Federico García Lorca, de Ian Gibson



Já se passaram alguns anos da publicação original de Federico García Lorca – a biografia, de Ian Gibson. Igualmente, da tradução da obra no Brasil: 1989. Mas, pelo tempo era um livro escasso; agora, os leitores têm tantos anos depois, desde 2014, a sorte de contar com a reedição integral deste texto de grande fôlego pelo selo Biblioteca Azul, da Globo Livros; a novidade, da edição original, é um novo prefácio escrito pelo autor para a reedição espanhola da obra ocorrida há quatro anos. Dizemos integral porque, quando o livro foi publicado em Espanha veio em dois tomos, um em 1985 e outro em 1987.

Além de alguns anos sobre a aparição desta biografia, estamos a uma distância significativa do ano em que o poeta espanhol foi barbaramente assassinado pela Ditadura de Franco (1936). E tanto tempo depois, nunca se sabe onde foram parar os restos mortais de Lorca; sabe-se, tão somente, com a revelação recente de mais documentos dos porões da ditadura que o mataram porque era comunista, gay e maçom. Isto é, mataram-no por pura crueldade – conclusão que nunca deve ser esquecida para olhar o quanto de outros seres humanos tiveram ou têm sua condição de existir vilipendiada pelos desmandos do poder instituído.

Gibson não é apenas um pesquisador da vida de Lorca, alguém interessado em contar uma vida marcada pelo exercício da injustiça e personagem-símbolo na luta pelos direitos individuais. Gibson foi um dos pesquisadores responsáveis por, fora das páginas biográficas, cobrar das autoridades e participar ativamente no esforço de alcançar uma compreensão sobre as circunstâncias do assassinato do poeta; e a conclusão é de que o crime foi, pela combinação explosiva motivação política versus ódio pessoal. Fizeram com Lorca o que gostariam de ter feito desde a geração de seu pai e só encontrou possibilidade quando num estado de recessão dos direitos e da liberdade individuais.



Esta biografia de Ian Gibson apresenta-se como sua obra vital, assim como foi, desde quando esteve imerso na escrita e apresentação do livro, dedicado para que se fizesse clara as razões sobre a morte do poeta e dramaturgo granadino e sobre o paradeiro de seus restos mortais. A biografia, aliás, imprime essa necessidade interior do seu autor por duas coisas, como terá lembrado na ocasião de publicação do título em questão: “gostaria de saber como foi sua morte, reconheço que é minha obsessão, mas sem que isso seja uma doença, e como era sua voz. Foi o poeta que mais recitou em público, que visitou e conversou em rádios tanto em Espanha como nos seus oito meses de sucesso na Argentina... e não há uma só gravação”.

Gibson recorda, apesar da recepção crítica nem sempre calorosa ao seu trabalho (há, no percurso da escrita dessa biografia uma série de outros títulos que compõem uma bibliografia indispensável na compreensão do homem Lorca), que “quem melhor escreveu sobre ele foi Vicente Aleixandre, porque o conheceu por uma noite. Aleixandre falou do Lorca lunar, noturno e enigmático. Para mim, isso é Lorca: um mistério. Um exemplo: o manuscrito de Assim que passem cinco anos foi finalizado exatamente uns cinquenta anos antes de sua morte e acaba com um assassinato. Em Lorca há mistério.”

E é essa linha de enigma ou de aguçada sensibilidade do poeta sobre o futuro, tal como uma pitonisa, o que sustém a biografia. Agora, um detalhe, nunca explicável Gibson é um irlandês interessado na figura de um espanhol (o que perfaz a ideia de, por que alguém de uma determinada cultura se interessa por outros universos, às vezes até na contramão dos seus); era um não-satisfeito com a carreira acadêmica até se decidir por largar tudo para se dedicar à escrita dessa biografia. Na época, o general Fraco ainda estava no poder; ficou clandestino em Espanha até receber a cidadania em meados da década de 1980. E essa obsessão por fazer descansar a memória do poeta está desde um de seus primeiros projetos de pesquisa, no início da sua largada carreira de catedrático; Gibson se propunha, na ocasião, investigar a participação da Irlanda na Guerra Civil de Espanha e o resultado está em A morte de Lorca, um título publicado no Brasil pela Civilização Brasileira e há muito esgotado. Este trabalho foi censurado na Espanha e na França quando publicado.

Lorca e Salvador Dalí

No total, são mais de quarenta anos de pesquisa que renderam mais de duas mil páginas escritas sobre Lorca e na investigação sobre muitas outras figuras que estiveram, de uma maneira ou de outra, ligadas ao poeta granadino, tal como Luis Buñuel e Salvador Dalí. A investigação do biógrafo, que diz ter entrevistado mais de mil pessoas e relido perdidas as contas correspondências, entrevistas e a obra de Lorca, parte desde a infância num vilarejo de Granada, passa pelos anos de formação acadêmica em Madri e o acompanha nas inúmeras viagens que fez ao redor do mundo: Barcelona, Paris, Cuba, Nova York, Buenos Aires. E não é só isso: a obra revisita o cotidiano de Lorca, claro, sempre alinhavada por uma linguagem de cronista que busca deixar que os registros falem sobre o biografado. Seu guia? O fio terrível da morte. Gibson presume que Lorca sabia, pressentiu durante toda a vida, um fim trágico.

