Kalahari, de Luís Serguilha
Por Ana Maria Oliveira
O poeta Luís Serguilha |
Kalahari é o desnudar do homem que desperta para um mundo simultâneo de
conhecimento científico, matemático e mitológico, em que todos os seres vibram
em ligamentos de metamorfose. O mundo cósmico é dinâmico mesmo quando
apresentado em estáticas figuras geométricas. A transmutação das formas passa a
ser a lei incontornável e incontrolável, pois o ser é aparência. O mundo
acontece como devir.
O livro expressa na sua criação um "tratado de estética"
labiríntico como a vida, sendo universal e intemporal. Um livro a ter em conta
para o estudo da poesia contemporânea portuguesa. Explora um tema filosófico
com vários tentáculos, como o cosmos aliás. Uma perspetiva aberta sobre o
exterior em que tudo se conecta como líquido que escorre e se mistura sobre
tudo e com tudo, incluindo o eu pensante.
O leitor mais sensível e intuitivo sente o desdobramento, deslizamento,
as conexões, os entrelaçamentos. Não é elaborada uma focagem no conceito de
humanidade, embora o autor chegue a perguntar: Quem somos nós? Seremos aqueles
que caminhamos eternamente no deserto?
O que escreve assemelha-se a um código de acesso ao infinito em que a
linguagem não permanece, porque é desestabilização, estremecimento. Tudo se
abre ao perigo, através das ressonâncias do deserto, do estrangeiro, do erro,
do fracasso, da incompletude, da transformação onde nada é dito e há um
estranhamento, sem entrada e sem saída em que tudo desaparece.
A obra esboça o triângulo concetual Loba-Covil-Uivo: A Loba como
criatura pensante, o Covil representação simbólica do Planeta, o Uivo como
plenitude poética primordial.
O poeta português, Luís Serguilha empreende uma viagem galáctica em voo
supersónico até aos confins da existência. Luís Serguilha, de facto não inclui
de forma concisa o lado humano, mas refere o espanto da criatura que dá o seu
grito, o seu uivo que acontece na linguagem, no teatro, na ópera, na poesia.
Neste âmbito a poesia é a explosão inevitável, traduzindo um caos de imagens,
que atordoam, interpõem-se, transfiguram e enfeitiçam.
Há um encontro em forma de transe com a totalidade da existência. O
autor metamorfoseia-se num espírito rebelde. O escritor mistura-se nos
elementos em turbulência que fazem parte da vida. Vemo-nos no espelho do devir.
Tudo é orgástico no sentido em que nos derretemos e fundimos no todo (árvores,
terra, flores estrelas). No silêncio a existência fala connosco. É uma prece
sem palavras, uma canção sem som onde sobrevém uma transferência de energia.
O escritor renasce como veículo de códigos, elo de ligação entre
povoamentos, camaleão que se metamorfoseia integrando-se no mundo, diluindo-se,
infiltrando-se. O poeta através da sua obra procura incansavelmente a
desmedida, a voz do vazio. Move-se entre as sombras ritmos e energias onde
explodem de forma sistemática as palavras de espanto e questionamento,
incertezas que o transportam para um mundo consciente do conflito e violência.
A escrita acontece como encruzilhada que provoca o erro, o inacessível,
como se através da palavra, o acesso ao oculto fosse permitido, mesmo nas
tentativas de descrição da diversidade e do caos, no jogo incessante do
acontecer. A palavra metamorfoseia-se em grito universal originando ecos.
A consciência do poeta, percorre
então o advir de forma cinematográfica em flaches de formas múltiplas,
programadas numa geometria concisa, mas que ao mesmo tempo extravasa em
estilhaços comunicantes em perfeita mutação com outras entidades.
Os conceitos para o poeta experimentalista, baralham-se tal como num
monte de cartas que são manipuladas ao acaso. Mas seja qual for a posição em
que se situarem, os conceitos voam permanecendo ligados entre si, como se a
linguagem em miscigenação fosse um meio de expressão do real, um pensamento em
total liberdade, mas caindo sempre no paradoxo do seu limite, uma vez que a
palavra em si é impotente, incapaz de expressar o envolvente. A língua
transporta-nos até ao transcendente. Faz a decomposição da existência na
relação espaço-tempo (conceitos que para Immanuel Kant são considerados
intuições sensíveis à priori).
A viagem poética não se submete a regras. É movimento, som, rutura e efervescência.
