O sol é para todos, de Harper Lee
Harper Lee no set de filmagens de O sol é para todos, em 1961. |
“Quando
tinha quase treze anos, meu irmão Jem sofreu uma fratura grave no cotovelo.
[...]
Continuo
achando que tudo começou com os Ewell, mas Jem, que era quatro anos mais velho
que eu, dizia que as coisas começaram bem antes. Ele dizia que começaram no verão
em que conhecemos Dill e ele nos deu a ideia de fazer Boo Radley sair de casa.
[...]
Depois de
obter o diploma, meu pai voltou para Maycomb e começou a exercer a profissão.
[...] Seus dois primeiros clientes foram as duas últimas pessoas condenadas à
forca no condado de Maycomb. Atticus tinha insistido para que eles aceitassem a
generosidade do Estado, que permitiria que continuassem vivos caso se declarassem
culpados de homicídio. [...]
Maycomb era
uma cidade antiga, mas quando a conheci, era antiga e decadente. Quando chovia,
as ruas viravam um lamaçal vermelho; o mato crescia nas calçadas e o tribunal
parecia afundar no meio da praça. De alguma maneira, fazia mais calor; num dia
de verão, os cachorros pretos penavam, mulas ossudas atreladas a carroças
abanavam o rabo para espantar as moscas na sombra escaldante dos carvalhos da
praça. Às nove da manhã, o colarinho duro dos homens já estava mole. As mulheres
tomavam um banho antes do meio-dia e outro depois da sesta das três da tarde;
mesmo assim, ao anoitecer pareciam aqueles bolinhos que costumam ser servidos
nos chás com cobertura de suor e talco perfumado.
No calor, as
pessoas se movimentavam devagar. Andavam pela praça com esforço, entravam e
saíam das lojas se arrastando, demoravam para fazer qualquer coisa. Os dias
tinham vinte e quatro horas, mas davam a impressão de durar mais. Ninguém tinha
pressa, pois não havia aonde ir, nada que comprar nem dinheiro para tal, nem
nada para ver nos arredores do condado de Maycomb. Mas foi um época de vago otimismo
para algumas pessoas, pois pouco antes o condado tinha tomado conhecimento de
que não precisava ter medo de nada, só dele mesmo”.
É a
cativante voz de Jean Louis Finch, Scout, que evoca um episódio crucial na sua
vida e na do seu povoado do Alabama, através do qual vê todo os Estados Unidos
(e o mundo), o que constrói O sol é para todos. Como
ocorre em outras obras a altura é um romance que está profundamente relacionado
com um tempo e um espaço específicos, sem os quais o leitor pode não
compreendê-lo na justeza que deve ser compreendido: são os sombrios anos trinta, no velho sul estadunidense e quando o país atravessa uma série de mudanças e ainda está solapado pela Grande Depressão; isto é, liga-se a um contexto
específico, assim como O Leopardo (de
Tomasi di Lampedusa) narra a decadência da nobreza e a ascensão de uma nova
classe na Itália do final do século XIX ou Guerra
e Paz (de Liev Tolstói) descreve, entre outras coisas, a derrota de
Napoleão na Rússia, mas está eivado de situações que são de cunho universal.
Em cena, dois
pequenos irmãos órfãos de mãe que vivem com seu pai, Atticus Finch, em algo
parecido com um pequeno paraíso com suas alegrias, lutas e medos, sobretudo, da
vizinhança, onde há uma misteriosa casa; até que chega para passar férias outra
criança, Dill, e serão os três que descobrirão a realidade do mundo do qual
fazem parte. Enquanto enfrentam seus próprios temores e vivem suas aventuras,
Atticus decide defender um homem negro acusado de estuprar uma mulher branca. As
crianças, então, conhecerão a verdadeira face de seu país, da sociedade onde
vivem, e da própria família, sustentada à base de alguma hipocrisia, assim como é o fato de o negro necessitar do respaldo judicial para ser um cidadão do
próprio lugar onde nasceu.
A chegada de outro menino à vizinhança transpõe em miniatura, digamos assim, aquilo que se vive no mundo dos adultos; ao tatear uma amizade entre eles e o gesto de aproximação com a descoberta do misterioso Boo Radley funde-se com o drama da vida adulta: o da necessidade convivência com o apontado pré-conceitualmente de diferente ou desconhecido.
Pelas excertos que abrem este texto (e que abrem o romance) e pela apresentação da construção
desse enredo, o leitor atento já terá percebido está diante de um projeto
literário único e capaz de unir duas questões muito caras à literatura desde
sempre: a vida individual dos sujeitos e a relação com os aspectos sociais
concernentes ao seu tempo.
Parece estar
aí o motivo principal porque este livro converteu-se num clássico contemporâneo
e numa bíblia sobre o direito das minorias. Harper Lee, constrói, sob o ponto
de vista de uma criança, uma narrativa sensível e lúcida, marcada pela
emotividade e pelo ensinamento (herança do clássico romance inglês de tom mais pedagógico)
sobre a igualdade, a convivência, o respeito e o apreço do homem pelos seus
semelhantes; tudo isso com o manejo de um ambiente onde as horas parecem ser
dias e os feitos pouco adiantam a vida das pessoas.
