Hélia Correia: a escritora de intelecto elegante
Por Maria Vaz
Hélia
Correia nasceu em Lisboa, corria o mês de fevereiro de 1949. Muito cedo
percebeu a sua natural inclinação para um mundo envolto em palavras: palavras
enquanto símbolos evolutivos de poder que encerram em si mesmo significâncias
escondidas na originalidade circundante da sua origem. Talvez tenha sido por
isso que Hélia decidiu ingressar na Faculdade de Letras da Universidade de
Lisboa para se licenciar em Filologia Românica.
Na medida em
que as escolhas de vida de um autor nos permitem captar essências da sua
personalidade mais reservada ao mundo, que podem ocultar-se em aparências
distintas, pensamos que Hélia desde cedo se rendeu à sua capacidade peculiar de
perceber as essências que subjazem as formas e que o seu gosto pelo sentido etimológico
das palavras nos revela uma personalidade com uma capacidade analítica além da
norma.
Além da
Filologia, rendeu-se ao estudo da capacidade expressiva do ser humano ante a
necessidade de interpretação psíquica e corporal das palavras, que acabou por
conduzi-la ao estudo do Teatro Clássico.
Não
obstante, iniciou a sua carreira literária no campo da ficção, com a publicação
da obra O separar das águas, pelo ano de 1981. A partir de então publicou
várias obras e passou da ficção para a poesia, a literatura infanto-juvenil – com A luz de Newton”– e, ainda, para o
teatro.
A
polivalência de Hélia Correia é a sua maior marca. A polivalência e a
personalidade forte que deixa sobressair ante a forma criativa com que,
inteligentemente, articula as palavras. Sem margem para grandes dúvidas,
falamos de uma mulher progressista e preocupada com as causas sociais dos
movimentos colectivos que a cercam e em que se integram. E talvez seja essa
preocupação que faz de Hélia Correia uma intelectual sensível.
E reparem
que, quando falo em sensibilidade, não quero, com isso, tocar conceitos como a
vulnerabilidade ou emocionalismos “à flor da pele”. Nada disso. Falo de uma
sensibilidade racionalizada, de significâncias profundas, de uma inteligência
que penetra a causa de todos os problemas. Falo da sensibilidade que desnuda
figurações e que traz algo de real à luz do entendimento.
Destarte,
falamos de uma autora que condimenta as suas obras com elegância. Que lhes dá
vestes abstractas, sempre com o toque clássico que – além de a ter conquistado
– lhe confere o ‘charme linguístico’ que conquista qualquer leitor.
E por
falarmos em conquista, não podemos olvidar as suas sucessivas premiações.
Assim, podemos dizer que conta, no seu curriculum literário, com: o Prémio
Máxima de literatura (2000 e 2006); o Prémio de ficção do PEN (2001); o Prémio
da Fundação Inês de Castro (2010); o Prémio Vergílio Ferreira (2013); o Prémio
de poesia PEN (2013); o Prémio de Conto Camilo Castelo Branco (2014) e, claro
está, o maior prémio da literatura portuguesa, o Prémio Camões (2015).
Preocupada
com os problemas sociais, num artigo seu, publicado no Jornal Público,
escreveu:
“Falemos de
“catarse” — que se aplica à gritaria das manifestações. Serve a catarse para
energizar? Não serve. Uma catarse é má medida. Uma catarse era concretamente
vómito de ressaca. O alívio de estômago a seguir a uma bebedeira. Era deitar
para fora e ficar limpo. Transposta para a lição do teatro, assim durou,
implicando sempre uma transformação. É isso o que se quer saindo à rua? Que a
vivência nos lave do mal-estar? Falar não deve aliviar do mal. Pelo contrário,
deve torná-lo inteligível e discutível. Torná-lo, a bem dizer, manipulável. Um
material exterior e que, com esforço, consigamos dobrar. Nós precisamos tanto
de catarses como de sonhos. Temos de levar outra intenção para as ruas.
O que é
manifestar? É dar a ver. Dar a ver com as mãos. Não necessariamente mãos em
festa — a etimologia é duvidosa. Provavelmente mãos conflituantes. Há com
certeza uma finalidade para juntar num desfile a multidão, mas nós não somos já
gente de ritos, não somos gente de re-ligação. Temos de inaugurar tudo
novamente, a começar pelas frases de incentivo, pois as que ouvimos, de tão
velhas, tão usadas, perderam o vigor. Estão transformadas em ladainhas de
beatitude.”
O inconformismo
de Hélia, ante uma realidade temporal aniquilada pelas crises – que assolam
tanto a sociedade globalizada, em geral, quanto uma Grécia longínqua dos louros
da civilização helénica, em especial –, fez com que escrevesse a sua obra, A
Terceira Miséria, a partir de uma questão de Hölderlin: “para que servem os
poetas em tempos de indigência?” A resposta não poderia ser outra senão esta:
De que armas
disporemos, senão destas
Que estão dentro do corpo: o pensamento,
A ideia de polis, resgatada
De um grande abuso, uma noção de casa
E de hospitalidade e de barulho
Atrás do qual vem o poema, atrás
Do qual virá a colecção dos feitos
E defeitos humanos, um início.
Recentemente,
numa entrevista ao Jornal de Notícias – após ter sido galardoada com o Prémio
Camões – confessou que , além de não escrever regularmente, não aceita pressões
diplomáticas sobre aquilo que escreve, que “nem sabe o que escreve nem como”.
Mas afirma que a escrita é “um respirar”.
Com isto,
resta-nos esperar que Hélia Correia respire muito: que as suas palavras façam oxigenar
os nossos pensamentos e que o seu inconsciente criativo nos continue a
surpreender com a sua inteligência. Para terminar, deixo-vos o excerto de um
artigo da sua autoria publicado na Revista de artes e ideias:
"Há
pessoas assim cuja existência, cuja carne é matéria literária. Não falo já de
qualidade. Falo, sim, da quantidade de poema que há num corpo. Da combustão que
é feita de palavras em lugar de oxigénio. Falo daquele que, se não escreve,
mata alguém. Daquele que não aceita um aparelho de cognição capaz de o proteger
com o vulgar conforto do real. Que se educou para a alucinação. O que descreve
o brilho intenso que há na noite e é, no entanto, a fonte do fulgor, dessa
fosforescência com que os mortos que o tocam, de visita, o contaminam."
***
Maria Vaz nasceu em Mirandela a 19 de Setembro de 1990, muito embora tenha vivido toda a infância e início da adolescência em Vila Flor. Aos 11 anos, apaixonou-se pela poesia ao encontrar, por mero acaso, um livro de Alberto Caeiro. A par da poesia e da literatura, é uma apaixonada pelas artes em geral, de entre as quais ressalta a música, dado que tocou clarinete entre os 11 e os 21 anos. Publicou o seu primeiro poema em Março de 2015, numa antologia de poetas portugueses contemporâneos e escreve regularmente no seu blog (“The philosophy of little nothings”). É agora colunista do ‘Letras in.verso re.verso”. Além da escrita, é doutoranda em ciências jurídico-criminais, na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, desde finais de 2014.
Comentários
Sobre o texto... enfim, a sua estruturação, fluidez de palavra e exposição de ideias dispensam qualquer adjectivo. Com a competência habitual no acto da sua urdidura, não é nada que espante qualquer leitor teu mais assíduo.
Guardarei a sugestão. Pois, admito, nunca explorei esta autora conforme o seu trabalho merece.
Beijos! Gostei muito.
Fico feliz que tenhas gostado!