Ela tem como finalidade ampliar a consciência humana. O autor inventa um novo
vocabulário trocando palavras e significados. O sentir poético assemelha-se à
ascensão do material magmático como “lahars” avalanches, fluidos, materiais
vulcânicos, alta densidade, fogo.
O escritor, misterioso e imprevisto expande-se como poeta num mundo
absorvendo-lhe as características como estrangeiro, investigador, explorador, entusiasta,
labiríntico, tentacular, vulcânico como lava vulcânica que corre no labirinto
da vida, traduzido numa energia inquieta, procurador ansioso de outras
energias, uma consciência do todo e uma elevada perceção dos outros como
criaturas semelhantes.
*
A referência a pensadores, escritores, músicos e filósofo, abre a
questão de toda a obra humana ser perecível. O poeta dissipa-se na memória dos
nomes que encerram teorias, conceitos e argumentos que têm um alcance escasso
sobre o leitor comum.
Nota-se claramente a influência de Serguilha, pelo pensamento grego
pré-socrático, aparecendo nomes de Anaximandro e Anaxágoras. Até a referência
sistemática às figuras geométricas como imagem do mundo, o triângulo, quadrado,
ou os polígonos, o cilindro, pirâmide e outros, fazem referência aos
pitagóricos que defendiam que o elemento principal que servia de motor ao mundo
seriam os números. Os números eram traduzíveis pelas figuras e sólidos
geométricos.
O autor sofre influência significativa
de Heraclito. O conceito de “devir” cujo significado, “vir a ser”, um conceito
pré-socrático, explica os estados dinâmicos de movimento e a metamorfose,
exaltados ao longo da obra como estado permanente da existência.
A menção sistemática e destacada de nomes de filósofos, pensadores,
cientistas e entidades mitológicas, exige ao leitor, uma cultura superior para
que seja possível uma certa lucidez dos conceitos e ideias como as teses que
são subtilmente mencionadas.
O poeta está impregnado da filosofia de Nietzsche quando no baralhar
dos conceitos traz à superfície um mundo dionisíaco onde o estado apolíneo não
tem lugar. O mais incauto leitor sente-se intimidado perante a referência
sistemática a pintores, filósofos, escritores, cientistas. Reportação essa, que
exige conhecimentos profundos sobre cada um, para uma melhor apreensão da obra “kalahari”.
É certo que tudo está em conexão com tudo. Cada um de nós impregna-se de
costumes, cultura, conhecimentos e influências de autores que foi absorvendo ao
longo da sua vida. A questão que se coloca é se a referência a estes autores
será positiva e alargará horizontes ou simplesmente espalhará o caos na mente
de quem lê.
A alusão ao músico Wagner, assinala mais uma vez a perspetiva de
Serguilha sobre o estado caótico de mundo. A obra “A origem da Tragédia” de
Nietzsche, foi dedicada a Wagner, tal a enorme cumplicidade existente entre a
música e a estética deste filósofo. A música também é ópera, palavra, onde se
expande o cenário dramático. O mundo neste contexto é drama, caos, luta e
tragédia.
Esta consciência ocorre no despertar, no renascer para a mudança onde o
medo paranoico não tem sentido.
*
A Loba deflagra no Cosmos, no Mundo, na consciência primordial. Assemelha-se
ao espírito do poeta.
A Loba é perceção omnipresente, aguardando e vigiando, em estado de alerta.
Pressente o caos a instabilidade e a contaminação das sombras criadoras onde os
opostos se digladiam em rituais de acasalamento. A caminhada da Loba é a
evolução dessa consciência reflexiva sobre o mistério da vida. Ela tem a
primeira perspetiva do conhecimento sobre a incerteza. Sabe que os elementos
que constituem o cosmos são os mesmos que integram os corpos. Tudo está em
constante devir. Caracterizada pela metamorfose, a Loba transfigura-se,
emaranha-se e lapida-se num assombro irresistível.
É um desassossego uivante, a solidão de um metabolismo estético na
intemporalidade. A metempsicose onde a energia e a consciência copulam. A Loba
aguarda e vigia mantendo uma relação de alerta com a terra. É devoradora e
feita de instantes rítmicos, frutífera, sábia, destruidora, temível,
hidrodinâmica. A Loba forma a geografia silenciosa do mundo e acontece entre a ambição
e o esquecimento, permanecendo imune ao tempo. Ela renasce no deserto de forma
heterogénea. O corpo da Loba desdobra-se em corpos numa dispersão. Ela acontece
dentro de si própria. Não existe. Acontece infinitamente. Vive do
indeterminável da emancipação, acontecendo sem saídas compromissos ou chegadas.
