A verdade, essa grande versão
Por Berna
González Harbour
ilustração (detalhe): Fernando Vicente |
Verdade ou
versão? A aliança entre realidade e literatura, entre o vivido e o contado, é
um casamento tão inabalável como sensível. E fantasioso. Ou, por acaso, alguém
pode colocar a mão no fogo pela autenticidade de uma memória, de uma história,
ou pela originalidade de uma frase, uma trama, uma obra? As sensações podem ser
dignas de darmos crédito, e sempre com essas, mas os episódios da própria e da
vida alheia transladados para o livro podem ser espelhos côncavos nos quais não
havemos de confiar.
Três escritores
com maiúscula e uma lúcida psicóloga refletem de diversos pontos de vista sobre
a verdade e a literatura em livros considerados imprescindíveis para um gênero
minoritário, sim, mas irresistível: a escrita sobre a escrita. Sobre a arte,
sobre os motores da criação. São Quarenta
e uma tentativas falidas, de Janet Malcolm, A boa história que recolhe
um intenso debate entre o escritor Prêmio Nobel de Literatura J. M. Coetzee e a
psicóloga Arabella Kurtz e Homem de
verdade, de David Shields (ver nota no fim do texto). Através de estilos e gêneros diferentes, mas todos
situados no território da ficção (relatos, correspondência e uma coleção de
teses e aforismos), os quatro autores olham para o interior de si mesmos ou de
suas personagens em busca de algo tão difícil de segurar como o modo e a razão
pelos quais, em meio à confusão, escrevemos, pintamos, acreditamos no conteúdo
artístico.
“Não existe
o real como algo harmonioso; só há versões da realidade”, diz David Shields;
“interessam-me a escrita e a leitura como uma metáfora da condição humana”. Seu
livro é um tiro de ideias brilhantes e amontoadas, às vezes contraditórias,
frases que provocam e disfarçam, mas que atuam como um concurso de moldes que
competem entre si para que o leitor faça seu encaixe. Por exemplo: “A arte não
é a verdade, a arte é a mentira que nos permite reconhecer a verdade”. E mais –
“Consciente ou inconsciente, manipulamos recordações para incluir ou omitir
certos aspectos. São nossas memórias ficções?”
Coetzee e
Arabella Kurtz escrevem sobre memória e ficção num livro que está entre o planeta
da psicanálise e o da literatura como a Millennium Falcon nas mãos de Han Solo
(numa apologia a famosa nave capaz de singrar galáxias em Star Wars): com
fluidez em zonas de tormenta; com honestidade na missão; e com uma complexa forma
sem que nos demos conta. Também disfarça: se um busca literatura, encontrará
psicanálise, e se outro busca psicanálise, achará literatura. Mas a conclusão
final será que em ambos planetas há vida, água e oxigênio. Ou em termos
literários: mais versão e deformação que verdade. Assim explica Coetzee numa
entrevista ao caderno Babelia (El País):
“Em nossa
cultura liberal e pós-religiosa tendemos a pensar na imaginação narrativa como
uma força benigna que está em nosso interior. Mas existe uma opinião oposta, e
é que a imaginação é uma faculdade que utilizamos para elaborar, para nós e os
do nosso círculo, a história que mais nos convém, uma história que justifique
como nos comportamos no passado e como nos comportamos no presente, uma
história em que nós normalmente temos razão e os demais não”, afirma o escritor
sul-africano”.
A verdade é
algo sério que pode custar a prisão ou bocados inteiros de honra, como
recordará Bill Clinton, que superou uma longa investigação por perjúrio sobre
sua relação com uma estagiária na Casa Branca que podia ter-lhe saído mais caro.
Não dizia respeito à sua atuação sexual,
mas sua versão alegadamente falsa.
Coetzee e
Kurtz mergulham no fundo da consciência em busca da verdade, a Verdade, e o que
encontram não é precisamente matéria judicial. A verdade própria, interna, não
se apresenta ao chegar, não pesa, não mede, não tem mais registros que a
recordação volúvel guardada na mente, normalmente amiga de nosso bem-estar. Não
falamos de casamentos, batizados ou primeiras eucaristias, claro; de contratos,
compras, vendas, sentenças, demissões, nem de feitos provados, mas da vida em
seu sentido amplo, desse território subjetivo da interpretação onde tudo é
parecido com a realidade ou só pura coincidência.
E essa verdade,
a que o paciente conta ao psicanalista ou o escritor ao leitor, saída de sua
própria memória e da elaboração subjetiva de suas recordações, está mais
próxima da desejada que a realidade. É a verdade subjetiva. Talvez a melhor
para sobreviver. Mas com um risco de grave corruptela se a maleamos com a
fantasia. Além disso, esta verdade subjetiva, a que se forma entre paciente e
terapeuta ou entre o autor e o leitor se constrói como resultado da interação.
