Praticidade, foco e ignorância
Por Rafael Kafka
Tenho sido
constantemente criticado pela minha prática de escrever “textões” na internet.
Outro dia, eu estava em uma discussão em um grupo de Whatsapp quando chamei uma
pessoa de homofóbica por conta das piadas feitas por tal ser humano. Em uma de
suas respostas, todas cheias de ad hominem, o indivíduo disse que eu iria para
o Facebook fazer algum texto imenso cheio de teoria para rebatê-lo. Achei
curioso isso, pois no contexto em questão ficou bastante claro que eu estava
sendo criticado por gostar de ler e usar a escrita pada discutir minhas ideias.
O mais curioso é que essa crítica, se é que posso chamar disso, é um eco: eu já
a ouvi diversas, inclusive em ambientes ligado à educação.
Escrevi em
meados de dezembro do ano passado para o Letras in.verso e re.verso um texto no
qual eu relatava uma situação em que eu estava decidindo se participaria da
confraternização de um grupo de colegas de trabalho. Disse a um eles que se eu
o tirasse novamente na brincadeira do amigo invisível ele ganharia um livro de
mim, como ocorrera em 2013. Uma colega de trabalho, professora de redação da
escola, disse em tom revoltado que eu não deveria dar um livro em uma data tão
especial e sim algo diferente, como se livros não fossem presentes carinhosos o
suficiente para comemorar as festas de final de ano. Respondi a ela que
provavelmente ela não gostava de ler já que qualquer pessoa apaixonada pela
leitura adoraria ganhar de presente mais um livro para sua coleção.
A situação
me fez pensar na imensa crise existente dentro das escolas brasileiras, sejam
elas públicas ou privadas. Tal crise perpassa demais pelo fato de que muitos
professores não gostam de ler: são seres que adoram falar da importância do
hábito de leitura sem ter tal hábito em sua vida. Isso se reflete em muitas de
suas opiniões políticas cheias de senso comum. Foi possível para mim ouvir
bastante dessas opiniões no decorrer da primeira metade do ano e mesmo durante
as férias quando convivi com alguns colegas professores.
O mais
curioso é que a leitura além de não ser praticada é vista como ato horrendo,
criticável. Muitas vezes fui chamado de arrogante apenas pelo fato de, no meio
de uma discussão, citar algum texto lido na internet ou algum livro sobre
determinado assunto que me chegou às mãos. Quando não fui chamado de arrogante,
fui chamado de alguém pouco prático ou sem foco, incapaz de prender minha
atenção em uma meta precisa.
Sempre tive
um preconceito muito grande com quem se utiliza dos termos “foco” e
“praticidade” com um ar de quem já tem tudo na ponta da língua em se tratando
de respostas. Até algum tempo atrás, tal preconceito se manifestava pelo fato
de que eu, por ser um grande amante da literatura, achava que tais pessoas
presas demais a conteúdos de vestibulares e concursos públicos não estava a ver
a realidade do mundo na sua grandiosidade. Hoje, além de ser esse o motivo que
me leva a ver tais olhares práticos e focais com desconfiança, há também a
consciência cada vez maior de que tais pessoas são vítimas de um modelo de
aprendizagem completamente mecanicista. Duplamente mecanicista.
Vamos à
escola para aprender determinados conteúdos e tiramos notas boas para final do
ano passarmos de série. Ao final de certos ciclos, mais especificamente o
ensino médio, fazemos provas com o intuito de entrarmos nas instituições de
ensino superior. Nelas, tiramos boas notas para termos diplomas e acesso ao
universo de trabalho e por isso procuraremos mais formação acadêmica, pois
queremos sempre os melhores postos de trabalho e a melhor remuneração. O
conhecimento está preso à ideia de lucro, a uma ideia externa: não aprendemos
pelo gosto de aprender, não aprendemos a sentir prazer aprendendo: aprendemos
porque queremos um resultado externo ao saber.
Uma
descoberta científica surge com o questionamento que se fez a princípio para
chegarmos a tal descoberta. Ela termina com o uso que se dá a ela. Geralmente,
as grandes ideias da humanidade surgem com o intuito de promover uma melhoria
na vida humana e uma facilidade no tocante ao controle das forças da natureza.
Entretanto, as grandes invenções acabam virando ferramentas de poder, em
especial de poder econômico, e alienam-se em relação seu primeiro fundamento.
Marx
escreveu um texto chamado “O trabalho alienado” no qual fala sobre como o
salário afasta o homem de si mesmo no momento em que ele se contenta em vender
a sua mão de obra com o intuito de ter uma forma de sobreviver. O trabalho
deveria ser a própria fonte de satisfação do ser humano, entretanto essa se
torna o seu salário. Como na maioria do tempo os trabalhadores devem suportar
diversos tipos de exploração, o preço a se pagar para obter essa pequena
compensação ao final do mês acaba sendo alto demais. Com o passar dos anos e
séculos, a classe trabalhadora ganha aquilo que Marx chama de “consciência de
classe” e passa a lutar por uma humanização das condições de trabalho.
