria Vaz
Um destes dias fui com uma amiga ao cinema. Contudo, não foi uma ida
vulgar, em busca das novidades do mundo da sétima arte. Pelo contrário. Fomos
ver um filme que se tornou ‘clássico’: E.T - o extraterrestre, de Steven Spielberg.
Entretanto, dei por mim a reflectir na capacidade de um filme me fazer
viajar dentro de mim, num mundo que se (re)densifica e alcança sempre novas
significâncias à medida que o tempo origina o discorrer de uma história com
aromas de infância e traços de ficção miscigenados com utopia e pedaços de
realidade. A arte tem essa capacidade de nos fazer evadir, para que nos
percamos numa amálgama de novas sensações, numa (re)vivência existencial
aniquiladora de qualquer tédio vicioso do espírito.
O filme relata a história de um menino que dizia ter visto um duende:
um menino que sofreu bullying na escola, como tantos outros meninos que padecem
do mesmo mal, em um século informatizado mas insensível às diferenças, à
criatividade, à imaginação.
No filme de que vos falo consegue-se delimitar o melhor e o pior que há
nas crianças: por um lado, vislumbra-se a sua face mais egoísta, que se prende
a um mundo de sombras enegrecidas pelo apontar de um dedo à diferença e à
atribuição de rótulos de ‘loucura’ (como tantos outros rótulos em que, ainda
hoje, se satirizam e, preconceituosamente, se inferiorizam minorias); por outro
lado, conseguimos visualizar a inocência de uma criança e a bondade
desinteressada, num mundo de essencialidades escassas em que (quase) tudo se
compra e se vende, se exige ou se pretende de outrem, num individualismo
hiperbolizado sem precedentes na história de uma humanidade em decadência.
O E.T. é um ser ‘lunático’ que desenvolve um relacionamento puro de
amizade com um menino que, desinteressadamente, envidou todos os esforços para
que ele pudesse voltar a casa. Mesmo sem saber concretamente onde seria essa
‘casa’ e tendo sempre em mente que as Unidades Astronómicas poderiam dar lugar
a Anos Luz de distância, o que acabaria física e materialmente com o
relacionamento de amizade entre ambos.
Filosoficamente, dei por mim a pensar naquela “vexata quaestio”: o que
significa estar em casa? Seria muito fácil seguir os clichés de quem, com base
em comportamentos de manada intelectual, diz que “home is where your heart is”.
Não obstante, a vida – pelo menos aquela a que a memória nos permite ter
acesso, superando qualquer crença ou cepticismo para que não prendamos a mente
a algo que a limite – é feita de várias casas. A verdade é que podemos demorar
a cortar o cordão umbilical com a nossa zona de conforto, que nos afaga e
esmaga, por também ser limitadora.
Os afectos são aqueles que, sempre em
liberdade, nos entusiasmam e nos dão força para continuar um caminho que não
tem que, necessariamente, ser subterrâneo e em linha recta. Os afectos
acompanham-nos sempre. Se ‘juridicializarmos’ os pensamentos (e as palavras que
os avultam), os afectos são uma espécie de direitos reais ‘descoisificados’,
com a vantagem de atribuírem desinteressadamente, aos que cativantes se
tornaram cativos, uma espécie de direito natural de sequela existencial. Simplificando,
não importa se a pessoa está a sobrevoar o Trópico de Capricórnio, a apanhar
sol nas ilhas Maldivas, em uma missão humanitária na África subsariana ou em
investigação científica ao largo da Antárctida: os afectos são pedaços de
energia alheia que, doada, se torna nossa; são títulos de crédito energético,
não escritos, dotados de validade vitalícia, mas desprovidos de possessividade.
Assim, a nossa ‘casa’ está inscrita em nós e não é impeditiva de que
vamos construindo outras casas pelo caminho: viver é assimilar, exponenciando o
que somos, sem subtracções. Aceito, no fim de contas, que a nossa casa é a
nossa zona de conforto, mas quero acreditar que aquilo que nos define, nos
individualiza sem descurar o outro e nos fortalece, traduz-se, tão-somente, no
encontro de uma zona de conforto dentro de nós: o resto são sempre
circunstâncias, cujo período de adaptação não é mais do que uma meta de
superação pessoal do ‘eu’ pelo ‘eu’ e de realização de uma vontade, que é a
força anímica que nos distingue na igualdade que nos amarra.
O filme de Spielberg demonstra-nos, ainda, as dificuldades de um
período de adaptação, mostra-nos o poder da tolerância e da coragem de
superação do medo da diferença: prova que o medo é um mecanismo humanizado que
serve apenas para evitar que boas histórias se concretizem.
No final do filme, quando a nave espacial vem buscar E.T. para ir para
a sua casa natal – não obstante ser notório que construiu na Terra uma outra
casa –, E.T pede ao seu amigo terrestre para o acompanhar na sua viagem, ao
mesmo tempo que o seu amigo terrestre lhe pede para ficar. Escusado será dizer
que ambos queriam manter-se próximos, por força dos afectos que criam em torno
de nós uma zona de conforto que podemos chamar de ‘casa’. Todavia, por força de
uma vontade racionalizada, que supera a emoção, ambos respeitaram as diferenças
e seguiram os seus caminhos em mundos distintos. Não foram diferenças do
coração. Foram diferenças da alma, numa vida que é tão pequena para que o
espírito se reduza a uma história linear, a uma viagem limitada por uma zona de
conforto em que a liberdade, pelo medo, se torna uma prisão. E não há nada pior
do que apequenar a mente.
Em suma, E.T fez-me recordar de uma frase que fui ouvindo nos
bancos da faculdade: “o clássico nunca sai de moda”. E falo de uma moda
substancial e não daquela que impera pelas repetições impensadas da “era do
vazio”. E.T fez-me tropeçar nos versos da “Tabacaria” de Álvaro de Campos, quando
diz: “que sei eu do que serei, eu que não sei quem sou?”. E.T. fez-me
perceber que ainda que exista uma essência – com laivos ontológicos de raiz
metafísica –, o que importa é aquilo que decidimos, por vontade, fazer com uma
existência que se pode desprender para a alterar.
***
Maria Vaz nasceu em Mirandela a 19 de Setembro de 1990, muito embora tenha vivido toda a infância e início da adolescência em Vila Flor. Aos 11 anos, apaixonou-se pela poesia ao encontrar, por mero acaso, um livro de Alberto Caeiro. A par da poesia e da literatura, é uma apaixonada pelas artes em geral, de entre as quais ressalta a música, dado que tocou clarinete entre os 11 e os 21 anos. Publicou o seu primeiro poema em Março de 2015, numa antologia de poetas portugueses contemporâneos e escreve regularmente no seu blog (“The philosophy of little nothings”). É agora colunista do ‘Letras in.verso re.verso”. Além da escrita, é doutoranda em ciências jurídico-criminais, na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, desde finais de 2014.
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