O que pouca
gente sabe é que a escritora baseou sua história num acontecimento que comoveu
os Estados Unidos em 1931, e que chega pela voz da menina Scout de maneira
muito sutil:
“Quando eu
estava com quase seis anos e Jem com quase dez, nossas fronteiras no verão (ou
seja, à distância de um berro de Calpúrnia) eram a casa da sra. Henry Lafayette
Dubose, que fica duas propriedades ao norte da nossa, e a Residência Radley, três
casas ao sul. Jamais ficamos tentados a ultrapassar esses limites. A Residência
Radley era habitada por uma figura
desconhecida cuja mera descrição bastava para ficarmos comportados por dias a
fio; já a senhora Dubose era simplesmente infernal”.
E esse Dill,
já sondou a crítica, não é outro se não a encarnação do escritor Truman Capote,
de quem Harper Lee foi muito amiga desde a infância no sul dos Estados Unidos. É com a chegada de Dill (ressalva seja feita) que se desenvolve o imbróglio da
narrativa. É quando, chega-nos, por exemplo, a forte presença do pai de Scoutt, de inspiração na figura do pai da própria Harper Lee,
que também era advogado e a quem este romance é dedicado. É uma obra, portanto, (e talvez todas sejam assim) em que se
mesclam a história dos Estados Unidos, a ficção e as recordações de infância da própria
Lee – sim, a voz da narradora de O sol é
para todos é a da escritora assim como Maycomb é sua cidade natal,
Monroeville. A forma como
é construída o desenvolvimento psicológico e o perfil de todas as personagens é
estupenda; a forma como Lee consegue disfarçar-se na pele de uma Scout
intercalando o vaivém de seu pensamento é magistral.
Pelo exercício de autoconhecimento e crescimento do infante, O sol é para todos mantém certo traço com os
romances de formação. É uma
montagem em que desvela as paisagens humanas e físicas como elementos com quais
montamos o que somos e nos tornamos ao longo dos anos. Sublinhe aqui então mais uma razão sobre sua universalização.
Assim, o fascínio por
este romance, que tem sido um dos mais lidos da história da literatura
estadunidense, se dá, certamente, pela capacidade simultaneamente leve e
dolorosa com que a escritora engendra a narrativa; além do que, suas personagens
são figuras icônicas para os estadunidenses porque nasceram num momento de conjunção
oportuna da história daquele país. E, a ideia de respeito pelo outro ou de reconhecimento de sua
existência tem se tornado cada vez mais tema universal. Se calhar, o mistério
de O sol é para todos é isso: como é
capaz falar de nós mesmos se somos incapazes de lidar com o outro; ou não é
isto o que se passa na relação entre essas crianças e na relação assumida por
Atticus Finch com o caso sobre o negro.
Gregory Peck como Atticus Finch em filme O sol é para todos. |
Essa
personagem, aliás, é uma figura à parte. É o homem culto, o herói determinado
em busca da justiça – típica figura que o cinema hollywoodiano terá eternizado
de maneira diversa. Ele representa a integridade das ideias, da razão, tem convicção
pelos seus princípios, embora estes nem sempre possam alcançar aquilo que
articulam para ser, mas torna-se em força para exercer a busca pela defesa
não do que é certo, mas do que é justo e conveniente para uma convivência com o
outro. Não é o herói que quer fazer algo pela glória; age em silêncio, sem
elevar-se sobre os demais. É um humanista, pode-se dizer, por acreditar na
capacidade do homem de compreender o seu semelhante.
O sol é para todos, apesar de todos
esses traços aparentemente simples ou do tom moral não é para ser lido apenas
como peça pedagógica. É um romance-denúncia, é uma obra de leitura honesta, sem
hipocrisias sobre o mundo, três capacidades que os adultos vão perdendo
paulatinamente à medida que se tornam adultos – perdendo ou se recusando a
utilizá-las quando temos pela frente um mundo que exige mais de nós do que o
que fazemos. A denúncia é também um modo de dizer sobre a grande dívida que os
brancos têm para com os negros numa história que, todos sabem, esteve desde
sempre pautada na dominação de uns sobre os outros.
Um ano
depois de sua publicação, em 1960, a romancista obteve o Pulitzer; e em 1962, o
livro foi adaptado para o cinema de maneira esplêndida por Robert Mulligan e protagonizado
por Gregory Peck. Mas, não é pela fama, nem pelo epíteto de Best-Seller, que este é um romance
fundamental de ser lido; e, talvez, chegue a faltar essa linha na fala de todo marketing desenfreado das editoras sempre sedentas por sugar mais e mais capital com as vendas astronômicas. O sol é para todos é um romance sobre a necessidade não de tolerância, mas de viver o mundo tal como é, feito de diferenças; são elas que nos fazem mais humanos.
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