Ainda
assim, vivemos em uma era de trabalho alienado. Os discursos sobre o trabalho
afetam os discursos produtores de conhecimento e saber literalmente vira poder.
Deixamos de aprender pelo prazer de aprender para nos tornarmos máquinas
reprodutoras da ideia de que precisamos aprender a fazer algo para não
passarmos fome. Poucas pessoas resolvem criticar a realidade, procurar
entendê-la e quando alguém se propõe a fazer isso geralmente é visto como um
ser iludido ou preso demais aos livros. O conhecimento prático e focal é um
conhecimento alienado, um conhecimento voltado com um fim extrínseco,
materialmente limitado.
Conheço
diversas pessoas que já passaram em concursos públicos ou estão em graus de
formação acadêmica bem maiores do que os meus, mas que sempre me soam como
grandes tolas do ponto de vista político. A meu ver, são seres que apenas
procuram objetivos limitados e fechados para suas vidas e não se preocupam em
ter uma visão holística da realidade. É neste momento que surgem alguns
absurdos bem interessantes como aquele cara de mente neoliberal cuja maior meta
na vida é passar em um concurso público… Bem como aquela pessoa que vê a
corrupção dos políticos mas não percebe o que há de errado em ela estacionar um
carro na ciclofaixa. Falta a seres desse tipo uma visão que abarque a
realidade, que mostre o que vivemos como algo complexo e sem a capacidade de
ser descrita em fórmulas fáceis e acabadas.
O que vejo
em muitas pessoas é cada vez mais a presença de um discurso mecanicista que
imita uma episteme vinda das ciências exatas e biológicas com uma diferença
crucial: essas ciências por serem ciências não negam o método científico de
observação, discussão e análise dos resultados. Muitas pessoas odeiam ler,
porém querem opinar sobre tudo, bastando para formar seus pensamentos o uso de
vídeos editados das mais variadas plataformas digitais bem como a leitura
singela das manchetes de jornais, pelo fato de as manchetes serem longas
demais.
Os maiores
críticos dos textões são aqueles seres que adoram opinar sobre tudo e adoram
também partir para a agressão verbal, e física, se for necessário defender suas
opiniões. Em seus discursos, vemos muito de tautologia e repetição, fora toda
uma série de incoerências, pois o que importa a eles é calar o adversário na
certeza de que têm razão nos absurdos que estão a dizer. Não à toa vimos em
manifestações desse ano gente criticando Paulo Freire e dando voz a um ex
torturador: são pessoas que se negam a ler sobre seu passado, a entender o que
se passou em sua realidade. Não à toa vemos gente xingando alguém que é
“comunista” como se isso fosse uma grande ofensa: são pessoas que ouviram em
algum canto o quanto é ruim ser comunista e não tem a menor capacidade
cognitiva de sentar em uma mesa para discutir posições e medidas econômicas
como criaturas civilizadas.
A única
expectativa de mudança disso é o fomento de uma aprendizagem mais crítica e não
presa a metas apenas pontuais. Não critico aqui ter foco e ser prático no
tocante a obter o sucesso nas mais variadas metas que surgem em nossa
existência: o que critico é o uso de um discurso pragmático que na verdade
disfarça uma grande limitação intelectual das pessoas em procurarem dominar os
rumos de seu destino. Enquanto muitos tiverem preguiça de ler textões, de
pensarem por conta própria e de discutirem como criaturas racionais, nosso modo
de vida irá apenas piorar e cada vez mais a barbárie será a tona de nossa realidade…
***
Rafael Kafka é colunista no Letras in.verso e re.verso. Aqui, ele transita entre a crônica (nova coluna do blog) e a resenha crítica. Seu nome é na verdade o pseudônimo de Paulo Rafael Bezerra Cardoso, que escolheu um belo dia se dar um apelido que ganharia uma dimensão significativa em sua vida muito grande, devido à influência do mito literário dono de obras como A Metamorfose. Rafael é escritor desde os 17 anos (atualmente está na casa dos 24) e sempre escreveu poemas e contos, começando a explorar o universo das crônicas e resenhas em tom de crônicas desde 2011. O seu sonho é escrever um romance, porém ainda se sente cru demais para tanto. Trabalha em Belém, sua cidade natal, como professor de inglês e português, além de atuar como jornalista cultural e revisor de textos. É formado pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará em Letras com habilitação em Língua Portuguesa e começará em setembro a habilitação em Língua Inglesa pela Universidade Federal do Pará. Chama a si mesmo de um espírito vagabundo que ama trabalhar, paradoxo que se explica pela imensa paixão por aquilo que faz, mas também pelo grande amor pelas horas livres nas quais escreve, lê, joga, visita os amigos ou troca ideias sobre essa coisa chamada vida.
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