Há um desapego como a postura de um estrangeiro. Não sabe de si sendo
infiltração de si própria. Tem uma voz planetária de teatros invisíveis e
cenários cíclicos. A Loba é invisibilidade dissimulação, desmesura, estranheza,
ligando-se à catástrofe, à ferocidade, à fascinação do longínquo.
A Loba é a força do sucedimento
aberta ao entrelaçamento. A sua caminhada é uma religação de matérias
aproximando-se de todas as épocas. É criativa e interroga. Desofusca o
inexplorável, reúne o que é diferente, descodifica matérias, habilidades
impercetíveis. É infinita numa linguagem que resiste. É observadora e ativa,
desperta os reagentes e tem o conhecimento das ruturas. Na sua criatividade
inventa jogos, procurando a unidade.
Há um furor dionisíaco em que procura o grito, provoca o eclipse do
tempo e do espaço. Ela revela a energia primordial do saber espontâneo. A Loba
enfrenta a natureza, alimentando-se da eclosão e catástrofe. É a claridade
entre a escuridão e está para além do tempo, dos acidentes milenares, do
conhecimento secreto, do comportamento animal Está sempre em desequilíbrio. É
uma reconstrução magnética polimórfica. Ressurge na sua invisibilidade, no
enervamento da similitude dos contrários. A Loba é o dínamo da linguagem. É um
alvoroço polissémico. É a ascese da palavra na fragilidade animal. A Loba
cresce no chamamento crepuscular, nos códigos de leitura artesanal, na língua
da erupção. É luz e obscuridade em fusão. É violência reflexo das vivências, é vida,
é o poeta. Faz a travessia do indeterminado. A Loba tem corpo de escrita e
reescrita, ouve outras vozes, encontrando infinidades e turbulências. Tem um
ciclo espérmico ligado à lubricidade e às orgias. É a existência interrogativa
do estar cósmico uivante, com conhecimento de si, sendo fecunda e sedutora. A
loba é a força que supera o belo tendo uma bipolaridade estética. A loba
espelho absorve as altas vibrações. Incide entre estrangulamentos, cruzamentos
e a experiência do sublime.
Há na loba um desapego. É
solitária, ceifadora, devastadora e procura o incompreensível interrogando a
natureza. O seu olhar adivinha a materialidade e a espiritualidade oculta no
covil universal. Ela renasce na origem do vácuo da linguagem num holomovimento
e metamorfose. Tem um primeiro olhar sobre o conhecimento primordial no livro
da incerteza. Convive com o divino e com o profano pois diz que nada se sabe e
tudo se imagina, tudo se relaciona. É vida e assiste à morte. Confunde-se com a
água, com o mar. Conhece todos os pântanos numa oxidação caótica. A Loba
revolta-se nos parlamentos ao ver os políticos. A loba está em toda a parte.
Olha o mundo e funde-se nele. Ultrapassa os conceitos e absorve a botânica, a
meditação metafísica, o pensamento filosófico. É então que a fauna se impregna
de flora e esta dos minerais, porque tudo se detona em estilhaços de carência comungante.
*
O covil é o prolongamento do cosmos. Ele move-se. É ao mesmo tempo zona
de solidão. É do covil que surge em transferência o corpo como pura energia. O
covil acontece como um jogo dionisíaco, onde o holismo se liga a uma estética
movediça. Há um abismo uma aventura libidinal onde a destreza e a devastação
vocabular sobrevêm. Sobrevém o absurdo, o paradoxo e o espanto.
O covil é um estimulador das transmutações das trajetórias, um
encadeamento. O covil é uma força percetiva da Loba. Os escritores na sua
estranheza espanto turbulências e secretismo, constroem o covil em movimento. O
covil reconstrói-se com a matemática, escrita, dança numa perspetiva estética.
O covil é a própria Terra com moldes de pegadas. O mundo covil é uma ilusão
dinâmica arquitetónica, O covil propaga-se e dissemina-se.
O covil é espermático, a terra na consciência de si. Torna-se um mundo
sem objeto. A sombra é interrogação do covil, claraboia superstição espiral,
espasmo, crueldade, transmutação. Tudo está conectado. O covil acontece como
uma vagina ciclónica. Um formigueiro onde pórticos de passagem sobrenaturais
acontecem, onde se dão fluorescências atmosféricas inacessíveis e encadeamentos.
