Herberto, a tempestade que revolve a funda terra dos lagos mais estagnados - sobre Poemas canhotos (parte 2)
Por Pedro Belo Clara
Findamos a primeira parte deste diálogo com a
poesia de Herberto Helder em Poemas
canhotos falando sobre sensações (de inconformismo e de revolta) e, para agora, gostávamos de avançar sobre outras questões suscitadas pela leitura dessa obra; assim,
são deveras interessantes os vislumbres que o próximo poema nos concede no que
toca à imagem do poeta enquanto criador: “em boa verdade houve tempo em que
tive uma ou duas artes poéticas / agora não tenho nada”. A incursão faz-se pela
habitual frustração de quem cria, aliada até a uma certa inutilidade do
propósito do acto, que de transcendente nada tem (“mas o mundo, não: nunca
senti que o mundo estremecesse sob as minhas palavras escritas”), concluída,
apesar de tudo, com o sentimento de dever cumprido (“e quando eu chegava ao fim
das linhas escritas, / sabia que estava tudo feito, / sentia que deveria
morrer”).
A
herança do poema é retomada logo pelo seu sucessor, num período onde a temática
se revela mais forte, adensada e consequente. O primeiro verso elucida-nos: “escrever poemas não é boa maneira de atordoar os tempos do verbo”. Aqui, no
entanto, foca a complexidade do ofício praticado, a exigência do mesmo, a
caminhada turbulenta vivida por todo aquele que se arrisca a esboçar um verso.
De facto, “escrever poemas não é apenas vou ali e já volto à morte do costume”.
Compreender-se-á agora de modo mais claro a substância do áspero discurso doutros
poemas antes referidos.
A
crítica, aliás, retomará a sua vez um pouco mais adiante num poema composto em
modos de cena teatral. Um texto deveras mordaz, de ironia refinadamente
cáustica, onde se visam os comportamentos mais desviantes (e em completa
abundância) daqueles que se movem pelos meios literários. Em tom autenticamente
pejorativo, denuncia o grande ego de quem nada sendo tudo se acha. A crítica
visa as gerações mais jovens, contudo. Notemos: “oh dêem qualquer coisa ao
rapaz frenético” – verso que culmina a apresentação da personagem marcada, como
o próprio autor refere, pelo “mito de Rimbaud”. Dado que Herberto sempre
revelou uma personalidade bastante reservada, ao ponto de muitos lhe apontarem
o carácter misantropo do seu ser, a manifestação egóica oposta à sua merece
todo o desprezo e, claro, criticismo:
(…)
aprontem aí um Nobel para salvar uma vida,
um Nobel está bem mas enquanto espera
porque não se arranja vá lá um Cervantes um
Camões uma coisa dessas?
pôrra dêem-lhe tudo (…)
(…)
Recordemos,
por exemplo, a rejeição do Prémio Pessoa que em 1994 lhe foi outorgado.
Mas,
convenhamos, há uma agressividade de discurso, marcadamente translúcida, que
advém de tais exercícios, um impulso constante de abalo e posterior ruptura.
Eis a presença do fogo que tudo consome – elemento de acção preciosa no que ao
acto criativo diz respeito. Embora se compreendam, no poema que tratámos, tais
traços de carácter, antes, em não posso que me amem sequer os poemas cegos, a
exposição do tema é realizada de forma mais perceptível. Aliás, os mesmos são
imprescindíveis a todo o poema que se queira digno desse nome: “não se chega ao
amor sem o alto do fogo, só se chega quando é transparente”. Uma genuinidade
abrupta, decerto, mas totalmente preenchida pela mais pura autenticidade.
O
tema também se extrapola. Ou seja, da realidade do poema se chega à realidade
do mundo em volta. Um relativamente breve poema traz-nos essa experiência:
(…)
e na Dinamarca para aquecer um pouco
a malta gozava fazendo caricaturas sacrílegas
dos ayatolas
mais um pouco e salvava-se o mundo
A
acção criadora, movida pelo fogo do não-conformismo, o tal caos que origina a
mutação dos padrões comportamentais, aplica-se às próprias situações políticas
do quotidiano. Com referências a um jornal caricaturista dinamarquês,
sublinha-se o direito pleno de através da crítica mordaz e da intenção jocosa
se colocarem em causa sistemas e pensamentos de torpe substância. Sempre
presente, bem entendemos, um impulso de abalo e de ruptura.
Mas
será que aquele que critica também sugere? Isto é, a denúncia não “morre
solteira”, dando espaço à formulação do conselho, da possível alternativa?