Num radiante domingo de verão, em Granada, Lorca come com uns amigos que vieram pela primeira vez à sua casa; comem uma paella no jardim. Tudo brilha: a toalha branca da mesa, as paredes recém caiadas, o céu sem nenhuma nuvem. Riso solto, correria de crianças num rio ali próximo. De repente, Lorca se cala e começa a transpirar. Levanta-se, cambaleando, com o olhar perdido. Leva as mãos ao pescoço. Diz está asfixiando-se. Antes de desmaiar ouvem-no murmurar como se falasse num sonho: “Tenho que sair daqui. Isto está cheio de mortos, mortos por todas as partes”. Dias mais tarde, o dono da casa descobre, no registro da propriedade onde estavam que o lugar era no passado uma vala de restos mortais de um antigo convento de dominicanas. O registro não está neste livro de Gibson, mas noutro título ainda por conhecer, Vida, paixão e morte de García Lorca. Mas, tem reverberações profundas no texto dessa biografia, ao assinalar, a delicadeza e sensibilidade aguda do poeta.

A família de Federico García Lorca: sentados, os pais Federico e Vicenta e, em pé, da esquerda para direita, García Lorca, e os irmãos Concha e Paco.

Não resta dúvidas do trabalho minucioso e da sua importância para compreensão de um retrato muito próximo de García Lorca. As intrigas ao trabalho de Gibson vão além do difícil papel assumido por qualquer biógrafo em ganhar a fama pelo escarafunchar a vida do outro. Há os temas de conotação privada que deram muita dor de cabeça a Gibson que ressalta quando Federico já em criança tinha trejeitos de afeminado; no colégio o apelidavam de Federica. Essas pitadas triviais sempre geram polêmicas e nunca agradou aos familiares, hoje responsáveis pela Fundação que zela pelo nome e obra de Lorca. Depois da criação da instituição, tudo se tornou mais difícil para o pesquisador que diz agora ter acesso apenas àquilo que os da família querem que ele tenha e, possivelmente, esteja aí uma de suas guinadas em se afastar um tanto da figura que foi a obsessão de uma vida; não de um todo, é claro, que o Gibson, com bom pesquisador, segue cavoucando por terrenos mais próximos aos que não o deixam investigar.

Mas, mesmo que Gibson tenha tocado na questão mais sensível da vida de Federico García Lorca, nunca o fez com o intuito de vilipendiar a memória do escritor. Em textos como Lorca e o mundo gay, por exemplo, o biógrafo não reduz a obra a um catálogo de revelações curiosas sobre um mundo que se oculta ou que o próprio poeta, por viver no contexto que vivia, sempre teve o zelo por preservar das más línguas. O biógrafo, aliás, trata de recontar como a morte de Lorca teve imprecações de ódio homofóbico; na mesma manhã de seu assassinato ocorrido em 18 de agosto de 1936, Juan Luis Trescastro entrou num bar em Granada e disse em voz alta aos presentes, para que todos o ouvissem: “Acabamos de matar Federico García Lorca. Eu meti dois tiros no cu do maricas”.

Gibson diz que todos em Granada saibam da morte de Lorca; qualquer um podia apontar quem eram os assassinos. Mas todos foram cúmplices. Ninguém nunca disse nada, por medo. Foi preciso passar muito tempo para que viesse à tona esse horror. Assim como terá levado um bom par de anos para que o assunto sobre a sexualidade do escritor fosse colocado em pauta, sobretudo, a partir do contato de obras como Sonetos do amor obscuro; mesmo este livro publicado clandestinamente, lembra Gibson, veio com outro título, Sonetos de amor, sem qualquer alusão ao caráter desse amor. A questão chegou a ser tratada como uma marca a ser expurgada da vida de Lorca. Muita coisa se perdeu. E deve ter se perdido propositalmente.

Lorca entre os internos da residência de estudantes

A biografia de Gibson faz questão de tocar noutras facetas de Lorca que foi não só poeta e dramaturgo, mas pianista (aliás o seu maior gosto desde criança quando ia muito mal na escola), ator, ensaísta e pintor. No retrato proposto pelo biógrafo escapa certo gosto pela figura de Lorca descrito pelos amigos como um homem atraente, de gestos educados, olhar penetrante, sedutor, ora alegre ora melancólico. Um inquieto. Nesse ínterim de saber sobre os nomes com os quais ele teve contato, a biografia detém-se na compreensão do nascimento das amizades mais seguras de Lorca: Dalí e Buñuel. A imagem que nos fica é a de um sujeito inquieto; se em conflito consigo mesmo e com alguns dos seus mais próximos – são célebres as birras entre ele, Dalí e Buñuel, assinala a biografia – não nos cansamos de acompanhar uma figura que tinha uma necessidade pelo transcendente, pela eternização.

O trabalho de Gibson é o de uma revelação ou uma compreensão universal acerca da figura do granadino. Afinal, Lorca, um mistério, fez-se um homem do mundo. Se hoje, conhecemos tão detalhadamente determinados aspectos de sua vida (grande parte deles iluminadores na compreensão de sua obra) é graças ao seu esforço expresso no conjunto de livros intermediários sobre temas específicos da biografia de Lorca e sobretudo este que é sem dúvidas a tradução de grande fôlego sobre uma vida interessante. É certamente uma leitura indispensável ao leitor de Federico García Lorca. Gibson faz jus à necessária responsabilidade que os vivos têm no processo de conciliação com os do passado.

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Veja no Tumblr do Letras uma galeria com imagens raras da vida de Federico García Lorca.



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