Há um casulo e uma placenta que sangram como neuróticos. O mundo acontece como
imagem fotográfica, emigrações, desovas, sobrevivência, nas emboscadas
permanentes das estações onde uma linguagem secreta recria armadilhas
corpóreas. Há um caos possuidor da metamorfose indizível, intraduzível.
O mundo acontece como perturbações, redemoinhos flutuações, narcose,
apocalipses, fertilizações indeterminação, assombramentos. O mundo é um fluido
que pulsa na estranheza. A mãe natureza é pura. O homem robotizou o mundo e
introduziu rótulos, classificações, nomes, títulos. Nela não cabem os
preconceitos do homem. Tudo são partículas, tudo é energia desprovida de
significado. Deambulam ressonâncias das lacerações e armadilhas, acontecem
corporeidades camaleónicas, onde esvoaçam obscuridades, sincronicidades, Há um
instinto de sobrevivência em todas as criaturas viventes e das cúpulas advêm as
mutações dos cavalos, as transformações dos corpos, o desassossego, não havendo
uma única partícula que não esteja em conexão com as demais, restando-nos
percecionar, apenas um acontecer limitado na vastidão do acontecer.
Caracteriza-se pela estranheza que dá sentido à vida. Os organismos entram
em delírios como se estivessem sobre o efeito de barbitúricos ou analgésicos.
Tudo acontece sob o controle dos cios. O cio perpetua-se em toda a parte. Ele
ocorre como metamorfose da língua.
*
O próprio universo uiva. Ele é a expressão do indizível. Um espelho cinético.
Bailarino, funde e devora as criaturas do mundo emancipado do tempo. O uivo
resiste entre o ranger do planeta e a linguagem humana.
O uivo e a voz renascem
mutuamente. Destrói a linguagem. Acontece como fecundação hipnótica. O grito é
a solidificação do invisível. É intenso, infinito, secreto expansivo, inumano.
O uivo é autónomo contra o domínio sendo lugar vibratório. O grito indomável é
encenação da experiência, exaltação do mundo, geometria da desordem,
deslizamento, destruição, inclinação, queda, transferência e evasão. O grito
arrasta a incerteza a demolição, o imprevisível, a desaparição, o estado de
tensão. O grito alimenta-se da loucura em forma de vida. O uivo traz outros
uivos para dentro de si em travessias cósmicas.
O uivo é a expressão estética de um corpo resistente que eclode na
devastação desmesuradamente como uma energia dançante. Ele sobrevive no caminho.
É desértico, numa viagem viva circular que revela o invisível na luz e tem a
sonoridade do relâmpago. É o caminhar na ascendência. Liberta-se por si mesmo
nos ganidos das criaturas. O uivo vem de fora. É um escrever na conexão
harmonia-instabilidade. O uivo é um escrever que destrói a justificação. Ele
não se justifica, é livre. É um labirinto acústico, um diamante que ressoa ao
longo do tempo. É um órgão de espanto de expressividade, uma luminária
incorpórea de genuinidade intuitiva.
O uivo é movimento, experiência, vida. Desvenda o nascer. É a
intersecção da universalidade e do nada. É um acontecimento metamórfico, tal
como o covil. O uivo é incontrolável, fecundo e sem fronteiras e reconcilia-se
com a força viva dos outros uivos e recupera os ecos do mundo primitivo
fundindo-se com a natureza do mundo. É a plenitude poética primordial. O uivo
recupera-se na regeneração do mundo. Regenera o espaço e o tempo expressando o
latejar da presença de um espanto constante num cosmos de sombras.
O uivo é a voz que expressa um mantra de acesso ao “divino”. É um grito
do tempo expresso na errância, na tempestade e na inconstância. É um renascer
no infinito, mas também uma energia devastadora. A vida é um combate libidinoso
e trágico, mesmo perante a lente do telescópio. A tempestade a noite e o
dilúvio submetem-se ao tempo.
Projeta-se nas flutuações da história, sendo um destruidor de idiomas. Mas
será possível o conhecimento da instabilidade? O mundo, o cosmos acontecem na
impossibilidade do conhecimento absoluto. O ser humano mais do que conhecer o
envolvente, reconhece-o, como se eternamente estivesse ligado ao omnisciente.
