Os limites invisíveis de Jarbas Martins


Por Thiago Gonzaga 



O poeta é o homem universal; tudo o que agitou o coração de um homem, tudo o que a natureza humana, em todas as circunstâncias, pode experimentar e produzir, tudo o que reside e fermenta num ser mortal – é esse o seu domínio que se estende a toda natureza.
Arthur Schopenhauer

Síntese e simplicidade demostram toda a aptidão criativa do escritor Jarbas Martins neste novo trabalho poético, que simboliza, também, um estado de espírito do  experiente bardo da cidade de Angicos: o da liberdade de criação através de haicais. 

Arte originariamente japonesa, o haicai,  pela sua própria natureza, tem característica mais descritiva do que conceitual, por exemplo, e talvez por isto alguns críticos o encarem com certa reserva. Afrânio Peixoto, em seu livro Miçangas  poesia e folclore, publicado em l93l, assim definiu o haicai: “Pequeno poema de três versos, de cinco, sete, cinco pés métricos, respectivamente, que resumem uma impressão, um conceito, um drama, um poema, às vezes deliciosamente, não raro profundamente".

Basicamente, podemos afirmar que o haicai ou haikai, é uma forma poética  que valoriza principalmente a concisão e a objetividade. A novidade do haicai desembarcou no Brasil com os primeiros imigrantes,  como uma espécie de poema de sugestão, ou seja,  apenas insinua, não diz; o resto fica por conta do leitor. Muitos poetas brasileiros “tropicalizaram” essa arte poética japonesa. Guilherme de Almeida foi um dos pioneiros no país;  inovando, deu título e rima ao haicai. Paulo Leminski  se distinguiu  como um dos maiores divulgadores desse tipo de poema em terras brasileiras. E poderíamos citar inúmeros outros exemplos.

No Rio Grande do Norte, no século passado, surgiram algumas experimentações com essa forma poética, por exemplo: Maria Sylvia no livro Tempo de romance e outros tempos, de 1983; Luís Carlos Guimarães com Pauta de passarinho, de 1992; e Diógenes da Cunha Lima com Os pássaros da memória, de 1994. Mais recentemente, o poeta Lívio Oliveira publicou livros totalmente dedicados ao haicai.

Escrever um haicai que preserve suas raízes e contenha,  em suas linhas, beleza poética, exige do autor habilidade e sensibilidade formidáveis, contudo isto não foi  difícil para o  poeta Jarbas Martins;  sua poesia  tem, como principal característica, o despertar para o belo, mostrando o essencial,  sugerindo algo, e chegando ao  objetivo maior, que é produzir uma espécie de catarse lírica. 

Observamos que, na maioria dos poemas do livro 44 haicais, o autor procura ser fiel à forma legítima desse tipo de poesia,  mas nunca deixando de percebê-lo como forma tocada pelas mudanças, tanto do tempo, como sociais e culturais, constituindo-se por si só, independente das circunstâncias peculiares da sua  época. A poesia  de Jarbas Martins está, assim, em sintonia com a poesia universal,  manifestação artística superior do espírito humano.

Outro mérito do poeta evidencia-se quando ele consegue nos transportar para contextos diferentes de vida e espaço. O poema seguinte é um belo exemplo,  em que   faz uma  síntese , relacionando  fatos ligados à história contemporânea:

Até logo, Che.
A Revolução na esquina
E a barba por fazer

Em alguns poemas percebemos a tendência do autor para descrever  cenas  ou  sensações, colocando toda a sua capacidade e sensibilidade artística à prova. Haicais densamente poéticos transmitem  certa vivacidade e grande poder de expressão, que  deixam sua mensagem fixada na mente do leitor. Eis um exemplo nesta espécie de  metapoema:

raro escrevo.Vivo.
escrever é um verbo
intransitivo.

Na tentativa de transcender a limitação imposta pela linguagem, Jarbas Martins expressa, em muitos dos seus poemas, um pensamento unidimensional; em outros, trata a natureza  do poema como algo que deve ser imaginado  além da escrita.  

O haicai jarbiano – vale salientar – não se atém a regras e preceitos; embora, às vezes, seja extremante fiel à forma, nem sempre adota a “forma” original, adaptando-se a diversas circunstâncias. É o haicai tipicamente brasileiro. Eis outro mérito do poeta.

Compõem suas miniaturas breves flashes do cotidiano, de instantes da vida, da natureza, tudo parecendo resultar de um insight: visualização, iluminação, em meio a pureza e a simplicidade.

Mais que inspiração, é preciso meditação, esforço e, principalmente, aguda percepção, para a  feitura de haicais como esses. Vejamos outro exemplo:

assim como sinto
perco me encontro te cerco
amor labirinto

Muitos dos poemas – ressaltemos – têm consonância com a forma original do haicai em alguns aspectos e em outros, não, bem como  possuem semelhanças e diferenças entre si.  Em determinados pontos, o poeta  é fiel à forma japonesa, por não dar título nem rima aos haicais.

Outros bons momentos deste livro:  Jarbas  descreve  coisas e seres de maneira quase fotográfica, com uns  toques  seguros e precisos, e se, por vezes, ocorrem  repetições;  devemos reconhecer que isto funciona como peça indispensável para uma maior alcance do poema.

Em suma, sua poesia se afirma pelas dosagens harmoniosas de objetividade, leveza e vigor estilísticos,  tudo numa heterogeneidade positiva,  peculiar da subjetividade do poeta.

O poema a seguir, dedicado ao escritor João Batista de Morais Neto, é um dos mais sugestivos do livro, e pode nos levar para vários caminhos, desde o  engajamento pela causa afro, como a própria  indicação musical, apontando Ray Charles, importante músico norte-americano, cantor de soul, blues e jazz:

escuta, meu rei
em terra de cego
só tem RAY

Ainda é importante enfatizar que, em certos poemas, mesmo com feição engajada, o poeta deixa patente o caráter universal de sua arte.

Por fim, concluímos dizendo que toda essa gama de atributos, característica da  verdadeira  poesia, vamos encontrá-la, em plenitude, nestes 44 haicais  de Jarbas Martins.

P.S.
Quem está com um livro novo muito interessante sobre o assunto é o pesquisador Alexandre Alves, Haicais Tropicais.




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