A misandria libertária da menina má
Por Rafael Kafka
Poucos
homens têm a capacidade de entender e expressar de forma profunda tal
entendimento da condição feminina em seus textos como Mario Vargas Llosa. Isso
fica bastante evidente nas diversas análises psicológicas feitas pelo autor no
sentido de explorar as minúcias do machismo existente na sociedade ocidental em
obras suas como Conversa na catedral ou A casa verde. Mas talvez
tenha sido em A festa do bode onde mais vi evidenciada a sua capacidade
de explorar o modo como as mulheres são oprimidas em nossa civilização tida
como racional.
Urania
representa todos os abusos sofridos por mulheres. Em um jogo político podre,
cheio de artimanhas das mais baixas, como ocorre em qualquer regime
totalitário, Urania se vê de repente na necessidade de ceder o seu corpo e sua
virgindade a um ditador para, quem sabe, salvar a vida do pai que se encontra
arruinado. Após isso, a moça assume uma postura isolada, fugaz em relação a
toda e qualquer relação amorosa, passando a quem observa uma sensação de força
e altivez que na verdade oculta um profundo medo dos homens.
A misandria,
ao contrário da misoginia, não é algo estrutural. A misandria é geralmente
ligada aos abusos cometidos por homens em relação às mulheres. Ou uma mulher
sofre algo violento em seu ser ou testemunha alguma outra sofrendo para criar o
sentimento de repúdio aos homens. A misoginia não: ela é ensinada a nós desde a
mais tenra idade, quando vemos a mulher como ser submisso e preso às vontades
masculinas. A misoginia é o ódio pela liberdade feminina. Quando uma mulher se
nega a ser o outro tão falado por Simone de Beauvoir para se tornar um, para se tornar ser
para-si, na terminologia existencialista, ela precisa se deparar com o ódio de
uma sociedade construída por e para homens.
Tal ódio
pode vir na forma de diversas agressões: é o menosprezo pela mulher que procura
se realizar e abandonar o papel de mãe ou colocá-lo em um segundo plano; é a
mulher chamada de “mal comida” por querer falar no mesmo tom aos homens; são os
estupros em todos os seus graus para mostrar às mulheres quem manda em seus
corpos. Não à toa, Anthony Giddens diz em seu Transformações da intimidade
que o grau de violência contra a mulher se tornou mais exorbitante no momento
em que na sociedade em que vivemos os direitos pela liberdade feminina
começaram a se tornar uma pauta cada vez mais presente nos debates políticos.
O que
escritores como Llosa conseguem de forma genial em suas obras é rir da condição
masculina naquilo que há mais de ridículo: um discurso apregoador de virilidade
o qual, na verdade, é um disfarce para seres extremamente inseguros e
dependentes de que alguém faça as suas coisas por ele. É muito confortável para
um homem se vangloriar de sua masculinidade quando tem uma mulher atrás de si
lavando suas roupas, cuidando de seus filhos e sendo um boneco de carne apto a
satisfazer os seus desejos. Como diria Virginia Woolf: mesmo o mais miserável
dos operários em casa é um rei.
Mesmo quando
os homens são cavalheiros, muito provavelmente estão a fazer isso para obter da
mulher o seu corpo. Homens não amam mulheres pelo que são em muitos casos e sim pelo que elas têm a oferecer de massagem de ego e conforto a eles. A misoginia,
como eu disse acima, é o ódio pelas mulheres pois nós aprendemos a amar as
mulheres não pelo que elas são, mas pelo que fazemos delas.
Outros
autores brincaram de forma magistral com o comportamento masculino frente às
mulheres, em especial às mulheres livres. O que dizer dos célebres e patéticos
personagens masculinos de Machado de Assis, em especial Bentinho, que se perdia
nos olhos de ressaca de Capitu sem conseguir sair dali com uma resposta
fundamental: o que era aquele ser que ele tanto amava? Na pergunta famosa se
houve ou não o adultério de Capitu a resposta mais importante já foi dada na
própria pergunta: se havia a dúvida do comportamento da moça, Bentinho então
estava na posição de reconhecer que diante de si havia um ser vivo, um ser dotado
de vontade própria, e não mais um bibelô feito para o seu desejo.
É o mesmo
choque que Ricardo, o personagem central de Travessuras da menina má tem
ao se deparar com um amor que muda o tempo todo de nome, de aparência, de
localidade. A menina má que nunca revela seu nome e usa os homens para obter
conforto e possibilidade de andar pelo mundo é a paixão que se fixa, rebelde e
soberana, na cabeça de um pobre tradutor e intérprete, cheio de falas piegas, o
qual por mais que procure se libertar dela nunca consegue.