Existe no conjunto um poema, de tal maneira no tempo se é que se enganam de tal
maneira, que abre caminho a essa hipótese. Na verdade, de modo mais subtil se
polvilharam outras ao longo dos poemas do livro, mediante o tema e a espécie de
caracteres (quase arquétipos) mais visados. Como um mestre que se dirige ao seu
discípulo, embora fosse muito provável, em boa consciência, a recusa de tal
papel por parte de Herberto, são expostos os passos mais seguros, numa teoria
consolidada por experiência pessoal, a empreender nesse caminho que desemboca
na “ciência dos nomes todos”. Será essa mais uma faceta da missão do poeta, se
é que ele a deverá possuir? A de “nomeador de coisas”? Que se alteie todo
aquele que almejar a formulação de uma resposta digna.
A
unidade de todo este trabalho, como já antevimos, nem sempre é evidente e de
sólida estrutura. O poema que terrível desatino é um óptimo exemplo do que
acabámos de referir. É também dos mais perplexos poemas que o livro compila.
Descreve o desabafo de um amor incestuoso, vivido em clima de ardente paixão
entre pai e filha. Tomando esta o lugar da narração, assistimos a uma entrega
isenta de qualquer reprovação moral pelos próprios intervenientes. Aliás, a
chama que os consome é de tal modo fogosa que extingue qualquer retracção ou
até mesmo vestígio de condenação. O que não exclui, claro está, a formulação da
mesma por qualquer entidade exterior e de génese, digamos, divina. Pois o
término da relação é evidente: “e ao inferno por decreto / está o pai condenado
/ e a filha por arrasto”. Os laços são fortes e a consciência do erro não é
suficiente para o evitar: “- entra por mim adentro, / entra e desfaz-me / - é o
meu quarto, pai, é a minha cama / - é contra a lei, / - eu sei (...)”. Não se
estranha, assim, o “terrível desatino”. Que fundamento o sustém? A referência a
Príapo, deus grego da fertilidade, não será por si só um válido argumento.
Portanto, será algo que a razão certamente não poderá explicar. Pois a imagem
que permanece é a da pureza do amor, por mais perturbante que os seus contornos
possam ser, dado que o mesmo, o amor, assume uma manifestação física entre os intervenientes.
Mas, dado o carácter subversivo da poesia de Herberto, cremos ser uma ideia
capaz de garantir a sua razão de existir. O amor, tantas vezes estrangeiro aos
Homens, por mais doentio que qualquer julgamento o rotule, viverá certamente
além de toda a proibição. Um verso admite-o: “Não sinto nenhuma mágoa”.
Saído
o leitor desta espécie de túnel que se abriu a meio dos demais poemas do livro
em debate, encontrar-se-á com um brevíssimo poema, de dois versos apenas, onde
uma pequena luz se permitirá cintilar. Isto porque muito se tem falado sobre o
lado mais agreste e furioso da poética de Herberto, provavelmente sem se
compreenderem a fundo os motivos de tal divisa. Na verdade, o poema em causa,
permite antever um profundo sentido de humanidade na génese de tanta crítica e
revolta. É um profundo frémito do ser que imprime uma tumultuosa atracção pela
mudança, compreendida naturalmente pela quebra do antigo e pelo cultivo do
espaço onde o novo possa medrar. Talvez mais do que um criador autêntico, que cultiva
e cuida, Herberto assuma a devastadora foice da morte para tudo varrer de um só
golpe. Mas a causa, essa, pela intenção do poema, é como dissemos
intrinsecamente humana. Vejamos:
perdoar sem piedade – dizia ela
(como pode ser tão hediondo o mundo?)
Sucedendo
a este tão breve e significativo poema está um outro que encerra uma curiosa
reflexão sobre a morte. A mesma parte de um exemplo concreto: o dia da morte de
António Ramos Rosa, poeta português falecido em 2013. Sendo mais específicos,
devemos em boa consciência substituir a palavra “dia” por “momento”, na medida
em que esse é o único visado pelo discurso do poema. Estando o poeta “deitado
na cama contra a parede”, “deu meia volta sobre si mesmo / e ficou de cara
voltada contra a parede”. O restante sucedido é de fácil depreensão. E é nesse
ponto que a reflexão proposta por Herberto surge: através da última posição em
vida assumida por Ramos Rosa (supostamente ou, justificada por uma amizade
próxima, com sólido fundo de verdade). “Fundo e completo de uma só vez», assim
da vida se despediu o poeta, deixando a Herberto uma valorosa lição: “e só
agora passado ano e meio eu compreendo / como era preciso ser assim tão íntimo
para sempre”.