O conceito de “catedral” aparece ligado às vozes rígidas em oposição ao
uivo que é dinâmico. As catedrais envenenam os compêndios a sabedoria das
fábulas.
O livro torna-se a decifração da ausência de Deus. Deus é a ausência do
livro. As catedrais referem-se à arquitetura humana ao nível da
espiritualidade, numa tentativa de explicar o que acontece. Os mandamentos são
raízes manipuladoras de vertigens, na poluição das cidades. Há um afastamento
do racionalismo e conhecimento das bibliotecas e no seu lugar resplandece o
transe hipnótico e sonâmbulo. As palavras acompanham a expressão humana do
Mundo onde se faz a descrição da alteridade.
*
Na dinâmica do assombro, sente-se o esgotamento, a infixidez, a indeterminação
o indizível. São instabilidades, mutações multiformes, estranhamentos, deslocações,
fissuras e acoplamentos. Dá-se o confronto dos elementos e neste assombro há
povoamentos de metamorfoses abissais e transmutações onde tudo acontece e nada
é. Há todo um mistério nos criadores de hologramas que fomentam o ascetismo. E
a matéria permanece nos ciclos das árvores em que a água é a matriz, elemento
da vida, enquanto há uma perpétua inspeção da sombra da antimatéria. Advém a
excitação, a estimulação, o ópio, a hipnose, o transe, a serenidade e a
escuridão terrena. O paradoxo e absurdo da existência humana, acontecem nas
lacerações contraditórias, nas alucinações, enquanto o uivo sibila no espanto.
A arte é espanto, interrogação, procura, inquietude. O paradoxo e o
absurdo que o homem sente perante o envolvente são atenuados pela arte, que ambiciosamente
quer fazer parte da corrente de lava que é o existir, sentindo. A música a
pintura, a literatura são expressões de um grito que se entranha na tragédia
existencial. O cinema, o teatro, a dança, a ópera, a música, são expressões da
vida.
A vida apresenta-se como as imagens de um filme que vão alternando.
Deste modo o ser permanente não existe mas sim todo um movimento estético. O
mundo advém uma acrobacia irrecuperável de vozes neurónios, ímanes simuladores
e catástrofes. Não há ser mas sim devir.
A vida desdobra-se em várias existências e possibilidades, por entre um
povoado de vultos que partilham os diamantes dos vulcões. As ciências ligadas à
natureza difundem imagens dos seres vivos em transformação. A zoologia, a
biologia a botânica representam a metamorfose da vida. Há uma linguagem da
natureza e uma linguagem humana. Há um teatro humano e um teatro geográfico. Há
um idioma zoológico, um grito geológico, um alfabeto infinito. Há uma
infidelidade primordial uma não pertença. Nada é, tudo acontece.
O cosmos é feito de desassossego um holomovimento, em que decorrem as
bactérias do abismo e a destruição da vida, a decomposição, onde subjaz uma
abertura fotográfica, um relâmpago, um vocabulário das estações.
Advêm os ovos, os ventres e
surgem as reminiscências dos calcários, os sarcófagos, a arqueologia, os vídeos
a zoologia e geologia. Tudo está ligado. O tempo metamorfoseia as criaturas e o
cosmos. Tudo se expande no devir, nas devastações, no perder e no ter.
Acontece uma decomposição perpétua e uma celebração sepulcral. Há uma
malignidade hereditária num ciclo uterino de células mães como expiações das
sombras entre alucinogénios. Acontece a metamorfose como um cio, vagina
anfíbia, células germinativas em que o animal é adorador de imagens. Há uma
memória de que tudo está ligado. O animal deslumbra-se com o mundo vegetal.
Acontece uma embriaguez em morfina, uma intensidade sísmica e depois cinzas
vulcânicas. Tudo está em mutação.
Há uma descoberta alienígena onde adivinhações e oráculos desabrocham
em coincidências proféticas. Tudo é luz e movimento num espanto
cinematográfico. O conceito de espelho emerge transversalmente à obra. Há um
simbolismo no espelho que assume todas as formas e naturalmente a natureza mutável
do mundo. O mundo refletido no espelho é fictício. Os pensadores são
prisioneiros das classificações das regras e dos costumes, onde acontece uma variante
de tonalidades, luzes e a referência ao aparente, falso, transitório,
corruptível. O espelho é insânia onde as imagens mudam de forma alucinante.
*
Podemos colocar a questão: Será o cosmos um reflexo da consciência?