Tudo começa
quando, ainda criança, ele conhece a nova vizinha de nome Lily que vai morar no
bairro de Miraflores, em Lima, no Peru. Logo, Ricardo se apaixona por Lily, em
quem vê um atrevimento surreal e um comportamento chocante que lhe soa encantador.
Lily causa um verdadeiro choque na puritana localidade de Miraflores e parece
ser esse o maior encanto que o protagonista vê em seu ser. Todavia, ela que se
dizia chilena é descoberta como sendo uma peruana que forjava a naturalidade
por um motivo que nunca fica claro. Quando isso ocorre, ela desaparece da
cidade e iniciamos a acompanhar uma existência errante que se chocará em
diversos pontos da história do século XX com a existência de Ricardo.
Não vemos
aqui uma obsessão similar a de Benjamin por Ariela, como bem representou Chico
Buarque em sua bela novela de narrador-câmera. Benjamin vê em Ariela o reflexo
de um antigo: o amor aqui não se volta para o ser da pessoa e sim para um
resquício de memória que se mantém bastante vivo, como bem mostra ser possível
Henri Bergson em seu ensaio sobre as relações entre memória e matéria. Ricardo
ama o mistério existente na menina má, que passará a assumir diversas
identidades conforme vá se casando com outros homens em alguns países da
Europa. Nada ele sabe de sua amada, exceto o seu desprezo pelas relações
amorosas, as quais ela vê como uma forma de obter conforto em sua existência.
A menina má
representa bem o estereótipo que muitos homens machistas têm de uma mulher: um
ser aproveitador o qual apenas se aproveita de uma situação e por isso mesmo
deve ser usado. Misândrica, a menina má despreza profundamente os homens e
zomba o tempo inteiro das declarações cheias de lirismo de Ricardo, que mesmo
envelhecendo parece ter o mesmo comportamento juvenil que tinha no primeiro
encontro dos dois, décadas antes. A menina má é má por ser livre, por brincar
com as regras do jogo machista a seu favor, por pular de galho em galho como um
gafanhoto que zomba de sua presa, sem nunca dizer aos amantes com quem se
envolve que os ama. De sua boca não saem mentiras, apenas o desejo de deixar a
cada amante que ele pense o que bem entender.
Se não vemos
em Ricardo a mesma obsessão de Benjamin, também vemos em sua atitude um ser que
se encontra em uma posição econômica confortável, capaz de se envolver com quem
bem entender e de conhecer milhares de lugares, vivendo uma vida pacata entre
Londres e Paris, sem nenhum tipo de grande ambição e sem criar laços com quase
ninguém, exceto esporádicos amigos, alguns como Juan e Paulo peruanos, e a moça
que prendeu seu coração desde muito tempo. Enquanto nos narra sua história,
Ricardo mostra como o mundo mudou com o surgimento das revoltas populares como
a de maio de 1968, com o crescimento do fascismo e do pensamento ultra
conservador, o aparecimento da revolução sexual e das doenças sexualmente
transmissíveis, o pensamento estruturalista tomando o lugar do existencialismo
como nova moda, etc. Tudo parece mudar, menos o modo de ser Ricardo,
aparentemente preso a sua menina de forma eterna.
Ricardo é um
reflexo perfeito dos personagens masculinos da literatura clássica que permeou
o campo literário pelo século XIX. Membro de uma classe burguesa, típico
intelectual que foge do engajamento às questões políticas, vive um modo de
existência que parece querer flutuar por sobre as coisas sem ser tocado por
elas. Entretanto, de sua paixão ele não consegue fugir, muito menos do sonho de
ter uma mulher para chamar de sua. O curioso aqui é que essa paixão se move
justamente para uma mulher a qual aparentemente ele não tem tantas de
conquistar, o que pode denotar para muitos aquela velha máxima de gostar
daquilo que consideramos longe de nosso alcance apenas pelo desejo de ter isso
em nossas mãos.
Mesmo não
tendo o arrojamento narrativo de outras obras de Llosa que usam e abusam de
recursos que transformam os enredos em grandes emaranhados romanescos, Travessuras
da menina má é um livro interessante para entendermos de modo profundo o
comportamento masculino padrão, muito mais frágil do que pensamos entender. A
leitura desse excelente romance em primeira pessoa nos faz pensar que talvez
quem mais acredite em promessas de amor eterno com um ser imutável ao nosso
lado não sejam as mulheres e si nós, pobres homens que queremos fazer delas o
esteio para as nossas ilusões egocêntricas.
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