O
tema retoma-se, aliás, um pouco adiante, corroborando um pouco as linhas da
ideia que Herberto imprime neste poema. Aí, nesse outro, sublinha a única
maneira de se morrer, segundo o seu entendimento: “a maneira cega”. Afinal, a
morte é a entrada para o desconhecido, para o esquecimento total, não obstante
a completa cegueira que assiste a um corpo inerte e sem vida. Contudo, o “modo
cego de morrer” pode igualmente ser o mais violento e puro (como tal, genuíno),
composto pela mais absoluta entrega, pelo mais íntimo salto cegamente
empreendido em direcção do abismo – sem qualquer traço de racionalidade.
Até
ao término, agora tão próximo, do livro que temos vindo a desbravar por
conteúdos de índole geral, outras temáticas terão a sua repetição como prova,
consciente ou não, da importância que detêm junto da essência poética de
Herberto Helder. De novo um poema que relembra a insurreição, sempre
necessária, contra comportamentos tidos por sapientes, eles que, considerando
todas as vertentes, de toda a sapiência estão absolutamente desprovidos. A
rebeldia exposta é de carácter bem genuíno, como habitual. Inclusivamente na
irónica comparação utilizada, uma vez que na visão do autor tais “autoridades”
tornam-se idênticas a um simpático animal de longas orelhas: “e o que eles
devoraram de alfarroba, / e o desperdício de água clara!”. O poema tem o nome
do primeiro verso, portanto os que dizem como deve ser.
A
nossa nota final incidirá naturalmente sobre o último poema destes Poemas
Canhotos, no qual o autor faz referência aos próprios trabalhos que são a
matéria do livro que temos em mãos: “esses poemas que chegam / no meio da
escuridão”. Naturalmente, também todos os outros que escreveu poderão de modo
seguro ser adicionados à referência que é feita, na medida em que tais versos
também remetem ao processo criativo de um autor. É um legado que Herberto,
querendo-o ou não, no derradeiro poema imprime. Despedida anunciada? Não
alimentamos misticismos infundados, mas os contornos são visíveis. No entanto,
são poemas que vêm de distantes funduras (outros poetas referem-se à poesia,
por exemplo, como um exercício do tempo passado, sendo a criação uma mera
recordação da experiência vivida) e que o guiam ao “centro da escuridão”, “até
não serem mais nada / que lápis papel e mão”. E assim são descritos os rumos
trilhados no acto da criação, passos dados de modo inseguro por aquilo a que
afirma serem “descaminhos de luz”. Mas o término não se alcança aí. Não. É
necessário algo mais. E é esse algo o motivo do constante conflito, da
constante frustração... “a amada nas altas montanhas / o amador ao rés das
águas”, sem dúvida. No completar da urdidura surge a prova final, árdua a cada
ocasião que o poema se anuncia e reclama a vida: “difícil é ver se a luz / rima
ou não rima com a mão”.
Concede-nos
sempre, e decerto que sobre tal os leitores irão concordar, um prazer pleno ler
um livro composto no auge da maturidade de um autor. A fase da vida não implica
o aparecimento de uma fase decadente em sua obra, como se vê. Herberto
deixa-nos com um trabalho de fímbria apurada e bastante fiel ao seu princípio
poético. Nunca se importou, pelo menos de modo aparente ao seu leitor, em
introduzir a variante do silêncio em seus trabalhos, por exemplo, e com ele
apresentar ritmos balanceados. Na verdade, eles, os ritmos, são harmoniosos
dentro do caos que instigam. As palavras jorram, agrestes, de furiosas
nascentes, plenas de vida. O verso pode ser amiúde longo, mas é totalmente
desprovido de qualquer excrescência.
Poderá
ser ainda cedo para indiciar o lugar que será do seu total merecimento no
panorama global das letras lusitanas. Aliás, que valor terá tal nomeação se o
trabalho de um poeta fala por si mesmo? Quem se dignar a lê-lo certamente irá
avaliar o seu carácter e sentido de um modo muito íntimo. A poesia não exige
esse tipo de posições. Reconhecimento? Será sempre agradável possuí-lo, mas não
se levantarão outros aspectos de maioral importância? De qualquer forma,
Herberto deixa-nos um livro de poemas que comportam uma essência condigna ao
que sempre foi como homem e poeta. Para toda a valência ou hipotética
vicissitude existe coerência com o percurso traçado, aspecto esse que consolida
fortemente a imagem do autor. Certamente não se desagradará o leitor mais
entusiasta.
(…)
poemas às vezes perto
da nossa própria razão
que nos podem fazer ver
o dentro da nossa morte
as forças fora de nós
e a matéria da voz
fabricada no mais fundo
de outro silêncio do mundo
(...)
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