O Homem como ser que era considerado o centro do mundo, está ausente
simplesmente. O homem é uma criatura em evolução ou melhor em transformação.
Metamorfoseia-se acompanhando a transformação do Mundo, do Cosmos e dos seres
animais, vegetais e o próprio espaço molecular. O homem insere-se no espelho da
transmutação dos elementos, dos átomos, da luz e do relógio geológico e lunar.
É o espelho da história humana, do saber das bibliotecas, das religiões e do
contacto direto com a natureza que o molda. É o reflexo do instinto dionisíaco
dos seres, das guerras, conflitos, alucinações, loucuras, hipnose e transes.
O homem acontece como uma criatura fecundada na necessidade e
adversidade e na força de ligação entre todos os elementos. Percutor do
grito/lava, do assombramento, incredulidade na natureza do espaço biológico,
zoológico, arqueológico, geológico e vulcanológico.
Surge neste contexto o Homem histórico, social, mitológico, guerreiro,
caçador, arquiteto, cientista, poeta, filósofo. O homem pedra, o homem metal, o
homem computorizado, ator no teatro trágico da vida. O homem, criatura sem
ligação alguma aos sentimentos, ao amor porque o próprio amor adquire uma outra
nomenclatura como conexidade, vínculo, mutação, passagem, agregação. O que o
Homem faz é efetuar aproximações representativas do Ser. Mas ao descrevê-lo,
limita-o. E o Ser não pode ser limitado. Há um código de vida em cada partícula
infinitamente pequena, invisível.
O ser humano apenas deixa vestígios parados na paisagem caótica em
sintomas de tentativas de apreensão do real. O mito surge no contexto humano
para explicar o inexplicável na mente limitada de uma espécie adulterada,
descontrolada e sem orientação.
A consciência humana por sua vez é indefinível, indizível. Há um estado
de elevação como se projetássemos um planar em direção às estrelas, que não é
alcançado pela maioria dos humanos. São outros patamares de vibrações de
energia, de perceção. O homem sobrevive entre o caçador e o guerreiro, num
mundo de sombra dionisíaco.
O sentimento humano não cabe na poesia de Serguilha. A condição humana
é uma ilusão corpórea. Em seu lugar há a descrição de um microcosmos e
macrocosmos, que se perfuram, permeiam em canais de comunicação imperativa com
todos os elementos, células, bactérias e minerais. Não há perceção da dor. É o
mundo da ligação fálica gritante. Mesmo no cosmos desordenado, arrebatador e
incontrolável, todos os entes comunicam.
*
Kalahari é então um livro que versa sobre o tema de estética. Tudo se
mistura. Tudo é desvario, desassossego e loucura. O ser é mistura e conexão. Há
um desmontar estético que se expressa pelo conceito de estilhaço que emerge ao
longo da obra. O conceito de “Pai” envolve uma mensagem em forma de oração
fictícia do poeta. A segurança oferecida por um pai é também ela própria
fictícia.
Relacionados estão conceitos como permanência e ascendência, tudo
desabrochando pela magia do nascimento. Tudo se alinha na movimentação da
potência ao ato. (Conceitos aristotélicos). Há uma raiz potenciadora em tudo o
que acontece como permuta. O poder da vida conforta o homem e há sempre uma
vida em potência na sombra da invisibilidade. Apesar das criaturas tentarem o
equilíbrio mesmo sob hipnose, quando se deslocam na corda bamba da vida, acabam
por cair. Há uma indiferença do tempo geológico perante o lacerar do grito da
loucura humana. O homem absorve a devastação, a matéria primitiva através do
Mito. Há um interrogatório da eternidade, um espanto. Há um jogo estético na
ilusão gnosiológica prevaricadora da indiscernibilidade do mundo.
Ana
Maria Rodrigues Oliveira é portuguesa nascida no Alentejo, distrito de
Portalegre em 1960. É licenciada em Filosofia pela Faculdade de Ciências
Sociais e Humanas de Lisboa. Edita o seu primeiro livro de poesia “Grito de Liberdade”
em 2008 pela Corpos Editora. Participa entre 2008 e 2014 em várias coletâneas e
em 2015 decide-se pela edição de autor, do seu livro de poesia “Espírito
Guerreiro”. Profissionalmente lecionou na zona de Cascais e também nos Açores.
Atualmente exerce num infantário onde desenvolve um projeto de Filosofia para
crianças.
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