Amar é crime, de Marcelino Freire
Por Pedro Fernandes
Eis aqui um
escritor em constante experimentação, mas ligado ao fio da construção de um
estilo capaz de defini-lo entre a pluralidade de nomes na literatura brasileira
contemporânea (sim, estamos numa era em que certos grupinhos estão em processo
de desfazimento e numa era em que todo mundo tem alguma coisa para dizer
através da escrita, duas condições que, num país de dimensão continental como o
Brasil, só aumenta o cerco para o nascimento do chamado novo escritor, embora
muito do que se produz hoje esteja fadado a virar pó no dobrar antes mesmo de chegar às prateleiras de uma livraria,
mesmo quando o livro alcance o plano estratosférico da aceitação mercadológica).
Amar é crime é um dos títulos mais
recentes de Marcelino Freire; a edição agora apresentada é uma antologia
revista e ampliada da que foi publicada em 2010 com pequena tiragem num projeto
coordenado pelo Coletivo Edith. E o que se vê na obra do autor de títulos como Angu de sangue (o livro de estreia,
também de contos, publicado pela Ateliê Editorial) ou Contos negreiros (talvez o seu mais conhecido, depois do primeiro
romance, Nossos ossos, os dois pela mesma
casa da reedição de Amar é crime) não
é um escritor interessado em dizer
qualquer coisa. Isto é, o escritor que quer ser escritor porque quer. Aqui, está
o segundo diferencial que assinala o trabalho do pernambucano: Marcelino tem
demonstrado um compromisso de dedicação com a palavra e esse compromisso e dedicação se inscreve no próprio fazer literário.
Sua obra não
busca ornar-se do excesso vazio da verborragia; não tem a pressa de querer ser a obra revelação, nem de ser o autor de um livro por ano; tampouco prima pelo malabarismo mirabolante do enredo
narrativo (características das mais encontradas entre os nomes talhados apenas pela pretensão do ser-escritor). Ao dizer isso pensamos haver uma coerência no exercício literário
que zela pela compreensão de que o verdadeiro papel do escritor é o de
persistir na construção de uma obra capaz de introduzir uma contribuição à tradição
literária do seu povo. Só assim ela alcança força suficiente para ser duradoura. Ao escritor nunca lhe deve faltar honestidade com aquilo que faz.
Assim
dedicado, a prosa de Marcelino Freire se filia, no sentido de dialogar estilisticamente, a de nomes como Graciliano Ramos, escritor que bem
sabemos está entre os do sua estima, ainda mais quando escreve um
texto como “Ricas secas”, um dos contos de Amar
é crime, classificado pelo escritor no conjunto de notas que finaliza a
obra como extração integral do romance do alagoano. Filia-se ainda a Guimarães
Rosa, quando insiste em integrar na língua culta, o falar rico (mais rico que
qualquer bailado da língua culta) da gente simples. E faz isso sem ser artificial. Tanto Graciliano quanto
Rosa exercitaram o processo de adestramento da palavra; são escritas
ponderadas, fixadas em enredos simples, mas construídos de limpidez verbal única
na literatura de língua portuguesa.
Essa limpidez
da palavra se comporta em outro exercício buscado pelo autor de Amar é crime, que é de se aproximar da oralidade quase silenciosa, de só dizer o necessário, buscada no sertanejo do interior do Nordeste brasileiro; essa oralidade forma um texto de natureza ritmada, de construção silábica quase contada pela medida do verso clássico, o que junto a brevidade, denota no recurso dos mais caros ao
texto literário – aliás, que fazem o texto ser literário (sua literariedade): a prosa da contística de Amar é crime é
uma prosa sugestiva. Nada aqui é integralmente revelado. Isto é, busca praticar o que disse Ezra Pound sobre a grande literatura, uma linguagem carregada de significado até o máximo grau possível. Ao meu ver isso se chama, para um
leitor comum, mas atento a certos percalços do texto, respeito ao leitor.
Marcelino zela pela capacidade intuitiva de decifração do narrado por quem o lê.