Kurtz e
Coetzee dão um exemplo perfeito: Sancho e quem o é próximo e aprecia o Quixote
sabem que nem é cavaleiro, nem é andante, nem luta contra gigantes, nem salva
princesas. Mas, quem deles quer viver num mundo em que isso não ocorra, em que,
ao contrário, o fidalgo Alonso Quijano vague por sua ruinosa propriedade esperando
a morte? Ao final do livro, relembra Coetzee, Sancho e outros que, preferem a
versão ideal, transformada e melhorada do Quixote; pode ser que ele tenha
inventado, que não seja real, mas estão dispostos a passar por cima desse detalhe.
Nesse momento Sancho já tem sua verdade, já é comum. E é melhor ficar no mundo
imaginário que no verdadeiro.
Essa força
literária é também a que acompanha paciente e terapeuta, quem acompanha a verdade
dos males daquele. “Quando visitamos nosso terapeuta e contamos o que aconteceu
em nossas vidas durante a última semana, tratamos de converter essa história
num artefato bem construído, ou, ao contrário, devemos ser neutros, objetivos,
esforçarmo-nos por contar a verdade que cumpra o critério dos tribunais: toda a
verdade e nada mais que a verdade?”, se pergunta Coetzee.
Somos o
autor consciente, ou uma voz que emite uma torrente de palavras de nosso
interior? Sobretudo, dado o volume de recordações que armazenamos, o que
deveríamos deixar de fora quando contamos essa história, sem esquecer a advertência
de Freud de que o que decidimos omitir pode ser a chave de tudo? Devemos exigir
ao paciente que afronte a verdade ou, ao contrário, nossa profissão nos dá a
liberdade para colaborar ou conspirar com o paciente na hora de criar um relato
de sua vida – uma ficção, sem dúvida, mas uma ficção fortalecedora – que lhe
faça sentir-se bem consigo mesmo, o suficiente para sair ao mundo e ser capaz
de amar e trabalhar?”
A mesma
subjetividade é protagonista nas crônicas que compõem Quarenta e uma tentativas falidas, uma belíssima incursão na mente
de artistas por parte de Janet Malcolm (estadunidense nascida em Praga em 1934,
colaboradora do The New Yorker e
autora de obras memoráveis como O
jornalista e o assassino ou Anatomia
de um julgamento / Companhia das Letras). Malcolm relata com enorme
humildade, longe de qualquer púlpito, todas as visitas a David Salle, um
artista de êxito para quem a imprensa havia decretado o início de sua decadência.
Num dado momento, ela se atreve a levar suas colagens e lhe pergunta: “Por que
suas colagens são arte e as minhas não?” – ao que Salle responde – “Não há nada
que diga que suas colagens não sejam arte. São arte se você afirma são”.
Isto é, a
subjetividade como motor frente à falta de estima social e reconhecimento. Mas,
acaso pode ser tão sensível, é a subjetividade suficiente? Obviamente que não.
Malcolm
acompanhará mais tarde o fotógrafo alemão Thomas Struth numa região industrial
que lhe interessa e tentará de novo averiguar o que diferencia uma foto comum
da arte verdadeira. Qual é o ingrediente a mais. “Qual é esse mais?”, pergunta.
“O mais é um desejo de dissolver, como de... como dizer-lhe, de ser a antena de
uma parte de nossa vida contemporânea e transmitir essa energia, inseri-la nos
fragmentos desta história”.
Quando pouco
depois Malcolm recebe as fotos que Struth havia feito em sua presença,
reconhece, admirada: “Eram surpreendentes, embora estivesse na fábrica não vi
nenhuma dessas imagens por meu próprio olhar”. Struth havia alcançado a arte.
Malcolm, depois de publicado este livro, tem se recusado às entrevistas e a
toda atividade de promoção da obra, mas nela está a essência da criação, como o
testemunho de Virginia Woolf que compila num de seus capítulos: “Comprovei que
a criação de situações é minha maneira natural de assinalar o passado”. Um
passado de abusos e de morte como catapulta para a criação.
Há quem
acredite que deixar sair sua perplexidade (Nooteboom), para indagar sua memória
(Le Clézio), para superar o desenraizamento (Naipul), para pensar melhor
(Javier Marías), por necessidade (Sergio Ramírez) ou para ser antena (Struth).
Shields
acredita que “o romance convencional está morto e o que se trata agora é
reimaginar a ficção como um trampolim para questões mais amplas: o que é o
real, o verdadeiro, o que é o conhecimento, a memória, o que é o eu e quanto eu
de outro pode conhecer alguém”. E isso é exatamente o que fazem Malcolm,
Coetzee, Kurtz e Shields. Seus livros serão clássicos.
Nota:
Os três livros mencionados nesta post ainda não foram publicados em língua portuguesa e os títulos empregados neste texto são uma versão livre para como estão apresentados em língua espanhola.
* Este texto foi publicado inicialmente no jornal El País com o título "La verdade, esa gran versión".
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