A título de ilustrar as constatações apresentadas até agora, cito alguns dos textos de Amar é crime tais como "Vestido longo" e "União civil", escolhidos aqui, não ao acaso, mas porque parecem marcar dois instantes da obra, seja pelo tema abordado, seja pela própria construção estética: parece-nos que os recursos até agora citados são renovados do primeiro para o segundo texto. O primeiro conto encerra a história de uma desvalida, nascida, criada e levada pelas circunstâncias (mas de uma inocência como se presa a um mundo sem malícia) a ser mulher da vida. Pelo traço de bruta ingenuidade podemos logo associá-la a uma Macabéa de A hora da estrela, de Clarice Lispector; depois, quando se descobre sensual, a uma das mulheres criadas por Jorge Amado.
Já o segundo conto, "União civil", um dos textos anexados nessa reedição de Amar é crime, há dois imbróglios criteriosamente construídos num mesmo ambiente, contrariando a forma de que conto é dado apenas para tratar de um acontecimento em específico. Entre uma crise de criatividade assinalada pela responsabilidade exigida de que o escritor não é mais apenas o ente que escreve, mas uma figura constantemente imersa numa vida destoante de sua atividade de recluso, a de compromissado com eventos públicos de natureza diversa, assistimos esse narrador completamente tomado por uma cena de rua na qual estão dois homens e um bebê, cena que o leva ao tempo de adolescente quando se descobriu apaixonado pelo melhor amigo de escola. Ao fazer esses dois enredos desaguarem num só, o escritor introduz o efeito do possível: se ele próprio não sabe nada sobre os dois homens e o bebê, também o leitor ficará sem acesso ao que eles são; se ele próprio vê-se transmutado na cena e imagina um desfecho (muito real, aliás) para ela, também o leitor ficará por acreditar numa relação do acaso entre a cena e a atual vida de um escritor que tem, entre tantas obrigações, a da escrita.
Esse impasse é uma construção que dialoga com a compreensão de um cenário (tal como se demonstra contemporaneamente) de oclusão ou falseamento da união civil entre indivíduos do mesmo sexo a partir das políticas construídas e mantidas à rédea curta pelos setores sectaristas, sobretudo da religião, de certa classe política e da própria sociedade dita normal. É um dos momentos da obra (claro, em "Vestido longo" essa questão é verificada) em diálogo direto com aquilo que está fora do universo puramente da escrita. E já agora destacamos outro aspecto
importante a qualquer obra: ser uma reflexão crítica, sobretudo diversa das visões
impostas pelo seu tempo sem que para isso diga a que veio ou para que serve no acurado
debate das questões históricas, sociais e políticas que dão forma a realidade.
Nesse aspecto, o próprio título já reflete de uma maneira muito clara esse
propósito. À primeira vista, o leitor pensará que este é um livro com histórias
de amor cujo desfecho é assinalado pelo trágico, isto é, histórias de amor ao
modo de Nelson Rodrigues. Há muito do fim trágico, é certo, mas não se findam
aí. Outros poderão perceber, ainda à primeira vista, que Marcelino Freire apenas
imprime uma sentença que corrobora uma visão de mundo centrada no descrédito do
amor, esse sentimento que, talhado ao longo da história da humanidade terá
contribuído e muito para aquilo que nos tornamos: figuras distintas das
espécies que não evoluíram na velocidade dos da nossa espécie. Pode ser.
Mas, Amar é crime, no mesmo instante em que
reafirma o descrédito no amor, ou
mesmo o denuncia como um dos sentidos através do qual se forjam algumas das
hipocrisias de dominação do homem pelo homem, esclarece o mal maior da história da humanidade, cuja forma parece se aperfeiçoar de maneira assustadora desde a completa formação de um sistema baseado em tudo e por tudo no capital: a sobrevalozição do ódio (movido por causa diversa, desde por puro
gosto, por não sermos mais compreensíveis aos desvarios do amor – se é que
alguma vez fomos –, pela incapacidade de alcançar o outro, mas sempre tudo fundado no interesse financeiro); nesse curso, a subversão
do amor como um instrumento de sustentação de uma cadeia em que homem está cada
vez mais afastado daquilo que o humaniza. A palavra é, pois, faca de dois
gumes, mas inscreve-se como condição da qual nenhuma criatura está livre, por
mais rude que seja; o perigo é seu apagamento em nome de uma revolta infundada, bem
à moda do que tem se levantado atualmente (mais uma vez).
Não é para ter
dúvidas de que Marcelino Freire tem muito a contribuir para a renovação da
literatura nacional. Dentre um universo de questões comuns à cena brasileira, sua obra não apenas as cataloga, mas trabalha ao ponto de dizer sobre o humano que vimos nos tornando.
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